Uma indígena para democratizar a educação peruana

Ángel Páez, da IPS

Lima, Peru, 2/9/2010 – Hilaria Supa rompeu muitas barreiras em sua vida. Agora acaba de vencer mais uma, em um êxito sem precedentes conhecidos no mundo. Esta indígena de língua quéchua que nunca foi à escola preside a Comissão de Educação do Peru.

hilaria_supaE tem claro o que fará à frente desse órgão: democratizar o sistema educacional peruano, que define como “excludente e discriminatório”, algo em que esta antiga camponesa do departamento de Cusco é grande especialista.

Com suas coloridas vestimentas indígenas, Hilaria se move tranquilamente pelo monumental Palácio Legislativo no centro histórico de Lima, onde há poucos anos o pessoal da segurança provavelmente impediria sua entrada, e agora preside uma comissão com o voto unânime de seus membros.

A deputada do Partido Nacionalista Peruano (PNP) enfrenta, entretanto, críticas dos legisladores do governante Partido Aprista Peruano (PAP) e da Aliança pelo Futuro, dos grupos partidários do ex-presidente Alberto Fujimori (1900-2000), que cumpre uma longa condenação por corrupção.

Alegam que sua falta de estudos formais a incapacita para presidir uma comissão determinante na fixação do rumo da educação do país.

“Quem me critica?”, pergunta Hilaria à IPS, em entrevista na própria sala onde funciona a Comissão. E ela mesma responde: “Os doutores que já ocuparam esta presidência e nada fizeram pelos povos que represento e que são historicamente marginalizados”.

“Sou uma lutadora social pelos direitos dos camponeses pobres e esse título não se consegue em uma universidade”, explicou.

Hilaria nasceu há 52 anos na comunidade de Huallococha, na província de Anta, a quatro horas por terra da cidade de Cusco, que fica 1.100 quilômetros a sudeste de Lima.

Desde menina sofreu vexame por parte dos poderosos. Sua família trabalhava para um fazendeiro da localidade que abusava dos camponeses.

Recordou que “não me fiz rebelde em um partido político. Vivi na carne a marginalização pelo simples fato de ser mulher camponesa de língua quéchua e pobre. Para os da minha condição, a educação está proibida. Cheguei ao Congresso pelo voto de meus irmãos e minhas irmãs (indígenas) e a eles represento”, disse Hilaria.

A legisladora fujimorista Martha Hildebrandt, linguista e ex-presidente da Comissão de Educação, fustigou a escolha de Hilaria dizendo que é “inapropriada”. Por sua vez, Mauricio Mulder, da bancada do PAP, afirmou que “se tem algo que ela não conhece é sobre educação”.

“Sou autodidata, e digo isso com orgulho”, respondeu Hilaria.

O legislador aprista Wilimer Calderón, doutor em educação, afirmou à IPS que a escolha de Hilaria é “um ato de demagogia” e uma amostra de como seria um eventual governo do PNP, “entregando posições de importância a pessoas sem preparo”.

“Também sou de língua quéchua e nasci na serra de Ancash, mas estes não são méritos suficientes. É necessário contar com rigorosa formação científica”, argumentou.

“A exclusão não se combate colocando os representantes dos excluídos em um cargo decisivo como a Comissão de Educação, mas sim alguém preparado para enfrentar os desafios do sistema educacional peruano”, acrescentou Wilimer.

Dos quase 30 milhões de habitantes do Peru, 28,6% são quéchuas e 10% são aymaras e nativos de grupos minoritários. A eles devem ser somados outros 35% de população mestiça, em um país tão multiétnico quanto desigual, onde 78% dos indígenas são pobres.

Hilaria sabe das críticas e as analisa. “Noto nessas palavras uma carga de racismo”, disse. “Assim nos falam sempre: ‘vocês são índios, incapazes de fazer alguma coisa’. Não, senhores doutores. Agora é nossa vez. Logo verão os resultados”, afirmou.

