A IGREJA E A MÍDIA – Entre o silêncio e o crime

Alberto Dines em 6/4/2010 – Observatório da Imprensa

O Vaticano está desnorteado. Como Estado e como religião. A inédita situação ficou visível na Sexta-Feira Santa, quando o reverendo Raniero Cantalamessa – pregador da Casa Papal há 30 anos – comparou as críticas mundiais à hierarquia católica com as acusações e calúnias que sofreram os judeus durante séculos.

“O uso de estereótipos, a passagem da culpa e responsabilidade pessoal para a culpa coletiva lembram os aspectos mais vergonhosos do anti-semitismo”, disse o pregador. Horas depois ele foi desautorizado pelo porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi.

Intelectual de alto nível, o sacerdote franciscano Cantalamessa serviu-se de uma metáfora no mínimo insultuosa: ao longo de mais de um milênio as acusações aos judeus de praticarem assassinatos rituais (justamente na época do Pessach sempre próximo da Páscoa cristã) partiram de delirantes pregadores que percorriam a Europa clamando por castigos para os assassinos de Cristo. Impossível registrar o número depogroms, chacinas, linchamentos, violações e expulsões que se seguiram às desvairadas prédicas.

Uma coisa é certa: o preconceito cristão anti-semita solidificou-se e tornou-se institucional. Sobre ele erigiram-se nos séculos 15 e 16 as inquisições ibéricas e, no fim do 19, o anti-semitismo nacionalista e “científico” do qual o nazismo é o fruto mais sanguinário.

Jogo político

O reverendo Cantalamessa, não obstante os atributos intelectuais e espirituais, pecou: mentiu, caluniou, tentou subverter a história imaginando que com isso barraria a onda de críticas contra a tibieza da hierarquia católica diante dos abusos praticados por sacerdotes.

Foi um ato desesperado de um Estado que, de repente, se sente sitiado e vê-se obrigado a apelar para a religião que o sustenta. Desvendou a grande contradição que a ambos fragiliza. Religiões veneram monumentos sagrados, mas transcendem o espaço e o tempo; os mandamentos da fé não podem impor-se à legalidade dos Estados onde é praticada.

A omissão da hierarquia católica diante da avassaladora onda de abusos sexuais partiu de uma premissa enganosa que as Concordatas do Vaticano com países católicos – inclusive o Brasil – só aumentaram: as leis canônicas devem reger apenas a comunidade espiritual, os códigos civis regem as relações sociais. Abuso sexual é pecado, mas antes disso é crime e os crimes devem ser punidos mesmo quando praticados porcidadão especiais, os sacerdotes.

O celibato e os votos de castidade têm sido apontados como os principais responsáveis pelos desvios sexuais, pelos casamentos clandestinos de sacerdotes, pelo desestímulo às novas vocações e, sobretudo, pela evasão de religiosos já ordenados.

Esta é uma questão para os teólogos. O que tem garantido a impunidade dos pecadores e criminosos é uma questão política: raros são os Estados rigorosamente seculares. Nos Estados Unidos há um pseudo-secularismo que se mantém apenas como fator de equilíbrio confessional, controlador de eventuais hegemonias. Neste território semi-secular, vagamente laico, a igreja católica impõe os seus parâmetros, seus valores e suas leis. O mesmo acontece na Irlanda e na Alemanha. Nestas circunstâncias, até mesmo a mídia torna-se pseudo-secular, acomodando-se às dubiedades e ao jogo político delas resultantes.

Fanatismo e politização

Esta é a explicação para uma impunidade cínica que estimulou e agigantou a pedofilia. De repente, por casualidade ou causalidade estatística, a revelação e o choque nos dias mais sagrados do cristianismo.

Culpar o papa Bento 16 por esta situação é pérfido. O pontífice João Paulo 2º foi o grande protetor do padre Marcial Maciel, criador da Legião de Cristo. Quem puniu o mexicano e enquadrou publicamente sua entidade foi Bento 16 (ver “A `Legião´ desmorona, ninguém noticia“).

A igreja católica enredou-se na sua hegemonia, esta é a verdade. A saída irônica, paradoxal, seria abrir mão dela. O que poderia reverter a atual dinâmica antivaticanista e amenizar o estresse seria a compreensão de que Estados e instituições verdadeiramente seculares – sobretudo a imprensa – são capazes de divulgar com serenidade e punir com severidade os abusos cometidos sob o manto da religião.

