Aborto e segurança pública no Brasil

Editorial CCR 17/08/2010 – Comissão de Cidadania e Reprodução

Em nosso País, as práticas discursivas em relação ao abortamento vêm saindo das esferas tradicionais pelas quais são tratadas, para se configurarem como uma questão de segurança nacional. E isso não é bom. A Rede Globo, em seu programa ́Fantástico ́, em 01 de agosto, apresentou um conjunto de textos e imagens sobre a ação de clínicas clandestinas de aborto, que serviram para compor o objetivo geral daquela edição do programa: dar dimensões dramáticas à falta de segurança em certos locais do País em função de um sistema que vive em torno da ineficiência, da violência e da corrupção.

 

Alimentado durante a semana pelo caso da morte do filho da atriz Ciça Guimarães, em que policiais teriam exercido a prática da corrupção, os casos das clínicas de aborto serviram para trazer ainda mais luz ao efeito desejado – dar dimensões pesadas ao problema da segurança pública. A morte do jovem carioca, e as cenas das clinicas serviram aqui, portanto, como o cavalo de santo para introdução da temática principal: o combate à ́formação de quadrilhas organizadas para o exercício do crime ́.

Nas últimas décadas construiu-se globalmente um debate sobre o que seriam as novas questões que afetariam as políticas de segurança: não mais as velhas questões de guerra, mas as que dizem respeito ao cotidiano das pessoas, como: o combate às drogas ilícitas e ao terrorismo, à ação das guerrilhas, ao tráfico de pessoas, à comercialização de armas. E é, a meu ver, desta perspectiva, que se deseja tratar o aborto neste Pais. Lamentavelmente, porque, no início da semana já era possível constatar a falsa-eficácia da imagem projetada: quem esteve no centro do debate nas esquinas? Policiais do Pará, estado aliás, governado pelo PT.

E quem saiu para dizer sobre a situação das mulheres? Quem se horrorizou com o fato de elas se sujeitarem a situações limite como as apresentadas – clínicas em más condições, médicos operando talvez com baixa qualificação técnica, farmacêuticos equacionando seu problema e o de suas clientes, desinformação, riscos, maus tratos? Enfim. No caso do aborto, conhecimento científico e ferramentas para colocá-lo em prática estão mais do que distantes das mulheres pobres que, além de tudo, são exploradas economicamente. Enquanto isso, o “crime” não é “crime” para aquelas que são atendidas por profissionais capacitados e em hospitais de excelência. Nada contra. Ao contrário. Desde que todas tenham o mesmo direito. Quanto aos policiais do Pará, possivelmente terão suas vidas cruelmente modificadas. Foram escolhidos como bois de piranha através de uma câmara oculta, que sem preocupação ética, colocou mais uma vez na tela a vida risonha e ingênua de algumas pessoas.

A saúde e a dignidade das mulheres percorrem cenários macabros. O Estado Brasileiro pode e deve ofertar às mulheres mais direitos, a exemplo do que vários paises já fizeram. E não precisa de atalhos para isso. Se não o fizer, aí sim, poderá responder por crime de lesa humanidade: tem a vergonhosa atitude de manter suas mulheres pobres sob ameaça de tortura e maus-tratos, empurradas à vala comum do aborto ilegal e inseguro. Lembrete: uso aqui a definição da OMS – que trata como aborto inseguro aquele feito por pessoas sem habilidades necessárias e/ou em ambiente sem padrões médicos mínimos.


O Brasil tem tecnologia, recursos humanos e financeiros, estruturas físicas e cenários éticos que apoiariam a mudança da perspectiva da atenção ao aborto no País, de tal forma que ele deixe de ser um problema de saúde pública não se cristalize como um problema de segurança humana mas se transforme em mais um direito conquistado.


Como se diz: é só querer.


Margareth Arilha Pesquisadora do NEPO (Núcleo de Estudos de População) da Unicamp e integrante da CCR (Comissão de Cidadania e Reprodução)

 

fonte:  www.ccr.org.br

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