Mesmo com aumento de garantias trabalhistas nas últimas décadas, a informalidade ainda é regra para os empregados domésticos. Quase 70% da categoria não tem carteira assinada. Profissão exercida por 6,6 milhões no país carrega o ranço do passado escravista

RENATA MARIZ – Correio Braziliense

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Rita de Cássia Oliveira passou os últimos 40 anos trabalhando em casas de famílias, mas a carteira nunca foi assinada. Hoje, não consegue auxílio-doença nem aposentadoria

As últimas quatro décadas limpando, lavando, passando e cuidando dos filhos dos outros trouxeram para Rita de Cássia Oliveira a possibilidade de sustentar a própria prole sozinha, ter alguns ex-patrões como amigos e acumular poucos bens. Alterações graves na coluna, conhecidas como bicos de papagaio, também são uma herança dos 40 anos de labuta. Mas nenhum registro dessa lida diária, que começou quando a potiguar de 53 anos tinha apenas 14, está impresso na carteira de trabalho. As páginas em branco do documento explicam mais que o fenômeno da informalidade no Brasil. Evidenciam, sobretudo, um olhar perverso da sociedade sobre uma ocupação existente desde o descobrimento do país. Das mucamas trazidas pelos portugueses às empregadas domésticas de hoje, houve avanços inegáveis. Impossível ignorar, porém, que um ranço da servidão ainda paira sob essas trabalhadoras. Série do Correio que começa hoje mostra que, além de terem menos direitos garantidos por lei que os demais profissionais, conquistas recentes da categoria nem sempre são cumpridas.

Ter a carteira assinada, por exemplo, foi um direito conquistado só em 1972, trinta anos depois da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Mesmo assim, na última década, a proporção de profissionais sem contrato formalizado praticamente se manteve — passou de 73,9% em 2001 para 69,3% em 2011. Embora o crescimento econômico, social e educacional do país provoque uma migração natural desses trabalhadores para outros setores, o emprego doméstico ainda reúne 7,1% de todos os ocupados no Brasil — 6,6 milhões de pessoas. É também a profissão mais exercida entre as mulheres. Quase 20% das brasileiras ganham a vida cuidando da casa dos outros. Uma Proposta de Emenda à Constituição que visa igualar as domésticas a outros trabalhadores em termos de direitos foi aprovada em comissão especial da Câmara dos Deputados na última semana. As críticas são acanhadas. Traduzem-se, geralmente, no temor patronal de não poder arcar com o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), a hora-extra e os outros ganhos previstos na proposta.

As resistências legítimas e comuns por parte dos patrões, sempre que alguma categoria reivindica melhorias, vão além da questão pecuniária no caso dos domésticos, apontam especialistas. “Há um imaginário social, muito relacionado ao passado escravista, que não concebe esse tipo de atividade como uma profissão que deva ser valorizada e remunerada como as outras”, afirma Joaze Bernardino Costa, professor do departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Para Tatau Godinho, da área de autonomia econômica feminina da Secretaria de Políticas para as Mulheres, será necessária uma mudança de mentalidade. “Por que algumas pessoas não arrumam a cama quando acordam? Porque fomos educados relacionando o trabalho doméstico com as mulheres, então pressupõe-se que a mãe ou uma irmã fará o serviço, e com a existência de trabalhadoras domésticas em grande quantidade. Elas continuam sendo muitas, 7 milhões de pessoas. É preciso garantir seus direitos agora”, comenta Tatau.

Prejuízos
Os efeitos de não formalizar a relação de trabalho, embora muitos empregadores paguem direitos como 13º e férias, são devastadores para a doméstica. Rita de Cássia que o diga. Natural de Mossoró, a mulher que nunca teve a carteira assinada, apesar de ter trabalhado nos últimos 40 anos em casas de família, está doente há alguns meses. Com problemas sérios na coluna, que se refletem nos membros inferiores, ela tentou em vão buscar algum auxílio no Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). “Eles me falaram que se eu tivesse contribuído pelo menos uma parte da vida, seria mais fácil conseguir um auxílio-doença ou me aposentar”, diz. Rita se sente arrependida porque, pelo menos em uma casa, onde ficou por 13 anos, teve a chance de ter o registro formalizado. “Mas como eu teria que tirar uma parte (INSS), pedi para não assinarem. Ganhava um salário mínimo, tinha quatro meninos para criar sozinha. Qualquer pouco fazia falta. Ignorância minha”, diz.
As dores crônicas no corpo, atestadas por um laudo médico da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, que lista três problemas na coluna, não têm impedido Rita de trabalhar. O dinheiro das faxinas é usado para pagar o aluguel de uma casa humilde em Santa Maria. “Meus filhos estão crescidos, mas não posso contar com eles. Às vezes chego nas casas com tanta dor, mas aí eu oro para Deus me dar força. E consigo”, diz. Rita engrossa as estatísticas de 30% dos trabalhadores domésticos no Brasil que são diaristas. Ou seja, trabalham em duas casas ou mais. Mas ela preferia voltar para o grupo mais numeroso, o das mensalistas. “Ficar fixa seria melhor para mim, por causa da minha saúde”, diz.
Francisco Xavier, diretor da Federação Nacional do Trabalhadores Domésticos (Fenatrad), ressalta o percentual ainda baixo de diaristas no país. “Não dá para justificar 70% de profissionais sem carteira assinada alegando que a maioria trabalha em várias casas. Não é verdade”, diz. O percentual é maior até que o registrado no setor agrícola, onde 65% dos empregados não contam com o registro formal de emprego. Na construção, outra área que sofre com a informalidade, 40% são empregados registrados e 16% sem contrato formal. Somando esses últimos aos 37% que trabalham por conta própria, chega-se a um contingente de 53% sem carteira — menor que o das domésticas.

