Especialistas apontam ligação entre comportamento machista e abuso

Gilberto Costa* – Agência Brasil

São Luís – Numa manhã de quinta-feira, a adolescente Samira aguardava sob escolta policial o início da sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Maranhão, que apura casos de abuso sexual.

Naquele dia, os parlamentares aguardavam o depoimento do pai da jovem, acusado de abusar da menina desde que ela tinha 8 anos de idade. O pai chegou a ser preso por cinco meses.

No colo de Samira, uma criança de cerca de 3 anos. A garotinha é, ao mesmo tempo, sua filha e meia-irmã. Ou seja, a criança é filha e neta do pai de Samira, um pequeno agricultor de 43 anos.

No início do ano passado, ele migrou de Pau d’Arco (PA) para Colinas, no sudeste do Maranhão, levando a jovem. Pouco tempo depois, ele foi denunciado à CPI pela irmã mais velha de Samira.

Os depoimentos iam ser tomados em separado, mas o abusador não compareceu. O destino de Samira, que aguarda a comprovação da paternidade, não pode ser revelado, pois ela e a filha estão sob proteção.

A história da jovem paraense exemplifica os vários casos de abuso sexual intra-familiar que ocorrem no Brasil, em pleno século 21.

Para diversos especialistas ouvidos pela Agência Brasil, não há um perfil do abusador infantojuvenil, mas, em muitos casos, o machismo pode ser observado no comportamento de quem subjuga crianças e adolescentes.

"É machismo. O homem tem a filha como se fosse a sua propriedade", aponta a advogada Leila Paiva, coordenadora do Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. "O corpo da mulher foi encarado o tempo todo como propriedade. Antigamente, ela casava e tinha de mudar de nome, passar para o homem, como fosse uma escritura."

A titular da Delegacia de Proteção de Criança e Adolescente (DPCA) de Brasília, Gláucia Cristina Ésper, chama a atenção para o mesmo comportamento. "Existe um negócio que se chama coisificação da criança. A criança é propriedade deles. Um objeto que eles podem fazer o que quiser. Tem pai que acha que tem o direito de tirar a virgindade."

A socióloga Graça Gadelha afirma que o machismo se associa à dominação dos mais velhos sobre os mais jovens.

"Nós temos uma matriz cultural que é extremamente machista e adultocêntrica. Temos um trato da sexualidade que compromete as relações entre pessoas de níveis diferentes, sobretudo quando fazemos o recorte de geração", afirma a socióloga, que coordena o Programa de Ações Integradas e Referenciais de Combate à Exploração Sexual Comercial e Tráfico de Crianças e Adolescentes para Fins Sexuais, financiado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid).

Para a psicóloga social Maria Luiza Moura Oliveira, do Conselho Federal de Psicologia, as mulheres também ajudam a manter a cultura machista.

"Nós, mulheres, corroboramos com isso quando a gente educa de forma diferente nossos meninos e nossas meninas", faz o mea culpa a psicóloga Sandra Santos.

"Qualquer um que tenha uma atitude machista contribui para que haja violência contra a criança e o adolescente, para que sejam tratados como objeto", acredita Leila Paiva.

*Os nomes de crianças e adolescentes que sofreram violências sexuais e de seus parentes foram trocados// Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo


Impunidade protege quem abusa sexualmente de crianças e adolescentes

Gilberto Costa* – Agência Brasil

São Luís – No dia 26 de novembro do ano passado, Vera Maria depôs encapuzada na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Maranhão, que investiga casos de abuso sexual infantojuvenil e práticas de pedofilia no estado. Ela tenta obter na Justiça o direito a uma pensão para o filho que teve há 12 anos, quando ainda era adolescente, mas que não foi registrado pelo pai, hoje prefeito de uma cidade do interior do estado.

