O sociólogo espanhol Carlos Pietro expõe como suas pesquisas se modificaram a partir do trabalho junto a colegas feministas. Assim se tornou possível para ele o estereótipo que delineia a palavra “trabalhador” e aquilo que exclui a “trabalhadora” que, além disso, carrega exclusivamente os cuidados imperativos do lar e da família.
Por Veronica Gago, do jornal Página/12
A reportagem é de Veronica Gago, publicada no jornal Página/12, 17-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A crise do trabalho nas últimas décadas arrastou também o trabalhador em sua marca paradigmática: o operário masculino e provedor. Essa crise não deixou indenes as ciências sociais em suas diversas versões disciplinares. Segundo o sociólogo espanhol Carlos Pietro, especialista na relação entre emprego e gênero da Universidade Complutense de Madri, a mudança foi abrupta: “A partir dos anos 80, irrompeu a questão do desemprego, e foi então que eu tive que sair da fábrica e começar a ver o que significa a existência social em termos mais amplos, porque o desemprego obriga a isso: a se estudar seu impacto na cotidianidade, além do espaço formal do trabalho”.
No entanto, essa crise do trabalho assalariado, fabril e majoritariamente masculino não acaba por ser entendido e se tornar mais visível do que ao calor das lutas feministas das últimas décadas. Prieto, influenciado pela socióloga e feminista francesa Margaret Maruani, diz: “Ao conectar o trabalho como atividade produtiva com a vida das pessoas, descubro o papel central da mulher na sociologia do emprego, e isso reposiciona tudo”.
Convidado pela Universidade de Buenos Aires e pela Universidade de San Martín para dar uma série de conferências, Prieto – afiliado à comunista Confederação Sindical de Comissões Operárias – propõe que as mulheres vão hoje na vanguarda das lutas sindicais porque são elas que formulam as reivindicações em termos qualitativos.
Eis a entrevista.
Em que sentido as lutas feministas influenciaram em seu trabalho teórico?
Nós, da sociologia do trabalho, acreditávamos saber o que era um trabalhador e o havíamos universalizado. Mas recém depois entendemos que esse trabalhador masculino existia porque havia uma figura feminina em um âmbito “extralaboral”. É preciso dizer que, pelo menos na Europa, durante quase um século e meio, o movimento operário não teve competência como ator social privilegiado da cena política. A questão do conflito era precisamente até que ponto se reformava a sociedade para integrar a classe operária e superar a ameaça da revolução proletária. A mulher, sem dúvida, estava presente, mas não era percebido como um problema. O que eu quero dizer com isso? Que, por exemplo, quando começa a se definir na Europa, no começo do século XX, o que é um trabalhador, o que fica definido nas leis que regulam o trabalho a partir de então, decide-se que o que será protegido é o trabalho realizado fora do lar. Inclusive os trabalhos de mercado que se fazem dentro do lar não são levados em conta.
É preciso recordar que, então, era muito forte o trabalho domiciliar realizado para o mercado e, no entanto, foi excluído. Aqueles que realizavam esse trabalho no lar – mesmo que não fosse a casa própria – eram majoritariamente mulheres. Esta clara e plena separação era assumida pelo movimento operário sem nenhum tipo de questionamento. Eu trabalhei muitos textos do começo do século XX em que as declarações de operários espanhóis abundam sobre o fato de que a mulher só trabalha “fora” por força maior, porque senão, quando eles chegavam do trabalho, quem lhes faria a janta? Quem arrumaria suas calças? Esse pensamento penetrava a sociedade de cima abaixo e o movimento operário em seu conjunto. Até os anos 70, a história política e social é quase que exclusivamente a do conflito operário. Recém a partir dessa década, o movimento feminista conquista a visibilidade das mulheres. É uma mudança não teórica, de cabeças iluminadas, mas sim ligada ao movimento social.
Isso coincide com o início do desemprego como fenômeno mais extenso…
A partir da sociologia, isso implica em começar a traçar diferenças, porque o desemprego não afeta por igual a todos os grupos sociais: o trabalho deve ser complexificado como relação social e já não só como atividade, e a visibilidade das lutas das mulheres afeta muito essa reconceitualização. Até os anos 70, o desemprego tinha uma definição keynesiana: quem busca trabalho e não o encontra. Mas quando a mulher começa a entrar na cena trabalhista massivamente percebe-se que a sua relação com a atividade e com a inatividade é muito mais flexível. O homem, pelo contrário, sempre está definido: ou está empregado ou está desempregado. E, “por definição”, o homem não é inativo. A mulher, historicamente, é percebida partindo da inatividade em termos econômicos, porque assim é considerada a atividade no lar. Por isso, suas posições são sempre mais ambíguas. E isso leva a que uma desempregada não seja exatamente o mesmo que um desempregado.
Além disso, como socialmente os homens foram sendo definidos como os grandes responsáveis para conseguir os recursos, isso faz com que as crises de emprego, quando afetam os homens, sejam muito mais duras do que para as mulheres. Por exemplo, há pouco fizemos um grupo de discussão com desempregados, e um homem que tinha um filho de 20 anos contou que sua obsessão era quando o jovem chegava em sua casa e o via sentado, porque não podia deixar de se perguntar: “O que esse filho da puta estará pensando de mim?”.
Quais são as diferenças no desemprego para as mulheres, então?
Quando as mulheres estão desempregadas, sua atividade doméstica se incrementa exponencialmente. Isso não acontece com os homens. E mais: quando analisamos a situação de homens e mulheres que trabalham em tempo integral, as mulheres continuam trabalhando muito na casa. Isto é, não é uma questão mecânica entre trabalho fora e dentro do lar: trata-se de conflitos sociais sobre o pacto entre os gêneros.
