Novelas brasileiras: vivendo a vida por intermédio das lentes do racismo

Diony Maria Soares*

Coincidências não existem. O recado costuma ser repassado por seres humanos abençoados pela sabedoria cósmica. Chegou, então, Passione. Uma saga que coloca a Itália no primeiro plano, no melhor estilo rememorar metaforicamente a política de imigração promovida pelo Estado brasileiro no início do século XX como estratégia do biopoder, tendo em vista expectativas de branqueamento da população nacional. É sempre bom salientar, porém, que a referida estratégia não vingou. Ou, como diz Sueli Carneiro (2006): Viveremos!

Todas e todos lembramos, em tese, do escarcéu acontecido no final do mês de abril de 2009, quando veículos de comunicação noticiaram que a atriz Taís Araújo havia sido escolhida para ser a primeira protagonista negra de uma novela produzida para ser veiculada no horário nobre do canal hegemônico de televisão no Brasil, a Rede Globo. Evidentemente, o pessoal calejado colocou as madeixas de molho: Protegei-nos Nossa Senhora do Rosário! O que teremos que (não) assistir dessa vez!

“É otimo ter a primeira heroína negra. Taís Araújo, na novela das 9. Seria mais maravilhoso ainda se não fosse notícia. O fato de ser notícia revela o nosso estágio no combate ao racismo: ainda estamos engatinhando”, ponderou a atriz Elisa Lucinda à revista Claudia, na edição de setembro de 2009, que pela primeira vez colocou a fotografia de uma mulher negra na capa: Taís Araújo.
Em janeiro de 2010, um artigo da pesquisadora Raquel Luciana de Souza destrinchou magistralmente artimanhas da violência simbólica manifestada na representação de gênero e raça apresentada nessa e em outras novelas afins.

As diversas capas de revistas que circularam na primeira semana de maio de 2010, antecipando para o público leitor o desfecho da fatídica novela das 9, atestavam o que tudo mundo já sabia. O protagonismo anunciado era mais uma estratégia de manutenção do discurso racista. Nestas capas, a fotografia da suposta heroína negra ou não ganhou destaque algum, chegando mesmo a passar despercebida, no fundo, no cantinho, pequenininha, quase imperceptível, ou simplesmente não foi incluída. Helena? Nem inglês conseguia identificar.

As revistas optaram por imagens de atrizes brancas e atores brancos, com destaque para Alinne Moraes, Mateus Solano, Lília Cabral e José Mayer. As manchetes remetiam ao desfecho das personagens Luciana, Miguel, Tereza e Marcos.

Isso me fez lembrar de análise do papel do conceito de representação na questão do racismo feita por Tomaz Tadeu da Silva (1999, p.103). Segundo esse autor, “o oposto da representação racista de uma determinada identidade racial não é simplesmente uma identidade ‘verdadeira’ mas uma outra representação, feita a partir de outra posição enunciativa na hierarquia das relações de poder”.
Por sua vez, Michel Foucault (1999), ao sugerir o conceito de dispositivo, explicita que se trata de um conjunto estratégico dominante heterogêneo que engloba o dito e o não dito e tem por função responder a uma urgência determinada por momentos históricos específicos. Foucault entende que o dispositivo advém de uma exigência de rearticulações e ou de reajustamento de elementos heterogêneos, bem como consiste na re-utilização dos efeitos involuntários e negativos em uma nova estratégia que vai ocupar o espaço vazio ou transformar o negativo em positivo.

No Brasil contemporâneo, isso pode significar que a agenda política proposta pelos movimentos sociais para as relações étnico-raciais resultou em uma estratégia hegemônica, na qual a representação midiática da população negra mantém o mesmo padrão de escassez naturalizada e subalternidade, ainda que possa parecer – via discurso – que houve mudanças. O exemplo da vez foi a novela do horário nobre da Rede Globo que, felizmente chegou ao fim, não sem antes re-afirmar a que veio.

Neste sentido, nos momentos derradeiros da trama, coube também a personagem Teresa dar as coordenadas hegemônicas. Só para lembrar, Teresa é aquela “mesma” que, em plena semana da Consciência Negra, esbofeteou a personagem interpretada por Taís Araújo por não cumprir direitinho o seu papel de mulher negra subalterna/mucama/eterna cuidadora por todos os séculos e séculos.
No último capítulo, Teresa afirmou algo do tipo: “Nós nunca vamos ser amigas. Eu nunca vou perdoar você. O tempo talvez cure as feridas.” Helena, escancaradamente no papel de receptora da mensagem, proferiu algumas poucas palavras em resposta ao que foi dito. Na síntese, concordou. A meu ver, tinha no olhar um óbvio desconforto secular, um misto de medo, culpa e inadequação.
A altivez supostamente pretendida para Helena no primeiro capítulo, por intermédio da cena na qual a personagem concede uma entrevista, foi sendo suprimida ao longo da trama até exaurir-se completamente.

Falando no primeiro capítulo, não posso me furtar de fazer um contraponto a partir da trajetória da personagem Sandrinha, a irmã de Helena, interpretada pela atriz Aparecida Petrowky. A primeira cena de Sandrinha na novela foi emblemática. Ela fugia desesperadamente pelas vielas de uma favela e foi brutalmente esbofeteada por um policial.

Na última semana da trama, Benê, marido e grande amor de Sandrinha, interpretado pelo ator Marcello Melo Jr., foi assassinado. Morreu, logo após ter escolhido largar o mundo do crime. Viúva e triste, no último capítulo, Sandrinha elogia o filho do casal e comenta que está trabalhando como voluntária em uma comunidade carente.

Helena, por sua vez, quase passou despercebida no último capítulo. Engravidou. Um buquê de noiva apanhado em uma festa de casamento de casais coadjuvantes talvez indique que é a próxima a casar oficialmente. Pariu sem merecer representação do parto ou manifestações de regozijo familiar pela chegada de mais um membro. A abordagem dada ao bebê da personagem é também emblemática. A criança aparece rapidamente no colo do pai, um homem branco, no desfile de modas que fecha a trama. Só isso. Mais nada.

Ao contrário, a gravidez de Lucina, a personagem principal de fato, foi anunciada em uma refeição familiar. Os bebês mereceram imagens de ultra-sonografia, parto com forte teor de realidade, nomes próprios e as expectativas de felicidades por toda a vida manifestadas emocionadamente por bisavó, avó, avô, mãe, pai, amigos, médicos. Para uns, bons auspícios.

* Diony Maria Soares é doutoranda em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Referências

CLAUDIA. Pelo fim do racismo! Claudia defende esta causa. São Paulo: Editora Abril. ano 48. nº 9 set.2009. p.57.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 14 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documento de Identidade. Autêntica. Belo Horizonte, 1999.

CARNEIRO, Sueli. Viveremos. Correio Braziliense. Edição de 26 de maio de 2006. Disponível em http://www.geledes.org.br/sueli-carneiro/viveremos.html

SOUZA, Raquel luciana de. De Chica a Helena: Representações de gênero, raça e violência simbólica na mídia brasileira. 12 de janeiro de 2010. Disponível em: http://www.pambazuka.org/pt/category/features/60861/print

 

fonte: Irohin – www.irohin.org.br

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