Lei Maria da Penha é para valer

Em entrevista ao site Pacto pela Cidadania, a delegada titular da Deam Legal-Rio, Célia Silva Rosa fala sobre a aplicação da Lei Maria da Penha. Ela também expõe a dificuldade que algumas moradoras de favelas cariocas encontram na tentativa de terem seus direitos garantidos por meio da nova lei.

 


Por Elaine Ramos
Nos últimos anos, o aumento da violência contra as mulheres resultou na formulação de políticas públicas específicas e na implantação da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam). Sempre chefiadas por delegadas, são instituições especializadas da Polícia Civil. A primeira foi criada no estado de São Paulo em 1985, mas dados da Secretaria Especial de Políticas para a Mulher (Sepem) apontam que atualmente são mais de 300 em todo país. No estado do Rio de Janeiro há nove unidades.
Segundo a delegada titular da Deam Legal-Rio, Célia Silva Rosa, cerca de 600 registros de ocorrência são feitos lá, por mês. Essa Deam fica no Centro da cidade e cobre 124 bairros cariocas entre as zonas: Leopoldina, Sul, Norte, Oeste e Centro. Há outras unidades em Campo Grande, Jacarepaguá, Caxias, Nova Iguaçu, Niterói, São Gonçalo, Belford Roxo e Volta Redonda.

Apesar do seu reconhecido mérito, as delegacias das mulheres não conseguiam avançar muito na repressão aos crimes cometidos contra elas. Considerados crimes de menor potencial ofensivo, mesmo os visíveis e graves espancamentos eram punidos com penas alternativas, previstos na Lei 9.099/1995. Pagamento de fianças, entrega de cestas básicas, prestação de serviços em instituições filantrópicas ou ONGs eram algumas das punições que poderiam ser infligidas ao agressor.

Mas mudar essa realidade se tornou menos impossível a partir de 7 de agosto de 2006, quando foi sancionada a Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha. A nova legislação considera os crimes contra as mulheres uma violação dos direitos humanos. Torna inaplicável a Lei 9.099 no caso desse tipo de delito. Amplia penas de dois para três anos, reconhece a possibilidade de prisão preventiva e em flagrante. E quando a vítima possuir alguma necessidade especial, a pena é aumentada em até um terço. A extensão de sua cobertura para os casais homossexuais, cujas vítimas sejam do sexo feminino, foi outra inovação. Além disso, com a nova lei, passa a ser aplicada as chamadas medidas protetivas. Estas asseguram os direitos da vítima, o tratamento e acompanhamento aos(as) que são considerados (as) culpados (as) das acusações relatadas.



Pacto pela Cidadania: Qual é o ponto mais positivo da Lei Maria da Penha na sua opinião?
Delegada Célia Silva Rosa: Há muitos pontos, mas para destacar um apenas, eu poderia dizer que ela é mais rígida. A repressão aumentou e isso tem sido bom. A nossa função é esta, a repressão. Mas há reincidências. E temos muitos casos de reincidência.

Pacto: Quais os casos mais frequentes nesta delegacia?
Delegada: Temos muitos casos de lesão corporal, ameça e injúria. Na maioria das vezes, praticados por homens (maridos ou namorados).

Pacto: Em qual situação o homem pode ser preso?
Delegada: Em qualquer situação de flagrante ou descumprimento de medida protetiva. É importante ressaltar que a Lei Maria da Penha não é aplicada apenas em casos de violência entre marido e mulher. Mas, sim, em qualquer ato violento de âmbito familiar no qual a mulher seja vitima. Pode ser de nora para sogra, relações homoafetivas (ou seja, entre companheiras ou namoradas), filha, filho, irmãos, sobrinhos etc. Até mesmo relação familiar por afinidade: pessoas que moram juntas, amigos que moram juntos e que acaba se tornando também uma relação familiar.

Pacto: Para dar queixa, a mulher precisa ter sofrido uma agressão física?
Delegada: Não. Naqueles casos de insistentes telefonemas; mensagens; e-mails; flores. Qualquer contato inconveniente. Quando ele aceita a separação, mas leva objetos da casa, documentos etc, sem acordo entre ambas as partes. Qualquer situação de xingamento dentro de casa, o mais simples. Mas se a mulher se sentir ofendida, humilhada, agredida por esta situação, pode vir à delegacia apresentar queixa e isto vai virar um inquérito e pode acarretar a prisão deste agressor.

Pacto: Então a lei antiga, a 9.099, acabou?
Delegada: Não. Há situações nas quais devemos nos basear na Lei 9.099. A diferença é que agora podemos de fato aplicá-la quando se trata, mesmo, de um crime de menor potencial ofensivo. Mas cada caso é um caso.

Pacto: Outras delegacias podem atender mulheres vítimas de violência doméstica?
Delegada: Sim. Nós somos especializados em violência doméstica contra a mulher, mas todas as demais delegacias estão disponíveis e capacitadas para receber este tipo de queixa.