Vera diz que já procurou a Justiça na comarca de sua região e na capital, São Luís, mas não conseguiu sequer que uma intimação fosse entregue ao político. “Na época, ele estava sem mandato e o oficial de Justiça alegou não saber o endereço”, conta. Ela espera, agora, que a CPI pressione o político a fazer o exame de DNA.

A impunidade de autoridades e pessoas bem posicionadas socialmente foi um dos principais motivos para a instalação, em outubro do ano passado, da CPI – a segunda no estado que investiga casos de abuso sexual infantojuvenil e de pedofilia. A primeira comissão a apurar esse tipo de crime foi concluída em 23 de abril de 2004.

“Nós temos uma absolvição grande no estado”, afirma a presidente da CPI, Eliziane Gama (PPS-MA). Segundo a deputada, a impunidade protege prefeitos, advogados, funcionários públicos professores e empresários.

Contra isso, a maranhense Francisca do Carmo luta para que o caso de sua filha adolescente não caia em esquecimento. Há cerca de dois anos, a menina foi levada depois da aula, com duas colegas, para um motel em São Luís por um advogado conhecido na cidade. Para a surpresa da mãe, o processo foi arquivado pela Justiça “por falta de prova”. Ela relatou à CPI do estado, no entanto, que a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente não chegou sequer a tomar o depoimento de todos envolvidos.

Para o promotor de Justiça da Infância e Juventude de São Luís, Márcio Thadeu Silva Marques, o país avançou muito na legislação que visa a coibir e punir o abuso sexual. “Hoje qualquer ato sexual com menores de 14 anos é crime, com pena de oito a 15 anos [de prisão].”

O promotor acredita, porém, que ainda exista uma “cultura jurídica que precisa ser modificada”. Ele citou decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) favorável a dois réus de Campo Grande (MS) que fizeram programas com adolescentes e foram absolvidos porque, segundo a decisão, elas eram “prostitutas reconhecidas”.


O promotor também avalia que a impunidade também ocorre por causa do foro privilegia

do ao qual as autoridades têm direito em tribunais. A mesma opinião tem o presidente da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), Mozart Valadares Pires.

“O que se verifica é que o foro privilegiado se transforma em um mecanismo de impunidade. Os tribunais superiores não têm a tradição da instrução processual, do colhimento de provas”, assinala defendendo o fim da prerrogativa.

Para o representante da Comissão da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ariel de Castro Alves, “a imagem da impunidade é verdadeira e notória”.

Segundo ele, há “pouquíssimas” delegacias da criança e do adolescente e delegacias especializadas com policiais preparados para fazer investigação sobre abuso sexual.

Além da impunidade, outro fator que dificulta a responsabilização em casos de violência sexual contra crianças é a falta de estrutura especializada na polícia e também no Judiciário para a produção de provas.

“Esse sentimento [de impunidade] tem um pouco de informação equivocada para quem não conhece o procedimento de apuração”, pondera a promotora de Justiça em Santa Catarina Helen Sanches.

“Crimes de violência sexual são crimes que têm uma dificuldade de prova muito grande, esse crime não é praticado na presença de testemunhas, normalmente não deixa vestígios”, completa a promotora, que também é primeira-secretária da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude (ABMP).

O juiz da 5ª Vara Criminal de Brasília Márcio Evangelista Ferreira Silva também acredita que a falta de provas leva à absolvição. Segundo ele, os tribunais dão muito valor à palavra da vítima, “mas tem que vir acompanhada de provas”, avalia o magistrado.

“Quando a gente fala em combate à impunidade temos que pensar a nossa polícia investigativa, no sentido de que sejam buscados outros elementos de prova [como os exames de DNA], para que as pessoas que têm conhecimento dos fatos e a própria vítima tenham segurança para denunciar”, reforça a promotora Helen Sanches.

*Os nomes de crianças e adolescentes que sofreram violências sexuais e de seus parentes foram trocados //Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo



Pesquisa em presídios de Goiás investiga comportamento de abusadores de crianças e adolescentes

Gilberto Costa
Repórter da Agência Brasil

Brasília – Um grupo de especialistas realiza desde 2004 em Goiânia uma série de pesquisas para entender o comportamento de autores de violência sexual contra crianças e adolescentes que estão presos.

