As feridas das mulheres não fecham em Ciudad Juarez

Daniela Pastrana, da IPS

Ciudad Juarez, México, 10/6/2010 – “Às vezes, fico muito animada, outras não ligo para o trabalho na comunidade e até para a vida”, disse Paula Flores, convertida em emblema da demanda por justiça para as mulheres desaparecidas e assassinadas nesta cidade mexicana, na fronteira com os Estados Unidos.

juarez-mexico“Às vezes, toco fundo”, reconheceu à IPS esta mulher de 52 anos em sua casa, com a voz sumida e um olhar tristíssimo, parado em algum lugar do deserto que rodeia o bairro de Lomas de Poleo, localizado no subúrbio oeste de Ciudad Juarez, a meia hora do centro e onde a pobreza é evidente.

A areia que cobre suas ruas sem pavimentação é uma extensão do longo deserto, que nas últimas duas décadas foi testemunha de uma das manifestações mais grotescas e impunes da violência sexista no mundo.

Paula Flores é protagonista de um documentário apresentado no Terceiro Festival Internacional de Cinema em Direitos Humanos, realizado entre 21 de maio e 3 deste mês, na Cidade do México, 1.840 quilômetros ao sul de Juarez.

Dirigido por José Bonilla, o filme “A carta. Sagrario nunca morreu para mim” recupera, por meio da mãe, os 12 anos de batalha por justiça da família de Sagrario González Flores, violentada, torturada e assassinada em 1998.

“Juarez é um tema que questiona a todos nós”, disse o diretor à IPS.

Sagrario desapareceu em 16 de abril de 1998, dois meses antes de completar 18 anos. Seu martirizado corpo foi encontrado no deserto 14 dias depois. Era a quarta dos sete filhos de Paula Flores e Jesús González. O pai se suicidou em 2006, incapaz de superar a dor.

A família chegou a Juarez em 1995, procedente do vizinho Estado de Durango, com o sonho de melhorar de vida na cidade onde prosperavam as maquiadoras.

Na década de 70, a cidade se converteu em terra fértil para essas montadoras de bens para exportação, que gozam de isenções, não têm regulamentações e utilizam mão-de-obra barata, em troca de gerar emprego, especialmente feminino.

“Não sabíamos o que nos esperava aqui”, sussurrou Flores.

Em fevereiro de 2005, a família conseguiu que a polícia detivesse José Luis Hernández, vulgo El Manuelillo, conhecido no bairro e dedicado a atravessar pessoas para os Estados Unidos. Esteve desaparecido sete anos depois que o crime aconteceu e a investigação familiar conduzia a ele.

Em seu primeiro depoimento, Hernández disse que dois homens lhe pagaram US$ 500 para que entregasse a jovem, que foi abordada ao sair da maquiadora, pouco depois das três horas da tarde, e, uma vez que tivera seu turno mudado repentinamente, seu pai não a estava acompanhando.

Durante o julgamento mudou seu depoimento e disse ter agido sozinho. Agora cumpre pena de 28 anos de prisão em uma prisão distante, no Estado de Jalisco, no litoral do Pacífico.

“O caso não está resolvido”, disse a mãe, mostrando recortes de jornais que registram 12 anos em busca de justiça.

“Nunca foi feita uma reconstituição dos fatos e, quando interpelei Manuelillo, ele me disse que os milones (policiais) lhe disseram para declarar isso a fim de encerrar o caso”, assegurou.

Desde 1993, quando foram conhecidos os primeiros assassinatos de mulheres trabalhadoras, os crimes por violência de gênero não pararam e as diferentes organizações de vítimas concordam que já superam o milhar.

Os dados oficiais reportam quase 800 mulheres mortas desde então. Porém, as autoridades não as registram como feminicídios, a forma como passaram a ser definidos os assassinatos por razões de gênero ou por ódio sexista por causa dos crimes de Juarez.

Os órgãos governamentais apenas reconhecem que mais de 8% das mortes femininas podem ser atribuídas a “crimes passionais” ou a “problemas familiares” e 12% a causas “não identificadas”.

A taxa atual de assassinadas em Juarez, de 23 para cada cem mil mulheres, triplica o índice que a Organização Mundial da Saúde considera como epidemia. Mas está muito abaixo dos 354 assassinatos para cada cem mil homens.

Segundo um estudo do não governamental Observatório de Segurança e Convivência Cidadã de Juarez, os assassinatos de mulheres aumentaram 579% desde que a cidade ficou em meio à guerra contra os cartéis do tráfico de drogas.

Das 259 mulheres assassinadas nos últimos dois anos, 51 foram totalmente atribuíveis à violência de gênero.

“A impunidade é a chave do feminicídio em Juarez”, resumiu para a IPS Patricia Ravelo, que fez toda a pesquisa para o documentário protagonizado por Flores.

No dia 16 de novembro de 2009, o Tribunal Interamericano de Direitos Humanos emitiu uma sentença condenatória contra o Estado mexicano pelo assassinato de três mulheres em Campo Algodonero, em Juarez, na primeira sentença desse tipo no mundo, que estabeleceu reparações com perspectiva de gênero.

Contudo, os que têm de atender à sentença inapelável são funcionários que foram denunciados por apoiarem a impunidade dos feminicídios.

Em especial, as famílias das vítimas apontam Arturo Chávez, atual Procurador Geral mexicano, que era procurador do Estado de Chihuahua, onde fica Juarez, quando ocorreram os assassinatos em Campo Algodonero.

Sua nomeação foi criticada duramente pelas organizações de mulheres em Chihuahua. No entanto, denunciaram, o governo do presidente conservador Felipe Calderón, que não buscou uma aproximação com as famílias, ignorou os protestos.

“Estamos enfrentando o fato de o Estado mexicano resistir a cumprir a sentença”, disse David Peña, advogado da Anistia Internacional.

Paula Flores apresentou, em 2007, uma queixa à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e criou a Fundação Sagrario, que busca articular uma proposta cultural como alternativa para a violência.

Além disso, desde 2002, em Lomas de Poleo funciona de forma oficial o jardim de infância María Sagrario Flores González, que acolhe 250 menores de seis anos.

“Algumas famílias já se cansaram e as pessoas se acostumaram aos feminicídios”, reconheceu Flores, para quem a estratégia dos governos central e estadual é minimizar o fenômeno e desprestigiar as organizações.

“Mas minha filha não é um mito, como diz o governador (César Duarte), que as mortes em Juarez são um mito,. Eu não a inventei. Sagrario viveu e tinha muita vontade de viver”. IPS/Envolverde

FOTO
Crédito:
Daniela Pastrana/IPS
Legenda: Paula Flores diante da foto de sua filha assassinada.

(IPS/Envolverde)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *