Fonte: A Tarde
Creuza Maria Oliveira, 56 anos, sofreu na pele a escravidão em pleno século XX. Tinha menos de 10 anos quando trabalhou como babá sem receber um centavo. O primeiro salário só veio aos 21 anos. Hoje, ela acumula uma trajetória de 28 anos de luta pelos direitos dos empregados domésticos. À frente da Federação Nacional dos Trabalhadores Domésticos (Fenatrad), mostra-se preocupada com a votação que irá regulamentar a PEC das Domésticas. Nesta entrevista, ela conta o drama de ser vítima, no trabalho, de exploração e assédio sexual.
Com quantos anos a senhora começou a trabalhar?
Antes dos 10 anos. Meu pai faleceu quando eu tinha 5 anos, e minha mãe foi morar com outro companheiro. Ele disse que não iria sustentar filho que não fosse dele. Como eu era a filha do meio, fui a escolhida para começar a trabalhar. Era uma boca a menos na família. Saí do interior de Santo Amaro da Purificação e fui trabalhar na cidade, como babá. Eu era tão pequena que minha patroa tinha que colocar um banquinho para eu alcançar a pia e lavar os pratos. A ideia era que eu tivesse casa, comida e escola. A promessa da escola nunca foi cumprida.
Até quando trabalhou nesta primeira casa?
Aos 12 anos saí da casa. Eu apanhava, era maltratada, mas não tinha coragem de dizer para a minha mãe porque a minha patroa me ameaçava. Ela dizia que ninguém iria acreditar em mim porque eu era criança. Quando minha mãe chegava, eu não falava nada. Uma vizinha, que ouvia os maus-tratos, me aconselhou sobre como eu deveria contar para a minha mãe. Um dia resolvi falar que estava com dores nas costas, que a filha da patroa estava muito pesada para eu carregar. Aí minha mãe me levou. Mas não parou por aí, continuei trabalhando em outras casas de família.
Quanto a senhora recebia no primeiro emprego?
Não tinha salário. Eu recebia roupas usadas, casa e comida, que na verdade eram as sobras da comida dos filhos da patroa. Raramente eu comia a comida que vinha da panela. As crianças da minha patroa deixavam a comida no prato, e ela fazia o meu com o resto da comida dos filhos. Colocava um caldinho de feijão por cima e dizia: “Coma que está limpo”.
Com quantos anos a senhora recebeu o primeiro salário?
Só com 21 anos , já em outra família. Recebi um ordenado que não era do valor do salário mínimo da época. Era algo em torno de R$ 200. Aos 21 anos, também foi a primeira vez que a minha carteira foi assinada. Meu patrão assinou, mas pagava o valor que queria.
E o primeiro salário mínimo?
Já estava com 31 anos. Só recebi quando foi estipulado como direito pelo governo, a partir da Constituição de 1988.
Como eram as suas folgas nos empregos?
Quando eu era criança, não tinha folga, me lembro de poucas vezes que eu pude passar o dia em casa. Normalmente, era a minha mãe que ia me visitar. Depois que ela morreu, aí eu não tinha mesmo como voltar para casa. Só visitava a minha avó uma vez por ano. Depois, teve uma casa que a folga passou a ser uma vez por mês. Só tive folga todos os domingos quando eu bati o pé. Demorou anos para descobrir que eu podia questionar os patrões.
Quantas horas a senhora trabalhava quando criança?
Tinha que acordar às 7h. Às 22h, ainda estava lavando os pratos. Eu era babá, e criança não para. Trabalhei até os 20 anos sem horário. A carga horária só vai ser regulamentada agora. A partir da PEC, a carga horária máxima será estabelecida. Ainda são poucas as relações de trabalho atuais que respeitam o horário.
Há casos de patrões e filhos de patrões que abusam das empregadas. A senhora passou por isso?
Sofri assédio sexual dos filhos dos patrões. Graças a Deus, eles nunca me violentaram. Quando eu era menina, ainda com 11 anos, o pai da minha patroa ia para o banheiro e ficava me chamando, mostrava o pênis e se masturbava. Mas ele nunca chegou a abusar sexualmente de mim. Aos 14 anos, o filho de minha patroa, que tinha a mesma faixa etária que eu, também me assediava sexualmente. Ele vivia me perseguindo. Seguia todos os meus passos. Se eu estivesse tomando banho, ele ficava me olhando. E ainda era violento, me agredia porque eu não cedia ao assédio.
Por que a senhora continuava nos empregos? Não tinha como voltar para o interior?
Não tinha como voltar por causa da pobreza. Quando eu era menor, não entendia que estava sendo explorada. Tinha medo de a minha mãe acreditar na patroa e não em mim, porque eu era criança. Havia assédio moral. Eu era chamada de lerda, demente, preguiçosa, mole. Isso faz você realmente acreditar que está fazendo tudo errado. Tinha também a questão da falta de consciência. Só em 1986 eu passei a ter essa consciência, quando comecei a participar de um grupo de domésticas. Foi lá que eu descobri que eu poderia questionar o patrão.
Quando veio para Salvador, a promessa era que a senhora estudasse e isso não ocorre. Quando foi que a senhora começou a estudar?
