Respeitem a mulher

Maria Isabel da Silva
Juíza de direito, é titular da 1ª Vara do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Brasília/DF

Nesta semana, em que se comemoram os 100 anos da instituição do Dia Internacional da Mulher, nada mais adequado que implorar em nome de sua dignidade: respeitem a mulher. O apelo decorre do inconformismo de segmentos da sociedade que repudiaram o julgamento do REsp (recurso especial) 1097042, em 24/02, pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que firmou o entendimento de que é imprescindível a representação da vítima para a propositura da ação penal nos casos de lesões corporais leves decorrentes de violência doméstica. Nesse contexto, abre-se a possibilidade de a mulher se retratar da representação firmada na delegacia policial.

 

Com efeito, à mulher há de ser conferido o direito de decidir sobre a apenação do agressor, que pode ser o filho, a filha, o pai, o irmão, a neta, a nora — necessariamente não precisa ser o companheiro. Cuida-se de atitude que provém de seu empoderamento e, nesse caso, ela não necessita de relativização de sua autonomia, como querem alguns, que somente enxergam na punição do réu o antídoto para a violência doméstica.

É sabido que a sanção penal se tem mostrado ineficaz como medida pedagógica para aplacar a criminalidade. A cada dia, mais e mais infratores ingressam nos presídios e muitos dali saem com o firme propósito de dar continuidade à delinquência. Para eles não faltou a espada afiada da Justiça. E, nos casos de violência doméstica, não se dá o mesmo? Obviamente que sim.

Em se tratando de lesões leves, não será a fixação da pena ao final do processo que vai levar à reflexão o agressor. Por certo, não podem passar ao largo da lei os refratários, devendo-lhes ser imposta a devida resposta à agressão perpetrada, além da frequência a programas de recuperação e reeducação.

Porém, para os casos em que o conflito é ato isolado na vida conjugal, por vezes o simples fato de o companheiro ser instado a comparecer na delegacia, conforme relato das vítimas em juízo, é o suficiente para que ele reflita sobre seu comportamento e o papel que deve desempenhar na relação familiar. Quantas noticiam a mudança na rotina conjugal ou familiar depois de judicializada a violência, mesmo em sede de medidas protetivas! Outras tantas apontam que o acompanhamento psicossocial trouxe normalidade ao lar que, antes, vivia situações de completo desajuste.

De se registrar que, em muitas ocasiões de inacolhida da retratação da mulher, quase sempre o resultado levava à absolvição do agente. Ora a vítima não comparecia à audiência designada, caso em que era ameaçada de ser “conduzida debaixo de vara” pela acusação, ora narrava versão diferente dos fatos noticiados para a autoridade policial. E, em virtude disso, era advertida com a possibilidade de instauração de ação penal por denunciação caluniosa, cuja pena é muito mais grave que a do crime em que figurava como vítima.

Fora isso, o interesse da vítima não está atrelado exclusivamente à punição criminal de seu agressor. Vai além. Na maioria das vezes, ela o quer livre de violência. Recorde-se, aqui, a lição extraída do voto da lavra do ministro Arnaldo Esteves Lima, no HC 110965, 5ª T., STJ: “O processamento do ofensor, mesmo contra a vontade da vítima, não é a melhor solução para as famílias que convivem com o problema da violência doméstica, pois a conscientização, a proteção das vítimas e o acompanhamento multidisciplinar…são medidas juridicamente adequadas, de preservação dos princípios do direito penal e que conferem eficácia ao comando constitucional de proteção à família”.

Ademais, num cenário de violência doméstica decorrente do consumo do álcool e drogas, a medida que se revela mais eficaz é a assistência psicológica, com vistas a restaurar o equilíbrio emocional e o tratamento adequado aos alcoolistas e drogaditos.

Por fim, endurecer a lei, como pretendem muitos, para suprimir da mulher o poder de decidir se haverá ou não a continuidade do processo em que é vítima de agressões leves é, de um lado, subestimar a capacidade feminina de autodeterminação e, de outro, apenas tornar mais fácil a tarefa do julgador e do Ministério Público, que não serão obrigados a ouvi-la para constatar se a retratação decorre de seu livre arbítrio.

Para nós, que lidamos com esse tipo de lide, acertadamente e em boa hora, a questão da natureza jurídica da ação penal nas lesões corporais leves em situação de violência doméstica, ao ser aclarada, privilegiou a mulher, que não quer ser privada de sua liberdade, da tutela de suas ações e da decisão sobre os rumos do seu destino. Essa mulher que, segundo o IBGE, representa 51% da população brasileira, 47,2 % da força de trabalho disponível, é mais escolarizada do que os homens, gerencia mais de 38% dos lares brasileiros e é recordista em aprovação em vestibulares, deve ser remetida à condição de “relativamente incapaz”? Por óbvio, que não! Por favor, respeitem a mulher. 

 

 

artigo publicado no jornal Correio Braziliense em 13/3/2010

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