Mulheres de Cuzco submetidas a violência milenar

Milagros Salazar, da IPS

Cuzco, Peru, 27/10/2009 – Para o mundo, Cuzco evoca uma região milenar e mítica, mas esta zona do Peru é conhecida pelos cientistas sociais em razão de outro fato menos atraente: é um dos pontos do planeta com maior índice de violência contra as mulheres.

Mas um grupo de mulheres organizadas de Cuzco há 10 anos enfrenta as duras estatísticas de agressão física, sexual e de outra índole com um trabalho incansável. “Éramos mudas, despertamos. Nunca é tarde para começar”, disse à IPS Elsa Mamani, uma de suas líderes.

Mamani sempre foi muito tímida, por isso ainda se surpreende por ter se transformado, aos 52 anos no coração da pujante e aguerrida Coordenadora Departamental de Defensorias Comunitárias de Cuzco (CODECC), integrada por cerca de 500 membros e dedicada a combater a violência familiar e sexual que as mulheres sofrem diariamente.

No total, são 65 defensorias que operam em suas províncias e nas quais já se conseguiu que pelo menos 25% dos envolvidos sejam homens.

As defensorias comunitárias recebem as mulheres agredidas, as acompanham à policia e aos tribunais. “Fazemos acompanhamento de todo o processo, não as deixamos sozinhas até que consigam justiça”, explicou Mamani.

Também lhes proporciona assessoria legal e psicológica, graças a um acordo com uma universidade local e instituições aliadas, tudo com base na lei contra a violência familiar e ao Código de Criança e Adolescentes.

Cuzco (lugar sagrado, na língua quéchua) dá nome a uma das oito regiões naturais do país e berço do império inca, a um de seus 24 departamentos, a uma das 13 províncias do mesmo e à sua capital, patrimônio da humanidade. Neste departamento do sudeste peruano, também estão enclavados os restos da mítica cidade de Machu Pichu.

CODECC tem vida própria e conta com recursos diretos da cooperação internacional, embora seja parte de um projeto conjunto dos não-governamentais Instituto de Defesa Legal (IDL) e Centro Bartolomé de las Casas.

“Eu era uma dona de casa comum, temerosa”, contou Mamani, presidente do CODECC, antes de enumerar os êxitos de sua organização em uma região onde a mulher é majoritariamente maltratada, mais ainda nas zonas rurais e marginalizadas.

A América Latina é a região do mundo com maiores índices de violência contra a mulher, segundo estudos do Banco Mundial. Dentro dela, Cuzco se destaca como uma região onde duas em cada três mulheres sofrem violência sexual ou física, de acordo com um estudo feito em 10 países pela Organização Mundial da Saúde e outros que apresentam resultados semelhantes.

O Ministério da Mulher e do Desenvolvimento Social detalha que as principais vítimas variam entre os 12 e 59 anos de idade e contam com menor grau de instrução.

Entre 2001 e 2005, a polícia de Cuzco recebeu mais de 14 mil denúncias por maus-tratos contra mulheres, em um número que é apenas indicativo, porque a maioria não recorre às autoridades e suporta em silêncio as agressões.

Mas, com base nessas denúncias se projeta que 69,9% de mulheres desta região sofrem violência física e 46,6% violência sexual.

Entre janeiro e maio deste ano, os governamentais Centros de Emergência Mulher registraram 1.269 denúncias no departamento de Cuzco, cuja população é de 1,2 milhão de pessoas, quase 400 mil em sua capital. Seus cálculos são de que na região a violência sexista está pelo menos 10% acima da média nacional.

Do silêncio ao cenário público

Mamani era uma dessas mulheres que não se atrevem a contar a ninguém que em casa convivem com a violência, agora totalmente superada. Imediatamente a convidaram para participar do programa do Copo de Leite a favor das crianças de seu distrito na capital de Cuzco. “Comecei a participar aos poucos e acabei coordenadora distrital”, contou.

Era 1999 e foi quando lhe pediram para participar de um painel sobre violência e mulher, que foi a semente para formar as defensorias comunitárias, inicialmente nas áreas marginalizadas da capital do departamento.