A mais velha dos 14 filhos de Eufrasio Supa e Elena Huamán, foi educada pelos avós maternos, que menciona como seus pais, e ninguém precisa contar a ela que os camponeses de sua região trabalham 17 horas diárias para sobreviver, porque fez isso desde criança.

Desde adolescente promoveu a auto-organização para enfrentar as arbitrariedades dos fazendeiros e das autoridades cúmplices de seus desmandos, que também sofreu pessoalmente, incluindo o assassinato de seu avô por defender os direitos dos camponeses.

Depois trabalhou em serviços domésticos em Cusco e Lima, de onde regressou aos 22 anos, após a morte de seu companheiro em um acidente, e com duas filhas e um filho, que também morreu jovem. Uma ferida que prefere não mexer.

Começou, então, a se reunir com mulheres de sua comunidade para organizar diferentes formas de protesto e criar restaurantes populares para crianças.

No final dos anos 80, presidiu o Comitê Micaela Bastidas, de Anta, e em 1991 se converteu em secretária de organização da Federação de Mulheres de Anta (Femca).

“Como dirigente da Femca, organizamos a alfabetização em quéchua de mulheres e crianças, a realização de paineis sobre os produtos agroquímicos nocivos e a divulgação dos benefícios da medicina tradicional”, contou.

Por seu entusiasmo e energia, Hilaria se converteu logo em uma dirigente reconhecida em todo o departamento de Cusco, o que lhe valeu um convite para a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, em 1995.

Ali também chegou Fujimori, “para explicar seu planos supostamente destinados a tirar da pobreza e da ignorância as mulheres camponesas por meio do planejamento familiar. Todos aplaudiram”, contou.

“Porém, não disse que o método que usaria era a esterilização forçada”, afirmou.

Uma das duas mil vítimas desse programa foi uma filha de Hilaria, que organizou as mulheres e empreendeu uma luta frontal contra o regime de Fujimori e contra as esterilizações.

Em 2009, o Ministério Público arquivou uma denúncia penal contra três ex-ministros de Saúde de Fujimori, que aplicaram a esterilização com mentiras, mas a legisladora afirma que continuará com seu empenho em busca de justiça.

“Existe um mandato do Tribunal Interamericano de Direitos Humanos para que o Estado peruano puna os responsáveis por esse crime que afetou minhas irmãs camponesas e eu continuo para que se faça justiça”, afirmou com determinação.

Em 2006 chegou ao parlamento pelo PNP, cujo líder, Ollanta Humala, ganhou o primeiro turno eleitoral naquele ano, mas depois perdeu para o atual presidente, Alan Garcia. As previsões são de que, se for candidata nas eleições legislativas de 2011, será reeleita com alto número de votos.

Ao começar o último ano da atual legislatura, foi escolhido como v

ice-presidente do Congresso o fujimorista Alejandro Aguinaga, um dos denunciados pela esterilização em massa.

“Quando cruza comigo vira o rosto, olha para outro lado por pura vergonha”, disse Hilaria. “Fico indignada de vê-lo sentado na mesa diretora. Farei com que pague por sua responsabilidade no dano a milhares de mulheres”, advertiu.

Hilaria tem outra boa notícia para compartilhar. Sua biografia “Os Fios de Sua Vida” será reeditada em espanhol, após uma restrita publicação em Cusco há alguns anos, graças ao impacto de suas traduções para o inglês e o alemão.

“Me contaram que meu livro é usado nas escolas” da Alemanha, disse orgulhosa. “Como dizem esses doutores que minha experiência de vida não serve para nada? Estão errados e têm muito que aprender”, afirmou Hilaria. Envolverde/IPS

FOTO
Crédito: Virgilio Grajeda/IPS
Legenda: Hilaria Supa na frente de um quadro na sede do Congresso.

(IPS/Envolverde)

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