Primeira mão: “Queremos promover uma federação de fundos de mulheres de língua portuguesa”

Amalia Fischer é um dos rostos do fundo Elas+. Incorpora o poder transformador da filantropia. Garante que o futuro passa por criar uma federação de fundos de mulheres de língua portuguesa.

Fernanda Mira, Contributor

23 Setembro, 2023 12:05

Amalia Fischer é um dos rostos do Elas+ que quer criar uma federação de fundos de mulheres de língua portuguesa.

Numa sociedade caracterizada pelo aumento das disparidades sociais e das desigualdades de género, o fundo Elas+ surge como um farol de esperança e progresso. Fundado no Brasil em 2000 por cinco ativistas de diferentes origens sociais e culturais, esta iniciativa pioneira tem desempenhado um papel fundamental no apoio a grupos liderados por mulheres.

As fundadoras do Elas+ – Amalia Fischer, Izabel Cristina Ferreira, Madalena Guilhon, Neusa das Dores Pereira e Raquel Martins Silva – reconheceram a necessidade urgente de apoiar grupos informais de mulheres. Desde o início, uma das principais características do fundo tem sido o compromisso de proporcionar acesso direto a recursos para uma ampla gama de organizações.

Uma das primeiras batalhas foi contra a pobreza e a fome, refletindo o compromisso da organização em abordar questões sociais urgentes. Ao falar em exclusivo à FORBES, sobre os primeiros dias, Amalia Fischer, uma das fundadoras, relembra como montaram uma assembleia diversificada de ativistas, incluindo mulheres negras e brancas, todas identificadas como lésbicas. O seu objetivo comum era desafiar as normas sociais e dar voz a grupos marginalizados. Como Fischer relata, “Estamos nisto há 23 anos até agora, e está funcionando”.

O fundo navegou nas transformações sociais rápidas ao longo dos anos, tornando-se uma organização consolidada e firme – uma raridade entre as entidades filantrópicas. Fischer discute como o poder político reage ao seu trabalho, enfatizando que o Elas+ mantém interações mínimas com o establishment político. Embora se envolvam com algumas parlamentares feministas para discutir a presença das mulheres na política, os estatutos da organização proíbem o apoio a partidos políticos, uma vez que a organização é composta por mulheres de várias afiliações políticas.

Mas a ativista, apesar do sucesso, garante que no seu trabalho continua a sentir-se “como uma Dom Quixote, sempre a lutar contra moinhos de vento”.

Expandir a visão Elas+

À medida que olha para o futuro, a organização pretende expandir o seu alcance para além do Brasil. Parceiro da Humanity Summit, que teve lugar esta semana em Faro e Lisboa, o Fundo Elas+ tem como próximo objetivo marcar presença em Portugal, concentrando-se no apoio a mulheres migrantes, mulheres negras, mulheres ciganas, pessoas trans e comunidades intersexo.

Através da colaboração com parceiros e partes interessadas locais, o Elas+ quer trazer o seu modelo filantrópico bem-sucedido para Portugal. A organização espera catalisar uma rede de fundos de mulheres em países de língua portuguesa, com grande enfoque em África, promovendo, em última instância, uma maior equidade de género e justiça nestas regiões.

“Queremos abrir a organização, mobilizar recursos e ajudar pessoas. É começar tudo de novo. Agora já com a experiência do Brasil com resultados positivos. E não será só em Portugal, queremos também chegar a África, que se abram fundos de mulheres na África onde se fala português. O nosso objetivo é que se faça uma federação de fundos de mulheres de língua portuguesa”, conclui.

Amplificar as vozes das mulheres

O Elas+ adotou uma abordagem única à filantropia, caracterizada pela defesa e pelo envolvimento direto. Amalia Fischer, 67 anos, explica como inicialmente participaram em conferências e eventos filantrópicos convencionais, onde levantavam a mão para fazer uma pergunta simples, mas profunda: “Por que vocês não apoiam as mulheres?”. Sempre destacando o facto de que as mulheres serem os principais agentes de transformação social no Brasil, chamando a atenção para questões como feminicídio, violência sexual e violência doméstica. “As nossas perguntas não tinham caráter confrontacional, mas visavam promover a reflexão”, recorda a mexicana-nicaraguense que está no Brasil desde a década de 1990.