Esta não é uma questão que se situa apenas no âmbito teológico ou canônico da igreja católica. Esta é uma questão política capaz de reforçar a espiritualidade das religiões e torná-las menos sujeitas ao fanatismo e à politização.

Martinho Lutero surgiu e fortaleceu-se no meio de um terremoto de idêntica dimensão.

 


IGREJA & PEDOFILIA
Uma chance de ouro

Por Gabriel Perissé em 6/4/2010 – Observatório da Imprensa

Em lugar de acusar a mídia de persegui-la, a igreja católica, diante do crime de pedofilia cometido por sacerdotes, tem a oportunidade única de, contando com apoio da própria mídia, lavar os paramentos em praça pública. Por que não dar início a uma reforma moral dentro de seus seminários, dentro de suas instituições? Por que não admitir que faltou interesse, faltou firmeza por parte do próprio Vaticano em investigar e punir os casos notórios de pedofilia? Todos, católicos e não católicos, aguardam respostas claras daqueles que, a começar pelos papas e bispos, em seus discursos e documentos, apelam para os direitos humanos, o direito à vida, o direito à liberdade.

O crime da pedofilia ocorre dentro da igreja católica, sim, e de outras igrejas, e de outros grupos religiosos, de escolas, de famílias etc. Não vem ao caso procurar saber quem ocupa o primeiro lugar das estatísticas (sujeitas a tanta falta de denúncias e informações!), não se trata de minimizar o que ocorre ali porque acolá a situação é mais grave. Esperamos que todos esses casos sejam denunciados, que as vítimas sejam socorridas, que os que correm risco sejam protegidos. Quanto à igreja, porém, espera-se mais, uma vez que ela própria se apresenta como referência moral. O mínimo que se exige, portanto, é que a Igreja, agora sem mais delongas ou ambiguidades, trate do assunto com rigor e coerênci

a.

Escândalos e imagem

A igreja preocupa-se com sua imagem institucional. Sob o pretexto de não causar escândalo, tentou abafar os casos, o que é ainda mais escandaloso. Padres foram transferidos de paróquias e dioceses, autoridades fizeram vista grossa, pessoas que se queixaram com o bispo não foram ouvidas, foi adotada, enfim, uma antiga atitude, bem típica da política eclesiástica, “prudencial”:sapere soprassedere.

Este “saber protelar”, que Ratzinger praticou em tantas ocasiões envolvendo questões doutrinais e de disciplina interna, a exemplo de outros bispos e papas, não deu certo desta vez porque desta vez prudente seria agir com rapidez. Está aí, para comprovar o erro do adiamento, o que aconteceu com os Legionários de Cristo, instituição que recebeu tanto apoio da Igreja e agora está definitivamente desmoralizada. Melhor (ou pior) exemplo do que este impossível. O tal adiamento prudencial fomentou a “cultura do silêncio”, silêncio que, ao se quebrar, provocou muito barulho, sobretudo num tempo em que tudo se torna público num clicar demouse. Até o insuspeito Olavo de Carvalho, noDiário do Comércio (31/03), aponta para a única saída decente: que os fatos sejam noticiados e esclarecidos.

A imagem da igreja católica sob Bento 16 está muitíssimo prejudicada. Este pontífice deve agora tomar providências, anunciá-las claramente, permitir que todos saibam, inclusive a polícia e a justiça. O problema do papa, contudo, é que, puxando o fio solto do tecido esfarrapado, faça-nos ver outra vez, de modo inegável, que a questão não se restringe a alguns padres de paróquia. Virão à luz novos nomes de altas autoridades, como já aconteceu antes. Autoridades coniventes ou, pior ainda, criminosos a merecer mais do que a punição canônica de se recluírem a um mosteiro e rezar pelo resto da vida, como aconteceu com o famigerado padre Marcial Maciel.

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Frei Betto *

Adital –

As sucessivas denúncias de pedofilia e abuso sexual cometidos por sacerdotes e acobertados por bispos e cardeais envergonham a Igreja Católica e abalam a fé de inúmeros fiéis.