Só aos 16 anos. Aqui em Salvador, comecei no Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral). Depois, ficava naquela história: ia para uma casa e a patroa permitia que estudasse. Ia para outra, e a outra já não permitia. Eu precisava do trabalho e tinha que abrir mão dos estudos. O trabalho era mais importante para a minha sobrevivência. Ainda não terminei o ensino médio.
Quando a senhora procurou um grupo para discutir o trabalho doméstico?
No início da década de 1980, fui procurar a Pastoral da Doméstica, mas eu não gostei. Eu queria uma reunião que falasse que a gente tinha direitos, que a gente precisava se organizar. Soube pelo rádio que existia um grupo que estava querendo começar um sindicato. Durante a semana, tentei mobilizar as domésticas do prédio onde eu trabalhava. Chamava uma e outra, e diziam que não podiam, ou diziam que não iriam perder tempo em reuniões de domésticas Mas consegui levar uma irmã. Quando cheguei lá, vi que era um grupinho pequeno. No dia só tinha quatro pessoas, o que me deixou bastante decepcionada. Ali foi um balde de água fria, mas assisti à reunião e gostei do que ouvi.
Como foi que a senhora se engajou realmente no movimento social?
Quando terminou a reunião, eu pensei que talvez o grupo precisasse de mim para crescer. E a partir daí o grupo se tornou um projeto de vida. Entrei nessa para lutar contra tudo o que eu passei. Não queria meus sobrinhos e filhas passando por tudo aquilo. Depois do grupo, em 1986, criamos a Associação de Trabalhadoras Domésticas da Bahia. E em 13 de maio de 1990, a gente criou o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia. O sindicato fez 23 anos de existência.
O trabalho doméstico em Salvador e na Bahia está ligado também ao trabalho das mulheres negras. Como a senhora vê essa relação?
Tem tudo a ver. Isso passa pela questão de gênero, raça e classe. A maioria dos trabalhadores domésticos é de mulheres de raça negra. E ainda há a questão de classe. Uma classe que é discriminada, que não é vista como uma categoria que faz parte da classe operária brasileira. E faz, sim. Nós contribuímos para a economia brasileira. Contribuímos para que outras mulheres possam sair de suas casas para trabalhar fora. Participamos da educação dos filhos das mulheres de classe média.
De que forma a Fenatrad e os sindicatos tiveram participação na elaboração da PEC das Domésticas?
Estamos envolvidas nesse projeto desde 1985, quando entregamos uma proposta de emenda constitucional. Na Constituição de 1988, a gente já conseguiu alguma coisa. Foi um processo de negociação como agora. Fomos para Brasília muitas vezes. Em 1988, tivemos que abrir mão e deixar o adicional noturno e as horas extras para um outro momento. Só conseguimos garantir salário mínimo e folgas. E ficou todo o resto engavetado. Mas nunca perdemos a esperança. O avanço foi maior a partir do governo Lula. Eu já tinha tomado posse como presidenta da Fenatrad. Fizemos várias audiências públicas, pedimos audiências com todo mundo. Cobramos da Organização Internacional do Trabalho, desde 1995, a proibição do trabalho infantil. Com o governo Dilma, os avanços continuaram. Foi um longo processo. Foi muita luta, de muitos anos.
Qual foi o maior benefício para as trabalhadoras domésticas com a PEC?
Acho que o que vai mudar mesmo é a mentalidade. É isso que transforma. Se a mentalidade da sociedade mudar, aí tudo muda. Mas se a mentalidade não mudar, vamos continuar conquistando leis, e as leis vão ficar no papel. Se o conjunto dos três poderes, que decidem e votam as leis, não mudar de mentalidade, então vai ficar sempre na mesma situação.
Uma das críticas feitas à PEC é a multa do FGTS, de 40% sobre o valor recolhido. Quem é contrário argumenta que as domésticas não aferem lucro ao patrão e por isso a multa não deveria ser aplicada. Como a senhora enxerga essa questão?
A multa de 40% é uma medida de proteção ao trabalhador doméstico. Se todos os trabalhadores têm, por que a doméstica não pode ter? E esse valor não será pago todo mês. Os patrões vão pagar quando a trabalhadora for dispensada, e uma trabalhadora pode ficar 10, 20 anos em um mesmo local. É um direito que já está valendo desde que o FGTS se tornou opcional. Alguns patrões já faziam o recolhimento do FGTS. Há casos de patrões que já pagaram a multa quando o sindicato homologou demissões. Abolir a multa tiraria o direito de empregados que já têm o FGTS. Se isso ocorrer, a Fenatrad vai entrar na Justiça contra o Congresso.
Se existisse a PEC há 40 anos, a senhora teria passado por tudo que passou?
Se existisse a PEC, eu não teria começado a trabalhar antes dos 10 anos, porque a PEC proíbe o trabalho infantil. Eu estaria estudando e poderia escolher se seria advogada, médica, doméstica, o que eu quisesse. Depois de adulta, eu poderia estudar à noite, sem desistir da minha escolaridade porque a patroa não poderia impedir que eu estudasse. Então, com certeza, eu não teria passado por muita coisa que passei. Tem gente que está achando a PEC muito rápida. É rápida para quem não viveu a situação do trabalho doméstico.