O trabalho da CODECC é reconhecido e avalizado pelo Ministério da Mulher, e em sua década de existência conseguiu a aprovação de diversos projetos nos orçamentosparticipativos das províncias onde opera, além de um plano departamental para melhorar as capacidades e a infraestrutura das defensorias comunitárias.

Ao mesmo tempo, conseguiu influir, em aliança com instituições e organizações de mulheres, no governo regional de Cuzco para a geração de políticas especificas. Entre seus êxitos está a aprovação de um plano regional sobre o assunto.

Em 2006, a Coordenadora ganhou o prêmio de inovação social da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), com dotação de US$ 30 mil, após competir com 1.500 iniciativas da região. “O prêmio nos estimulou muito e foi mérito de Martha Galarza, a grande incentivadora da CODECC e sua presidente na época”, disse Mamani.

Dois anos depois, a Coordenadora obteve US$ 32 mil em financiamento da instituição privada norte-americana National Endowment for Democracy, para um projeto de fortalecimento institucional das defensorias e de incidência em autoridades a favor das mulheres, ao que se seguiu um apoio semelhante em 2009

“Elas tiveram seu processo de expansão, e agora querem se fortalecer e descentralizar. Esperam conseguir que as defensoras tenham apoio dos governos locais e regionais de Cuzco”, assegurou à IPS Roxana Vergara, que presta assessoria técnica à CODECC e trabalha para o Centro Bartolemé de lãs Casas e o IDL.

Porém, o caminho tem sido difícil, e nada fácil para as mulheres envolvidas no processo dividir seu tempo entre o lar e a luta.
 
Não há sucesso sem sacrifício

“Meu marido me dizia que era melhor eu dormir com minhas amigas, em lugar de voltar para casa. Conseguimos muito, mas, em alguns casos, a um preço muito alto porque muitas perderam seu trabalho”, recordou Mamani, ao contar seu caso como exemplo de outros parecidos.

Mamani reconhece que investe 80% de seu tempo na Coordenadora, embora tente não descuidar de suas tarefas como esposa, mãe de quatro filhos e avó de cinco netos.

“Talvez agora esteja em melhor situação do que minhas companheiras porque contribuo economicamente em casa porque criei meu próprio negocio e não descuido de minhas obrigações. Meu marido me compreende e há ainda o apoio de meus sogros, que veem que trabalho sem descanso”, acrescentou.

Mas

, além dos custos familiares, a presidente da Coordenadora assegura que acompanhar os casos de violência fica difícil devido à crueza de algumas historias.

“Houve o caso de uma mulher jovem que era muda e estava toda machucada e ensaguentada. Eu nada podia fazer para que ela me dissesse quem era e o que acontecera. Me sentia impotente. Esse caso me deixou marcada”, contou Mamani.

“Depois de fazer todo o possível para entender o que ocorria, comecei a chorar”, reconheceu, antes de contar que finalmente, com ajuda de um padre católico, conseguiu entender e começaram a ajudar a mulher.

Em muitos casos, também “sofremos ameaça por parte dos opressores. Tampouco há sensibilidade dos policiais. Se uma mulher apanha de seu marido, às vezes colocam no registro que foi agressão mutua”, ressaltou.

Vergara explicou que há dois aspectos que devem ser considerados para entender a dimensão do trabalho da CODECC: o cultural e o de gênero.

“Do ponto de vista cultural é difícil aceitar defender os direitos das mulheres, sobretudo dentro das comunidades se nas instituições estatais. Para a maioria é difícil que a mulher seja tratada de igual para igual. Para muitos, a mulher pode ajudar, mas quando começa a discordar se converte em um problema”, contou.

Como parte de seus desafios, a organização busca garantir os vínculos com os demais operadores da administração de justiça, como os juizes de paz e promotores das regiões de intervenção, para que se desenvolva um trabalho com um olhar intercultural, de cidadania e igualdade de gênero.

“A CODECC nos dá a oportunidade de melhorar, que podermos conseguir novos espaços, dar nossas opiniões e dizer o que sentimos. Isto nos ajuda a recuperar nossa autoestima”, assegurou Mamani, para quem somente em Cuzco “assumiremos o pulso de uma violência tão milenar quanto nossa cultura”. IPS/Envolverde

(Envolverde/IPS)

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