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Uma das primeiras fichadas
lenina carvalho  (Bernardo Dantas/CB/D.A Press)

No cenário atual, em que quase 70% da categoria não têm carteira assinada, Lenira Maria de Carvalho já poderia se considerar uma felizarda. Em 1972, parecia um verdadeiro milagre. A alagoana de Porto Calvo, que está prestes a fazer 80 anos, foi uma das primeiras brasileiras a ter o registro de doméstica formalizado, logo depois de criada a lei que reconheceu a atividade como profissão, quando trabalhava na casa de quatro irmãos, estudantes, no Recife. “Eles faziam serviços com dom Hélder (Câmara), eram pessoas muito evoluídas, apesar de serem do interior de Pernambuco”, lembra a alagoana.
O entusiasmo foi tanto que Lenira começou a organizar a categoria. “Se eu tinha conseguido, outras podiam conseguir”, lembra. Mas a luta era difícil. Para formar uma associação profissional, era preciso pelo menos 20 trabalhadoras com carteira assinada. “Passamos uns dois anos para encontrar essas mulheres. Se até hoje é difícil assinarem carteira, imagine naquela época.” No fim da década de 1980, ela fundou o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Recife, do qual é presidente de honra hoje. (RM)

“Há um imaginário social, muito relacionado ao passado escravista, que não concebe esse tipo de atividade como uma profissão que deva ser valorizada e remunerada como as outras”
Joaze Bernardino Costa, professor do departamento de Sociologia da UnB

Tiana e a mãe, Francisca, simbolizam tradição comum no interior mais pobre do país: trabalho doméstico é exercido por muitas gerações (Iano Andrade/CB/D.A Press)
Tiana e a mãe, Francisca, simbolizam tradição comum no interior mais pobre do país: trabalho doméstico é exercido por muitas gerações

Dois milhões com até meio salário
Embora nas principais regiões metropolitanas do país o rendimento médio das empregadas domésticas seja pouco superior a R$ 622, essa quantia garantida por lei como o mínimo que um trabalhador pode receber não alcança um quarto da categoria no Brasil. São quase 2 milhões de pessoas ganhando no máximo R$ 310. Trinta e cinco mil prestam serviços sem receber qualquer remuneração, segundo dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística referentes a 2011. São geralmente meninas e mulheres que trabalham em troca de comida, moradia e vestuário. Os ganhos modestos, aliados aos problemas que surgem com uma relação tão próxima entre patrões e empregados, fazem da atividade uma das últimas opções entre quem pouco estudou.

Tiana Cristina Costa Silva, 24 anos, doméstica desde os 14, tem dificuldade de enumerar o lado positivo da profissão. “O que tem de bom mesmo é só receber o dinheiro da gente. Mas como eu não estudei muito, tenho que trabalhar assim”, diz a maranhense de Mirinzal. Ela tem cinco anos de estudo, pouco menos que a média nacional, de 6,1. O índice, entretanto, fica muito atrás dos 9,3 anos de escolaridade das trabalhadoras brasileiras exceto as domésticas. Tiana não espera muito mais do que sua mãe obteve na vida, atuando também em casa de família. “A gente trabalhava no Maranhão. Lá é difícil. Ninguém paga o salário. É R$ 200, R$ 300”, conta Francisca Lúbia Costa, 43 anos, com os netos em volta.

Mãe e filha no trabalho doméstico representam uma realidade cada vez menos comum no Brasil. “Romper o ciclo é mais difícil em locais distantes e pobres. Mas, nas cidades grandes, as jovens estão aproveitando outras oportunidades, no comércio, nos serviços, abertas inclusive pelo momento econômico do país”, explica Mario Avelino, presidente do Instituto Doméstica Legal. A falta de reposição de profissionais já aponta, inclusive, um envelhecimento da categoria. Em uma década, a quantidade de empregadas com idade entre 18 e 24 anos caiu de 21% para 11%. Por outro lado, quase 70% das domésticas, hoje, têm mais de 40. Em 2009, essa taxa era de 52%.

O tempo castiga Francisca, que já não encontra forças para trabalhar como antes. “Antes eu arrastava móveis, carregava caixas, fazia de um tudo. Hoje estou mais fraca”, diz a mulher.Em Mirinzal, segundo ela, apesar de trabalhar “desde mocinha”, nunca havia tido a carteira de trabalho assinada. Só em Brasília conseguiu o que considera uma grande conquista. “Eu acho que o salário podia aumentar um pouco. Mas estou conseguindo levar. Depois que vim pela primeira vez, em 2000, já trouxe todo mundo. Marido, filhos e netos”, conta Francisca, que mora de aluguel em uma casa em Ceilândia Norte. Ela e a filha têm o perfil da profissão, já que 93% são mulheres, das quais 61% negras. Por isso, nessa reportagem, a categoria é sempre citada no feminino. (RM)

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