O projeto Invertendo a Rota, do Centro de Estudos, Pesquisa e Extensão Aldeia Juvenil da Universidade Católica de Goiás, visa a compreender as relações sociais que levaram essas pessoas a cometer crimes de abuso sexual e a construir novas metodologias de atendimento dos agressores.

No final do ano passado, o projeto foi premiado pela Financiadora de Estudos de Projetos e Programas (Finep) e contará com R$ 500 mil para novas pesquisas e programas.

A intenção das coordenadoras do projeto é aproveitar o financiamento para criar um curso de especialização de assistência psicossocial de autores de violência; desenvolver um estudo sobre adolescentes que sofreram violência; e ainda avaliar o atendimento de vítimas em serviços como o Disque 100.

As pesquisas do Invertendo a Roda tiveram início com o Programa de Atendimento ao Autor de Violência Sexual. De acordo com uma das fundadoras do programa, a psicóloga Karen Michel Esber, cerca de 70 casos foram acompanhados. "Nós não concordamos com a violência sexual e é exatamente por não concordar que a gente quer intervir e conhecer esse sujeito."

Também envolvida com o projeto, a psicóloga social Maria Luiza Moura Oliveira explica que a intenção é fazer com que cada autor de violência tenha a possibilidade de refletir sobre o que ele fez com a sociedade e o que a sociedade fez com ele. "É essa possibilidade que não está dada dentro do sistema carcerário e é essa possibilidade que a gente quer construir", detalha.

A iniciativa das pesquisadoras desafia o senso comum e a visão dos chamados operadores do Direito, geralmente, limitada à punição.

"Nos processos há transcrições de falas dos promotores dizendo coisas como: ‘que esse psicopata apodreça na prisão’, mas as pessoas esquecem que ele não vai apodrecer na prisão. Muitos, em menos de dez anos, vão sair e estarão de novo na mesma sociedade, com a mesma família e de novo com crianças. Será que adianta apenas a prisão?", questiona Karen Michel Esber.

"Só a prisão é pouco. Trancafiar a pessoa e daqui a pouco soltar não muda os sentimentos. Ele só não vai reincidir se mudar seu trajeto de vida", avalia a psicóloga Mônica Café.

"A pessoa tem que ser penalizada, mas não precisa ser massacrada. É preciso ouvir quais saídas ela mesma vai apontar para a sociedade", complementa Maria Luiza Oliveira.

Mônica Café acredita que possa haver tratamento que evite a reincidência. "A possibilidade de controle existe: autocontrole, controle externo, psicoterapia, medicamento para ansiedade", lista.

Ela explica que, no atendimento psicoterapêutico, o processo tem o intuito de fazer com que o abusador veja a criança como "sujeito, alguém que sente e tem suas necessidades". Segundo a especialista, nas situações de abuso, a criança é considerada, pelo agressor, mero objeto de prazer sexual.

Segundo as especialistas, abusadores de crianças e adolescentes ocupam o último lugar na hierarquia interna dos presídios.

"É um crime sem perdão, mesmo dentro do sistema carcerário", aponta Maria Luiza Oliveira. Ela conta que, dentro dos presídios, os autores de violência sexual são reconhecidos e também abusados sexualmente.

Segundo a especialista, os presos usam sinais próprios para identificar os abusadores, como a sobrancelha raspada ou a testa marcada com o número do artigo do Código Penal (213) para os crimes que atentam contra a liberdade sexual.

De acordo com a psicóloga, a situação prisional faz com que os autores de violência sexual neguem que tenham cometido o crime. "Começam a negar para eles próprios. Muitos lutam contra admitir que cometeram esse crime", relata Maria Luiza.

Edição: Juliana Andrade e Lílian Beraldo

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