DOMÉSTICAS QUE A ABOLIÇÃO ESQUECEU: Quanto menor a idade, maior a exploração

Mais de 250 mil meninas trabalham em casas de família, expostas a abusos de toda ordem. Categoria sofre sem limite de jornada

RENATA MARIZ – Correio Braziliense

Elisa só tinha folga de quinze em quinze dias no emprego passado. Nos fins de semana, arrumava casa de sogra da patroa
Elisa só tinha folga de quinze em quinze dias no emprego passado. Nos fins de semana, arrumava casa de sogra da patroa

Queimaduras, unhas amassadas na porta e a língua cortada com um alicate são as marcas que Lucélia Rodrigues da Silva carrega do tempo em que foi torturada dentro de um apartamento de luxo na capital goiana. Ela tinha apenas 10 anos quando saiu da família para morar com uma empresária. As promessas de estudo, roupas, presentes e uma vida melhor começaram a se dissipar logo. Em pouco tempo, Lucélia passou a fazer os trabalhos da casa, ao mesmo tempo em que era agredida. O caso mostra, de uma forma extrema, as consequências de um problema não apenas tolerado, mas estimulado pela sociedade: o trabalho infantil doméstico. Embora a violência suportada por Lucélia, hoje com 17 anos, não atinja todas as 257 mil crianças e adolescentes brasileiros ocupados nesse segmento, os prejuízos são incalculáveis.
“Muitas famílias pegam a criança ou a adolescente para pagarem menos que o salário mínimo, não assinarem carteira. E ainda tentam dar ao gesto um caráter nobre, dizendo que estão ajudando a menina”, critica Antonio de Oliveira Lima, procurador do trabalho no Ceará. Ele não ignora a situação de pobreza de muitas trabalhadoras infantis, defende escolas em tempo integral e outras políticas públicas e condena a conivência de quem explora essa mão de obra. “É um trabalho que se dá com 100% de prejuízo do direito fundamental que é a convivência familiar e comunitária, as garantias trabalhistas não são respeitadas, sem falar no risco de assédio moral e sexual e de abandono escolar. Fora que muitos trabalhadores domésticos, mesmo os adultos, não são tratados como seres humanos”, completa.
Mais passíveis de terem os direitos desrespeitados, as trabalhadoras de pouca idade padecem de um outro problema que também aflige parte da categoria já adulta: a falta de uma jornada de trabalho regulamentada — ao contrário das outras profissões que têm carga máxima estabelecida em 44 horas semanais. Um quarto das domésticas brasileiras ultrapassam esse limite, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sem ganharem nada a mais por isso porque também não têm direito a horas extras ou adicionais noturnos. “O que ocorre é uma autorização estatal para o subemprego”, afirma o sociólogo Joaze Bernardino Costa, professor da Universidade de Brasília.
empregada-infantilA justificativa dos legisladores, desde a concepção da Constituição de 1988, que negou às empregadas tais direitos, era de que o trabalho doméstico, ao contrário de outros, não tem caráter lucrativo, como uma empresa. O argumento, porém, é cada vez menos considerado, o que levou à aprovação unânime de uma proposta de mudança constitucional na última semana em comissão da Câmara dos Deputados. “O discurso não tem a ver com lucratividade, e sim com uma postura discriminadora e machista. Muita gente quer ser servida, mas não quer pagar de forma justa pelos serviços de quem cuida dos filhos, dos idosos, dos animais e dos seus bens patrimoniais”, afirma Creuza Maria Oliveira, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad).