Esta abordagem paciente e persistente – “um trabalho de formiguinha”, vinca – finalmente rendeu o reconhecimento da organização. À medida que os direitos das mulheres avançavam globalmente, organizações filantrópicas começaram a reconhecer a importância de apoiar iniciativas lideradas por mulheres. Fischer destaca que a ascensão das mulheres a cargos de liderança em diversos setores também contribuiu para que esse reconhecimento fosse real.

Catalisador para a justiça social

A iniciativa Elas+ representa o surgimento da filantropia de justiça social no século XXI. Organizações como esta são o coração da sociedade civil, efetuando mudanças e tornando o mundo um lugar mais justo e equitativo. A sua forma única de filantropia baseia-se na crença de que aqueles que compreendem as necessidades e realidades de uma comunidade são os próprios membros dessa comunidade. Como Fischer afirma com eloquência: “Elas sabem do que precisam. Nenhum fundo ou partido político pode impor essas necessidades. Apoiamos organizações de mulheres – registadas legalmente ou não, coletivos de pessoas trans e intersexo – com base no que elas expressam como sendo as suas prioridades e das suas comunidades.”

fonte: https://www.forbespt.com/primeira-mao-queremos-promover-uma-federacao-de-fundos-de-mulheres-de-lingua-portuguesa/

Ela criou primeiro fundo para direitos de mulheres e pessoas trans do país

Lígia Nogueira, da ECOA

QUESTÕES DE GÊNERO

Amália Fischer, criadora do fundo Elas+ Imagem: Divulgação

A mexicana-nicaraguense Amália Fischer, 66 anos, chegou ao Brasil para um doutorado em comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Era a década de 1990, uma época em que o país estava começando a se abrir para a ideia do investimento social. Ela desembarcou por aqui depois de 20 anos dando aulas na faculdade de ciências políticas e sociais da Universidade Nacional Autônoma do México, período no qual conheceu e se tornou amiga da artista feminista Lucero González, criadora do primeiro fundo para mulheres da América Latina — o Fondo Semillas.

Foi inspirada no Fondo Semillas que Amália decidiu se juntar a outras quatro mulheres, todas ativistas e feministas lésbicas, para criar o primeiro fundo independente voltado exclusivamente para a promoção de direitos de mulheres e pessoas trans no Brasil. A ideia era promover e fortalecer o protagonismo, a liderança e os direitos das mulheres, mobilizando e investindo recursos em suas iniciativas coletivas.

“No México eu era próxima da filantropia direcionada e feita por mulheres. Sabia da importância de construirmos um espaço para termos recursos para nossas ações. Quando cheguei aqui, Fernando Henrique Cardoso havia acabado de assumir a presidência, e, dada a trajetória da luta feminista no Brasil e toda a construção do terceiro setor nesse momento da democracia brasileira, comecei a falar com várias feministas sobre a importância de criarem esse fundo. A maioria achava que isso era loucura, que não ia funcionar. Eu insisti tanto que elas falaram: ‘Faça você’. Então eu aceitei o desafio”, conta Amália em entrevista a Ecoa.

Enquanto tocava a sua tese de doutorado sobre o movimento feminista na América Latina no período entre 1975 e 1995, ela se uniu a Neusa das Dores Pereira, Raquel Silva, Izabel Ferreira e Madalena Guilhon para fundar o Elas+. “São mulheres negras e não negras que vêm de diferentes movimentos: feministas, de mulheres, da cultura, das rádios comunitárias etc.”

A principal estratégia da iniciativa, desde então, é mobilizar recursos não só no Brasil, mas também no exterior, para investir nas ações desses grupos. Empresas, fundações, organismos internacionais e pessoas físicas são parceiros de investimento para que grupos e organizações de mulheres e pessoas trans atuem em seus territórios.

“Começamos apoiando as mulheres que têm menos acesso aos recursos: negras, lésbicas, pobres, com valores entre R$ 2 mil e R$ 5 mil”, conta a coordenadora-geral, acrescentando que não foi fácil fazer os doadores entenderem a importância da equidade de gênero.

“As mulheres tinham os mesmos direitos que os homens de acordo com a Constituição, então havia uma ideia de que não era mais necessário falar sobre direitos das mulheres, de que ser feminista era algo fora de moda, que não fazia sentido. E dentro do terceiro setor não se apoiavam causas menos palpáveis como o feminismo, direitos humanos e socioambientais. Se apoiava muito mais a conservação do meio ambiente do que as pessoas que ajudavam na conservação dos biomas, que vivem nos biomas, que lutam por eles”, avalia Amália.

Um dos maiores desafios foi posicionar os direitos das mulheres dentro do âmbito da filantropia e do investimento social privado.Amália Fischer, fundadora do Elas+

Em 21 anos de atuação, o Elas+ tem realizado diálogos com participantes de diferentes grupos para escutar ativistas, intelectuais e especialistas convidados. A ideia é que, a partir dos conhecimentos combinados, seja feito um mapeamento das necessidades de investimento. Os temas levantados contribuem para a elaboração de editais.

Amália Fischer, criadora do fundo Elas+ Imagem: Divulgação

No ano passado, a iniciativa fortaleceu sua governança com três novas conselheiras — duas pessoas trans negras e uma indígena —, reafirmando o seu compromisso com a diversidade, segundo Amália. “Aprofundamos a confiança nas mulheres, sensibilizamos novos parceiros e lançamos o maior edital de toda a nossa existência.” O Mulheres em Movimento distribuiu mais de R$ 4 milhões em doações diretas para o fortalecimento institucional de 119 grupos e organizações lideradas por mulheres e pessoas trans.

Como funciona o fundo?

Elas+ lança dois ou três editais por ano sobre diversas temáticas — eles são públicos e as organizações e coletivos podem se inscrever por meio de uma plataforma. Agora, conta Amália, o foco está em fortalecer organizações mais antigas e coletivos. A seleção é feita por um comitê diverso formado por mulheres que não estão entre aquelas que enviaram propostas, para que haja a maior transparência possível.

“Além disso, o Elas+ reúne as mulheres selecionadas para conhecerem as propostas umas das outras e articularem um trabalho em rede para potencializar recursos e ações. Nós temos um sistema de acompanhamento e de avaliação dos resultados com o intuito de que os coletivos e as organizações se vejam a si mesmos e possam melhorar sua atuação. O intuito é fortalecer esses grupos, muito mais do que fiscalizar.”

Um dos diferenciais do fundo é apoiar tanto organizações quanto coletivos informais que atuam entre os grupos de mulheres negras, indígenas e LBTs. “Os coletivos sabem exatamente o que se precisa nos territórios, nas comunidades, nos movimentos, muito mais do que quem financia e quem doa”, diz Amália.

Apoio a associações e grupos de mulheres indígenas

Marciane Tapeba, 30 anos, coordenadora da Articulação das Mulheres Indígena do Ceará/ Imagem: Divulgação

A Articulação das Mulheres Indígenas do Ceará (AMICE) foi uma das contempladas pelo fundo em 2020. Entre outras iniciativas, o grupo realizou um mapeamento da violência contra a mulher indígena, em uma ação até então inédita no estado.

“Tanto o Ceará quanto o Brasil têm números altos de violência contra a mulher e no território indígena não é diferente”, afirma Marciane Tapeba, 30 anos, coordenadora da AMICE e vice coordenadora da Associação das Mulheres Indígenas Tapeba (AMITA).

O grupo também recebeu apoio para participar da Marcha Nacional de Mulheres Indígenas, em setembro de 2021. “Foi muito importante ter esse apoio enquanto movimento e poder trocar com outras mulheres em Brasília para fortalecer a nossa luta em nível nacional.”

Impactos da pandemia

Em novembro de 2021 o Elas+ divulgou os resultados de uma ampla pesquisa sobre o impacto da pandemia de covid-19 em organizações da sociedade civil lideradas por mulheres e pessoas trans no Brasil. O estudo — um retrato de 953 organizações da sociedade civil (OSC), formais e informais — mostra como o contexto sociopolítico e econômico brasileiro levou à perda de direitos e à precarização.

A pesquisa levantou dados sobre trabalhadoras domésticas, profissionais do sexo, mulheres negras, empreendedoras sociais, mulheres com deficiência, jovens, mulheres do campo, quilombolas, ativistas da arte e da cultura e traz informações até então inéditas sobre organizações lideradas por mulheres indígenas. Um dos diferenciais é a contribuição sobre as organizações informais, grupos sociais que não integram bancos de dados de pesquisas. O resultado pode ser conferido aqui.

fonte: https://www.geledes.org.br/ela-criou-primeiro-fundo-para-direitos-de-mulheres-e-pessoas-trans-do-pais/

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