O senhor defende que há mais “tolerância social” quando a precariedade laboral recai sobre as mulheres…
Na medida em que se acredita que, se a mulher não trabalha profissionalmente ou fora do lar, sempre lhe restam as tarefas de dona de casa, pois então não é tão grave se ela não encontrar emprego, ou, mais ainda, se as condições desse emprego não forem tão boas. É uma tolerância social de q
ue, se o problema do desemprego afeta sobretudo às mulheres e os jovens, não é tão grave. É uma consequência da cultura trabalhista androcêntrica para a qual ainda hoje os homens são os sujeitos centrais do trabalho. Tudo isso muda rapidamente e dia a dia, mas também tem a ver com o fato de que, no modelo social mediterrâneo – que é o da Argentina também -, diferentemente de certos países do norte da Europa, a família ocupa ainda um lugar central para a atenção das necessidades das pessoas. Isso significa que são quase sempre as filhas as que se ocupam de seus pais e mães mais velhos.
O que privilegiamas empresas que não contratam mulheres, mesmo quando estas cobram menos salário por um trabalho igual?
Uma das respostas possíveis é que nenhuma empresa considera as características das trabalhadoras como se fossem algo objetivo, mas sim a partir daquilo que imaginam ou acreditam que elas deveriam ser. Por isso, não se contrata simplesmente homens e mulheres determinados, mas sim homens e mulheres a partir das características imaginadas e atribuídas a cada gênero. Nesse sentido, acredito que não é possível entender o emprego sem uma análise das relações sexuais no âmbito da família. Há alguns anos, conversando com o responsável de recursos humanos do banco BBVA, ele me dizia que era partidário da incorporação de mulheres contra a opinião do resto de seus companheiros, porque se dava conta, quando as entrevistava, que elas ofereciam uma visibilidade de competência notavelmente superior. Mas, então, qual é o problema? Ele me respondia: “Eu sei que, em médio prazo, o homem nunca vai falhar. Se eu contrato alguém para estabilizar a empresa e para que faça carreira nela, tenho a certeza, quase de 100%, de que o homem não vai me desapontar. Com a mulher, você nunca está seguro. Talvez em um momento ela decida ser mãe ou voltar para o lar”. Com isso, quero mostrar novamente que não se trata de questões objetivas de qualificações, mas sim de ideias que se tem sobre os gêneros.
Se não podem ser pensados como compartimentos separados, como o senhor incorpora no mesmo nível de análise o âmbito da produção e o da reprodução?
Analisando como se reparte o emprego do tempo, por meio da metodologia de pesquisas de emprego do tempo que medem cada dez minutos do que as pessoas fazem durante as 24 horas, o que permite sair das abstrações. Acredito que é um método interessante, porque, de outra forma, alguém que trabalhe fora do lar costuma responder que trabalha o que o seu contrato indica, e se é alguém que trabalha no lar esse tempo nunca pode ser calculado. Em troca, medindo cada dez minutos, não há forma de abstrair o que você faz. Aí se observa que a quantidade de horas dedicadas ao trabalho profissional por parte dos homens e das mulheres é muito diferente. Mas o que mais difere é a quantidade de horas dedicadas ao trabalho doméstico. E não se pode entender o emprego sem essa diferença. Não se pode trabalhar profissionalmente do mesmo modo se, além disso, deve-se dedicar quatro ou cinco horas diárias para o trabalho doméstico. Tudo isso também está segmentado por idade. Hoje, na Espanha, 65% das mulheres casadas ou ajuntadas que tenham 30 e 40 anos são “ativas”. Isso era inimaginável há três décadas atrás.
O senhor enfatiza que essa diferença de emprego do tempo pode ser vista sobretudo nos “cuidados imperativos”, isto é, aqueles que não se pode deixar de fazer.
É que isso pode ser visto claramente, por exemplo, em casais profissionais, em que ambos trabalham, diante de situações muito precisas. Se telefonam da creche ou da escola porque aconteceu alguma coisa com o filho ou a filha, telefonam para quem? Para a mãe. E quem vai? A mãe. Ninguém irá colocar isso em dúvida. O mais difícil de superar é o que se dá por óbvio. O dia em que deixe de ser óbvio que se o filho ou a filha se sentem mal é preciso chamar a mãe vai ser uma mudança revolucionária. O que eu quero dizer é que essas são situações que colocam em questão toda a organização social, a própria vida, e não só o trabalho.
O senhor escreveu uma frase chamativa: que as mulheres são o último resíduo da classe operária. O que quer dizer?
Acredito que seja assim porque são elas que têm capacidade de formular reivindicações qualitativas. Por exemplo, na questão do tempo. Esta antes era uma reivindicação androcêntrica: pedia-se sempre menos tempo de trabalho, concentrado nos mesmos dias da semana. Isto é, tentava-se conseguir trabalhar menos horas sem importar os turnos: se fosse possível baixar para 35 horas a semana laboral graças ao fato de reparti-la em turnos diversos, isso não era um problema, e ninguém colocava em questão. O que não era objeto de reivindicação era a questão de como o tempo de trabalho estava ordenado. São as mulheres que, como têm que compaginar o trabalho profissional com a vida pessoal e/ou familiar, propõem que não se poder levar em conta só a quantidade de horas, mas também o momento, sua própria ordem. Nesse sentido, as mulheres são a nova ponta de lança do movimento sindical. Entrevistei várias vezes a responsável das Comissões Operárias do sindicato dos bancos e foi ela que me disse: “Somos nós que propomos as questões mais novas com relação à qualidade das nossas preocupações, que apontam para uma igualdade concreta: por exemplo, como organizamos o tempo para que nos seja permitido viver”.
Fonte: Mercado ético – http://mercadoetico.terra.com.br
(Envolverde/IHU – Instituto Humanitas Unisinos)