Fome
Elisa (nome fictício), uma doméstica de Coroatá, leste do Maranhão, sabe o que é não ter hora para trabalhar. Quando foi para uma casa em Teresina, onde olhava um bebê e ajudava na limpeza, só tinha folga de 15 em 15 dias. Mas se dava bem com os empregadores. O problema era nos fins de semana, na casa da sogra da patroa, que lhe chamava às 6h. “Ela me acordava com o dia clareando. A criança ainda estava dormindo, mas eu tinha que levantar para arrumar a casa dela. Chorava muito nesse tempo, ela me tratava mal. Só que eu aguentava”, lembra Elisa.
A moça de 26 anos fala que a pior recordação do período diz respeito à hora das refeições. “Eu só comia depois que todo mundo comesse. E eram sempre as sobras, comida fria, horrível mesmo. A quantidade, eles que colocavam. Passei muita fome lá”, afirma Elisa. Sete meses depois, ela pediu para ir embora. Sem carteira assinada, saiu com uma “mão na frente e outra atrás”. Encorajada por uma amiga que estava em Brasília, embarcou rumo à capital em um ônibus de turismo. “Pedi R$ 200 emprestados a um amigo. Deixei com ele o cartão do Bolsa Família dos meus filhos por garantia. Mas antes de um mês aqui, já tinha quitado minha dívida com ele”, conta Elisa.
Desde 2000 no Distrito Federal, Elisa está feliz. Mas nem tudo foram flores para a maranhense. Depois de trabalhar durante um ano fichada para uma família em um condomínio de classe média próximo ao Plano Piloto, decidiu sair, por não querer continuar dormindo no serviço. A patroa, então, fez as contas, adiantou cerca de R$ 1 mil dos R$ 2,2 mil que devia e pediu que ela assinasse um papel dizendo ter recebido tudo.
Elisa aceitou. “Eu ia viajar para ver meus parentes, precisava do dinheiro. Além do que, confiava que eles iam me pagar. Quando o restante não chegou na minha conta, comecei a ligar. Mas aí ela (a patroa) disse que estava sem condição, que não tinha de onde tirar. Depois disso, eles me pagaram algumas parcelas, mas não tudo. Desisti de cobrar o pouco que resta. Levei um calote mesmo, mas não tenho raiva deles”, diz a mulher, que atualmente trabalha em outra casa de família, no Guará.

Sem fiscalização

A atividade doméstica está na lista de piores formas de trabalho infantil estabelecidas em 2008 pelo governo brasileiro por meio de um decreto. Ao contrário da exploração da mão de obra de crianças e adolescentes nos semáforos, nas plantações de cana, nas carvoarias, o trabalho doméstico é de difícil fiscalização por dois motivos. Primeiro porque ele se dá no domicílio, local inviolável onde fiscais do Ministério do Trabalho, entre outros órgãos, não podem entrar. Em segundo lugar, mesmo que fosse permitido, haveria uma dificuldade operacional. “Não temos equipes para inspecionar mais de 200 mil lares no Brasil”, diz o procurador do Trabalho Antonio de Oliveira Lima.

“Eu só comia depois que todo mundo comesse. E era sempre as sobras, comida fria, horrível mesmo. A quantidade, eles que colocavam. Passei muita fome lá (Teresina)”

Elisa*, empregada doméstica que atualmente trabalha em Brasília

Três perguntas para
Lucélia Rodrigues da Silva, ex-empregada doméstica

Como era seu dia a dia nos quase três anos na casa de Silvia Calabresi (atualmente presa por torturar a menina)?

No começo, quando eu estudava, levantava às 6h, arrumava a casa até 11h, depois tomava banho e ia para a escola. Quando voltava, brincava com o filho dela. Mas, depois que não podia estudar mais, acordava às 6h e ia até 1h, 2h da manhã limpando a casa. Não tinha hora para almoço, não tinha hora para nada. Era como se eu fosse um bichinho, que ela dava comida na hora que quisesse.

Mas havia tanto serviço para fazer?
Eu limpava o banheiro, o chão, as paredes, tudo com a mão, sem rodo. Na cozinha e na sala eu não ia. Só ficava na parte de cima. O apartamento era muito, muito grande. Tinha dois andares. Aí quando eu terminava tudo, ela mandava recomeçar. Passava barro nas coisas, sujava tudo que eu tinha acabado de limpar.

O que você sente por ela?
Nada. Não tenho raiva, nem ódio, nem mágoa. Às vezes, eu lembro, sonho com ela, tenho pesadelos. Aí tiro aquele pensamento da minha cabeça. Mas não desejo nada pra ela. Isso é passado. Moro com meu pai, estudo, trabalho. Estou namorando. Minha vida é outra. (RM)

Como é no mundo

A configuração do trabalho doméstico no Brasil e na América Latina não se repete em nações mais desenvolvidas por várias questões. “Além do avanço social e econômico que cria oportunidades em outras áreas, Canadá, Estados Unidos e grande parte da Europa trabalham com políticas que incentivam a mulher a ficar em casa. Ou há equipamentos públicos. Nos países nórdicos, por exemplo, o sistema de creches é amplo. Na Alemanha, onde não há cobertura de creches, todas as mães recebem um incentivo pecuniário para cuidar do filho até os três anos”, explica Tatau Godinho, da Secretaria de Políticas para as Mulheres

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *