Estado, Participação, corrupção: Tempo de Alternativas

Eneida Vinhaes Bello Dultra
Mestranda em Direito da UnB

Às vezes parece que a corrupção ficou entranhada nas instituições públicas e que restam poucas esperanças para que seja apartada do sistema, organicidade e funcionamento estatal. Essa impressão – da permanência no tempo e em nossa história – de que as relações corruptas degeneram o Estado no suposto cumprimento de suas funções e da finalidade livre do atendimento ao interesse público, é mesmo apenas uma impressão ou é realidade? Será uma possibilidade.

 

A formação do Estado sempre esteve com a atribuição de ser uma estruturação formal para mediação do exercício do poder. No entanto, sempre foi alvo da intensa sedução exercida por grupos que já usufruíam algum poder econômico ou mesmo político. Assim era justificado o uso da força para a manutenção do mesmo grupo dominante, contra mudanças que eram operadas pela sociedade, algumas vezes lentamente; outras radicalizadas.

Essa constatação serve para narrar a formação e o desenvolvimento do Estado brasileiro. Marcado desde o início pela concentração de poder em mãos de poucos – e normalmente de quem concentrava poder econômico – a atuação das instituições estatais esteve muito próxima de interesses pela manutenção, para que tudo permanecesse como era para ficar como está.

Positivas mudanças processadas para a quebra da concentração de poderes, em nossa trajetória histórica, exigiram grandes esforços de mobilização das pessoas, no entanto, foram pouquíssimos momentos. As ocasiões em que o poder estatal foi “posto em xeque” ou não alcançaram êxito – como as várias revoltas populares de norte a sul do país, que tinham uma extensão regional – ou foram golpes praticados por quem não tinha nenhum perspectiva democratizante ou de anseio e apoio popular legitimado – como foram os atos desde a proclamação da República, o golpe dos anos 30 por Getúlio Vargas e o golpe militar de 64.

Contudo, lentamente, fomos experimentando vivências democráticas mais ou menos vitoriosas, em atos de resistência contra os abusos de poder, na defesa de direitos específicos ou em lutas políticas pela ampliação da atuação estatal em prol das demandas de redução de desigualdades.

Há pouco mais de vinte anos, registramos uma das maiores dessas intervenções positivas rumo a mudanças nas relações de poder. No processo constituinte de 1987-88 – resultando na Constituição Federal vigente – foi viabilizado o fortalecimento das instituições e práticas democráticas em nosso país. A presença do caráter participativo da sociedade interferindo nos debates e na construção do texto constitucional comprovou uma experiência democrática para além da representativa, que apontava para uma nova concepção da constitucionalidade contemporânea.

Nas décadas seguintes foram incorporadas a participação e controle social às estruturas de Estado e suas ações. Cada vez mais a atuação das instituições vem sendo questionada quanto ao atendimento da diversidade de interesses sociais. O abandono dos privilégios que alimentavam grupos específicos e dominantes passou a ser exigência da sociedade aos gestores públicos.

Já se dispõe de nítidas demonstrações que os tempos de satisfação com a democracia representativa já não são contemporâneos, nem se contemporizam. A expectativa por governantes responsáveis e as cobranças dos movimentos sociais em estabelecer a relação dialógica para controle e elaboração das políticas públicas são processos em curso. Alguns deles estimulados pela criação de instâncias institucionalizadas participativas – fóruns, conselhos – outros gerados por manifestações espontâneas da sociedade civil, organizada ou sem ordem, pacíficas ou violentas. Todas pretendem mudanças na gestão do Estado e na atuação das instituições ou revelam as insatisfações com os métodos não inclusivos e que não reconhecem a pluralidade que nos constitui.

O sentido de “esfera pública” torna as dimensões políticas, produtivas, institucionais, democraticamente variadas. Passamos a reconhecer o plural dessa esfera. São ambientes multiplicados e distintos que podem ser deliberativos e, assim, flagrantes exercícios de poder político em cada um deles. A democracia que se quer efetiva passa a espelhar a sociedade e são reconhecidas as várias esferas públicas existentes. Algumas dessas ambiências estão em formas institucionalizadas; outras, mais próximas da mobilidade e espontaneidade social.

Passa a ser percebido que a dignidade esperada para a governabilidade não pode ter uma estrita compreensão de eficiência de políticas governamentais – produzidas tecnicamente pelos “burocratas” do Estado – mas de construção e definição de políticas públicas, concebidas sob o exercício dialógico, nas bases da transparência e do controle social. Ganha contornos de realidade na efetividade social.

