Companheiros que matam

Apenas nos seis primeiros meses de 2010, oito mulheres foram assassinadas no DF pelos próprios maridos ou namorados. Especialistas afirmam que essas tragédias são, normalmente, precedidas por agressões verbais, morais e físicas

  • Noelle Oliveira e Manoela Alcântara – Correio Braziliense


    Carlos Silva/Esp. CB/D.A Press
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    Ontem, familiares e amigos de Ana Paula Mendes de Moura, morta em 2008 pelo ex-companheiro, fizeram manifestação pedindo justiça


    Lágrimas, revolta e busca por justiça. É essa a rotina dos familiares de mulheres que perderam a vida vítimas da violência de maridos, namorados e companheiros. Nos últimos seis meses, foram oito mortes de mulheres nessas mesmas circunstâncias no DF. Apenas nesta semana, dois casos trágicos ocorreram. Em Sobradinho, a tarde de ontem foi marcada pela tristeza durante o sepultamento de Genilda dos Santos Moreira, 40 anos, morta com cerca de 40 facadas pelo ex-marido Marcos Elias Moreira Filho, 47, na noite da última quarta-feira. 

    Em Planaltina, a família de Lucimar Nunes Viana, 31 anos, passou o sábado ansiosa por notícias sobre o paradeiro de Edson Nogueira, 41. O marido da auxiliar de serviços gerais é o principal suspeito do assassinato da companheira, morta com pauladas na cabeça, na última terça-feira. Segundo a polícia, ele teria escondido o corpo da vítima sob o sofá da sala da casa onde os dois viviam. Ontem, o advogado do acusado ligou para o delegado de plantão da 14ª Delegacia de Polícia (Gama), Sérgio Bautzer, e informou que Edson se apresentará durante a semana. O dia em que se entregará, no entanto, só será marcado amanhã. “Ele não deu mais detalhes, nem informou onde estava o suspeito”, afirmou Bautzer. 

    No Guará I, por sua vez, a família de Ana Paula Mendes de Moura, 33 anos, mobilizou-se em frente à casa onde ela morava. A mulher foi assassinada, também a facadas, pelo ex-companheiro, o vigilante Marcelo Rodrigues Moreira, 33, em dezembro de 2008. O crime aconteceu em um movimentado restaurante da 404 Norte. O julgamento do acusado será no próximo dia 14, no Fórum de Brasília. Quase um ano e meio após a tragédia, a família da vítima quer mobilizar novamente a sociedade em busca de justiça no Tribunal do Júri na próxima semana. “Histórias como essa estão se repetindo todos os dias no DF. É uma dor que não cessa e deixa muitas sequelas; nossa vida mudou completamente. Isso tem que parar”, explica Fátima Mendes, 47 anos, irmã de Ana Paula. Hoje, é ela quem cria os três filhos da irmã, de 11, 16 e 17 anos. 

    Para a advogada da subsecretaria de Proteção as Vítimas de Violência (Pró-Vítima), Iara Lobo Figueiredo, que será assistente de acusação no julgamento do vigilante, é comum ver nos casos de violência contra mulher os roteiros das histórias se repetirem. Normalmente, as vítimas já eram agredidas pelos companheiros, buscavam a separação e trabalhavam fora de casa, despertando os ciúmes dos homens. “Mais do que nas companheiras, esses homens pensam apenas em si mesmos. Depois do crime, eles se arrependem porque percebem que acabaram com as próprias vidas e não com as de outras pessoas”, analisa a advogada. O vigilante responderá por homicídio qualificado e, caso seja condenado, poderá pegar até 30 anos de prisão. Como foi detido em flagrante, permanece preso desde que cometeu o crime. 

    Perfil violento
    Para tentar justificar a recorrência da violência contra a mulher é comum associar as agressões ao uso de bebidas, drogas ou entorpecentes — como nos casos de Genilda dos Santos e Ana Paula Mendes, atacadas pelos maridos bêbados. Porém, a socióloga da Universidade de Brasília e sub-secretária de planejamento da subsecretaria das Mulheres do DF, Lourdes Bandeira, afirma que essa situação está mais ligada ao sentimento de posse nutrido pelos companheiros do que a outros fatores. Segundo ela, os últimos casos de assassinato mostram que a “insubordinação” da parceira é o principal motivador dos autores dos crimes. “A gente pensa que a pessoa tem algum desvio, mas, na verdade, o parceiro faz dessa mulher seu objeto de posse e, quando ela começa a ter uma autonomia, ele se revolta em uma fúria incontrolável que o faz perder a razão”, explica a especialista. 

    Porém, os ataques não são súbitos, estão sempre condicionados a ações anteriores que identificam o perfil violento dessas pessoas (Veja quadro). Homens que mantêm as mulheres em confinamento ou em condição de possessão exagerada são sérios candidatos a se tornarem agressores. “No fundo, é a posse. Uma sociedade sexista onde os homens não respeitam as mulheres. Apesar da Lei Maria da Penha, ainda existem essas situações”, diz. A Lei nº 11.340, identificada com o nome de Maria da Penha, trouxe grande avanço para as mulheres, mas elas ainda precisam driblar a discriminação, o medo e a pressão familiar. “Se na minha época existisse a lei, eu teria denunciado e saído da relação, mas as pessoas, principalmente as de classe mais altas, têm dificuldade em denunciar”, afirma a mulher que inspirou a criação da norma legal,Maria da Penha Maia(1)

    Segundo ela, a violência entre as mulheres com mais condições financeiras é a menos divulgada pelas vítimas devido ao medo de abalar o próprio status social ou de perder o contato com o ciclo de amigos. Um agressor também pode ser um homem bem-sucedido, com graduação e bom ciclo de amizades. “A violência doméstica existe no universo, no mundo, em todas as classes sociais. O temperamento e a cultura dão ao homem o poder para que ele se ache o dono de algumas mulheres e cometa esses crimes”, enfatiza Maria da Penha. 

    Decisão polêmica
    Em 26 de fevereiro, os ministros da terceira seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiram, por seis votos a três, que as ações penais decorrentes de lesões corporais leves ocasionadas por violência doméstica só podem ter prosseguimento caso haja representação por parte da mulher agredida. Com isso, apesar de a Lei Maria da Penha prevê o andamento do processo contra o agressor independentemente da vontade da vítima, a jurisprudência determina que
    as ações sejam engavetadas quando a mulher assim optar. 

    Uma regressão na Lei, segundo Maria da Penha. “Essas mulheres são coagidas e reprimidas para retirar a queixa, isso não deveria existir. Há a pressão familiar e dos amigos”, relata, indignada. “Nada impede que a mulher retome a relação com o parceiro depois da queixa. Ela não precisa retirar a ocorrência”, complementa. 

    1 – Quem é?
    A farmacêutica cearense Maria da Penha Maia sofreu agressões do marido por vários anos e duas tentativas de homicídio em 1983. Na primeira, ficou paraplégica. Após voltar para casa de cadeira de rodas, o marido tentou eletrocurá-la. O homem só foi punido após 19 anos de julgamento e ficou apenas dois anos em regime fechado.

    O QUE DIZ A LEI
    A Lei Federal nº 11.340, de 7 de agosto de 2006,conhecida como Lei Maria da Penha, estabelece mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. A legislação criou os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e alterou o Código Penal brasileiro, possibilitando que os agressores possam ser presos em flagrante ou tenham a prisão preventiva decretada. O artigo 5 do texto configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano material ou patrimonial.

    Como identificar o agressor

    Uma agressão violenta não acontece sem antecedentes. Normalmente, são antecedidas de ofensas verbais e morais; 

    Um agressor tem o sentimento de posse sobre a pessoa. Ele tenta controlar os horários, o estilo das vestimentas, as amizades e os contatos no trabalho; 

    Um pedido de perdão deve significar o fim de qualquer insulto ou agressão. A reincidência desses casos deve deixar a vítima atenta 

    Justificar que agressões ou ciúme excessivo são uma forma de amar e cuidar da pessoa é um indício de possessão descontrolada 

    O companheiro que inibe a mulher com a vigilância constante também pode ter um perfil agressivo. É aquela pessoa que busca saber, a todo momento, para onde a esposa/namorada vai, o que fez, com quem ou como. 

    Depoimento

    Gustavo Moreno/CB/D.A Press
    maria-penha


    “A cultura machista faz com que a mulher não denuncie porque tem vergonha do fracasso matrimonial ou porque vai perder na partilha. Além disso, muitas acreditam que, depois do pedido de perdão, o marido vai melhorar. No fundo, as mulheres que são assassinadas ou sofrem agressões graves já passavam por ocasiões de violência doméstica há muito tempo. 

    Na história das agressões, existe um ciclo da violência, que começa com um insulto verbal, seguido do perdão. O segundo insulto é de maior intensidade e vem o perdão novamente e, daí por diante. No meu caso, as agressões aconteceram numa época em que não existia nem Delegacia da Mulher. Eu quis me separar, mas não consegui. Não havia dependência financeira e mesmo assim não consegui. 

    Hoje, acredito que é papel do Estado cuidar das mulheres que sofrem violência. Elas têm um agressor e são pressionadas por ele, e nessa situação de violência precisam ter o acompanhamento do Estado para se reerguerem.” 

    Maria da Penhabioquímica, inspiradora da lei que leva o seu nome

     

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