No caso da Irlanda, onde mais de 2 mil crianças entregues aos cuidados de internatos religiosos foram vítimas da prática criminosa de assédio sexual, o papa Bento XVI divulgou documento em que pede perdão em nome da Igreja, repudia como abominável o que ocorreu e exige indenização às vítimas.

Faltou ao pontífice determinar punições da Igreja aos culpados, ainda que tenha consentido em submetê-los às leis civis. O clamor das vítimas e de suas famílias exige que a Santa Sé aja com rigor: suspensão imediata do ministério sacerdotal, afastamento das atividades pastorais e sujeição às leis civis que punem tais práticas hediondas.

A crescente laicização da sociedade europeia reduz drasticamente o número de fiéis católicos e a freqüência à igreja. O catolicismo europeu, atrelado a uma espiritualidade moralista e a uma teologia acadêmica, afastado do mundo dos pobres e imbuído de um saudosismo ultramontano que o faz ignorar o Concilio Vaticano II, perde sempre mais o entusiasmo evangélico e a ousadia profética.

Dominado por movimentos fundamentalistas que cultivam a fé em Jesus, mas não a fé de Jesus, o catolicismo europeu cheira a heresia ao incensar a papolatria e encarar o mundo não mais como vale de lágrimas e sim como refém de um relativismo que corrói as noções de autoridade, pecado e culpa.
Ao olvidar a dimensão social do pecado, como a injustiça, a opressão, o latifúndio improdutivo ou a apologia da desigualdade, o catolicismo liberal centrou sua pregação na obsessão sexual. Como se Deus tivesse incorrido em erro ao tornar a sexualidade prazerosa.

Como o Espírito Santo se vale de vias transversas para renovar a Igreja, tomara que as denúncias de pedofilia eclesiástica sirvam para pôr fim ao celibato obrigatório do clero diocesano, permitir a ordenação sacerdotal de homens e mulheres casados e ultrapassar o princípio doutrinário, ainda vigente, de que, no matrimônio, as relações sexuais são admissíveis apenas quando visam à procriação.

Ora, tivesse Deus de acordo com tal princípio, não teria feito do gênero humano uma exceção na espécie animal e, portanto, destituiria o homem e a mulher da capacidade de amar e expressar o amor por meio de carícias e incutiria neles o cio próprio dos períodos procriatórios dos bichos, o que os faz se acasalar.

Jesus foi celibatário, mas é uma falácia deduzir que pretendeu impor sua opção aos apóstolos. Tanto que, segundo o evangelho de Marcos, curou a sogra de Pedro (1, 29-31). Ora, se tinha sogra, Pedro tinha mulher. E ainda foi escolhido como primeiro cabeça da Igreja.

Os evangelhos citam as mulheres que integravam o grupo de discípulos de Jesus: Suzana, Joana etc. (Lucas 8, 1-3). E deixam claro que a primeira pessoa a anunciar Jesus como Deus entre nós foi uma apóstola, a samaritana (João 4, 39).

Nos seminários e casas de formação do clero e de religiosos é preciso avaliar se o que se pretende é formar padres ou cristãos, uma casta sacerdotal ou evangelizadores, pessoas submissas ao figurino romano ou homens e mulheres dotados de profunda espiritualidade evangélica, afeitos à vida de oração e comprometidos com os direitos dos pobres.

No tempo de Jesus, as crianças eram desprezadas por sua ignorância e repudiadas pelos mestres espirituais. Jesus agiu na contramão dos preceitos vigentes ao permitir que as crianças dele se aproximassem e ao citá-las como exemplo de fidelidade a Deus. Porém, deixou claro que seria preferível amarrar uma pedra no pescoço e se atirar na água do que escandalizar uma delas (Marcos 9, 42).

As sequelas psíquicas e espirituais daqueles que confiaram em sacerdotes tarados são indeléveis e de alto custo no tratamento terapêutico prolongado. As vítimas fazem muito bem ao exigir indenização. Resta à Igreja punir os culpados e cuidar para que tais aberrações não se repitam.

[Autor de

Um homem chamado Jesus (Rocco), entre outros livros.
Transcrito do jornal ‘Estado de Minas’ em 08/04/2010].

* Escritor e assessor de movimentos sociais

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