Sem soluções mágicas ou instantâneas, a sociedade precisa enfrentar os pontos de tensão na construção de sua própria dinâmica, para que as decisões das instituições públicas sejam coerentes com a defesa dos direitos fundamentais de todas/os e, ao mesmo tempo, respeitem o exercício da vontade política manifestada socialmente.

As pessoas ou grupos vão ocupando os espaços ao assumirem a titularidade desse poder político e, ao interferir nas decisões e rumos do Estado, passam a refletir sobre as condições da realidade e sobre a necessidade de efetivação dos direitos, garantindo processos de inclusão e legitimação.

Um elemento importante nesse contexto é a garantia da liberdade de expressão no regime democrático: avança para assegurar que as vozes sejam escutadas, não mais abafadas. A diversidade das vozes, das reivindicações e dos espaços para manifestação também variados vão compondo novas estruturas de poder e decisão, e assim também novos instrumentos que protestam contra as mesmas concentrações de poder.

É preciso observar de que a existência de interesse comum presente na sociedade não necessariamente homogeiniza a função das pessoas na esfera pública. Essas experiências não podem ser confundidas com um “conformismo artificial da sociedade de massas”, como nos ensinou a filósofa Hannah Arendt, pois, a tendência desse conformismo seria afastar da esfera pública os embates da política e o que se pretende em legítimos espaços públicos é o contrário: que eles sirvam para a reflexão coletiva, inclusive da diversidade dos interesses.

Para reconhecer a importância de preservar a liberdade política, é preciso ter mecanismos para a cidadania expressar sua opinião, sem medo.

No Brasil, em que pese haver uma contextualização constitucional que abriu portas da democracia a partir de 1988, as opções materiais ainda enfrentam o pouco estímulo do indivíduo para refletir sobre o exercício de escolhas representativas ou a participação direta. Isso torna o aparato político-jurídico formal de participação e controle social ainda não incorporado nas práticas sociais legítimas.

O discurso de cidadania participativa só encontra efetividade e legitimidade se estiver próximo do poder decisóri

o do Estado. Com as tensões sociais no mundo contemporâneo, o elemento “povo” é composto de sujeitos que se reivindicam, individualmente ou em grupo, organizados institucionalmente ou de maneira espontânea, como legítimos autores e destinatários do direito. E assim deve ser, para a construção, o controle ou o aperfeiçoamento de políticas públicas e ações governamentais que espelhem os anseios da sociedade e que ela interfira e se reconheça. E isto não é fácil!

Controle social no Estado Democrático de Direito

Para influir na construção de políticas/programas/ações governamentais e ocupar espaços estratégicos de influência no Estado é usado o chamado “diálogo social” como um instrumento desta relação. Não basta o discurso e a regulação formal para a vivência democrática contemporânea.

Há várias formas da sociedade participar. No Legislativo, por consultas populares, projetos de iniciativa popular (ambos com assinatura de 5% do eleitorado de diferentes estados), referendos, plebiscitos, Tribuna Livre e participação coletiva em audiências públicas ou nas Sessões Legislativas. Perante o Poder Executivo, com denúncia de irregularidades, direito de petição para órgãos públicos, obtenção de informações e certidões. Pode atuar também no uso de instrumentos judiciais: ação popular, ação civil pública, habeas data, habeas corpus. Uma importante modalidade também é provocação do Ministério Público com representações para apuração de fatos ilegais em desacordo com princípios e leis vigentes.

Talvez a mais enfática das possibilidades de participação seja na presença em Conselhos ou Fóruns, inclusive podem ter a criação provocada em relação a vários assuntos de interesse local. Dentro deste contexto, é indispensável que atores sociais participem, no seu local de moradia ou trabalho, nos espaços de diálogo social, nas audiências públicas entre outros. O salto de qualidade na destinação das políticas e na aplicação dos recursos públicos para ter efetividade social poderá ser atingido através da interação da comunidade com poderes públicos.

As investidas de organizações sociais e mesmo dos órgãos de controle interno dos Poderes têm desenvolvido instrumentos úteis visando a transparência na aplicação dos recursos e a destinação das políticas públicas. O recente Portal da Transparência criado pela Controladoria Geral da União – CGU permite o acompanhamento dos recursos federais a todos os municípios e estados e pode ser acessado, com certa facilidade, a partir de seu endereço eletrônico: www.portaldatransparencia.gov.br

Afinal, o aprimoramento da vivência democrática é alternativa para afastar a corrupção impregnada e desfazer a degeneração que causou. Esses são tempos presentes. Lançar mão das possibilidades existentes para ampliar a participação pode romper inércias, reafirmar e ampliar direitos, garantir que vozes e tensões sociais não sejam dissolvidas pela força, mas pelo diálogo e vejamos o que acontecerá depois!

 

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