Pacto: Qual é o passo a passo a seguir?
Delegada: Em primeiro lugar, é necessária a presença da mulher na Deam. Explicamos todas as consequências da queixa e também sobre todos os seu direitos. Algumas até desistem de fazer a queixa. Depois que ela concretiza o registrado, é instaurado um inquérito. Se ela alegar lesão corporal, nós a levamos ao IML [Instituto Médico legal], onde os médicos farão os devidos exames. Além disso, em qualquer caso de violência contra a mulher, ela é sempre encaminhada ao Ciam [Centro Integrado de Antedimento à Mulher], que oferece um suporte psicológico e social, encaminha à Defensoria, entre outras necessidades da vítima.

Pacto: Além da própria vítima, também são aceitas denúncias de outros, como vizinhos e parentes?
Delegada: Sim, claro! Em caso de denúncia, a gente vai ao local. Conduzimos as partes até a delegacia, mas ela [a vítima] precisa querer relatar o ocorrido para nós. Isto é um direito e uma opção da mulher. Mesmo em caso de presenciarmos a agressão, ela precisa querer apresentar a queixa.

Pacto: Existe a possibilidade de algum tipo de acordo entre as partes na delegacia?
Delegada: Não. Quando ela vem fazer o registro, conversamos sobre todas as consequências do processo. Se ela realmente fazer o R.O [registro de ocorrência] ou se o agressor ou a agressora for pego em flagrante, com a aceitação da vítima sobre a denúncia, o inquérito é instaurado.

Pacto: E depois, ela volta para casa?
Delegada: Depende. Há mulheres que têm medo de retornar à casa, pois foram ameaçadas pelo agressor. Nestes casos, enquanto o acusado não é detido, a vítima pode escolher ir para casa de algum parente. E nós a levamos até esse local. Ela também pode ir para uma “casa- abrigo”, no próprio município ou até fora do estado. Se necessário, nós a acompanhamos até sua casa para que, em segurança, ela pegue seus documentos, roupas, todos os pertences seus e de seus filhos, se for o caso. Depois, a levamos para o local em que ela esteja segura.

Pacto: Como funciona a “casa-abrigo”?
Delegada: As “casas-abrigo” são mantidas pelo governo estadual ou municipal. Foram criadas para receber a mulher que corre risco de vida e não tem para onde ir. Lá, ela encontra um lugar limpo, com o mínimo de conforto, mas terá de atender a algumas obrigações estipuladas em prol do bom convívio coletivo. Ela também é orientada a sair dessa situação, tem acesso a trabalhos manuais, entre outras atividades, para que, depois, tenha alguma oportunidade de trabalho.

Pacto: É estipulado um tempo máximo de permanência nessa casa?
Delegada: Sim, até quatro meses. Mas há casos de mulheres que, por necessidade, acabam ficando mais tempo. Contudo, o número de mulheres que aceitam ir para essas casas é muito baixo. Apesar de ser uma situação temporária, a maioria não quer, principalmente as que têm filhos. E a maioria das que aceitam não ficam nem um mês.

Pacto: O que faz a mulher preferir correr o risco da ameaça e não ir para o abrigo?
Delegada: Os motivos podem ser vários: quem aceita, precisa se deslocar do lugar que mora, onde já tem uma identidade, para onde não tem nenhuma referência. Precisará conviver com outras pessoas desconhecidas que viveram a mesma situação de violência ou até pior. Precisará, ainda, dividir tudo. Não terá privacidade de um quarto só para ela. Notamos que quanto maior o poder aquisitivo, mais difícil a adaptação. É tudo muito diferente do que se está acostumada em casa. Não importando a classe social, elas se sentem punidas. O que a mulher quer de fato é que o agressor saia de casa e não o contrário. E, por isso, eu acredito que ela se sinta penalizada.

Pacto: Há alguma solução alternativa?
Delegada: Ela tem direito ao pedido da medida protetiva. Dentre essas medidas, temos: o afastamento do lar pelo agressor; a manutenção de uma distância mínima em relação à vítima e aos seus familiares (filhos etc.); a provisão de alimentos até que se defina a situação. E quando há o descumprimento de uma dessas medidas, o acusado é preso. Temos que encaminhar esse pedido em até 48 horas. Só que isso não é decidido por nós. Depende do juiz. Embora a lei permita que a mulher requeira, nem sempre é concedido.

Pacto: A possibilidade de prisão é um diferencial da Lei Maria da Penha?
Delegada: Sim. Antes, não havia essa possibilidade. A violência doméstica estava prevista na Lei 9.099 como crime de menor potencial ofensivo. Tinha como punição penas alternativas, prestação de serviços comunitários, trabalho temporário em uma instituição filantrópica, ONG ou pagamentos de um determinado número de cestas básicas. Agora, esse tipo de agressão só pode ser enquadrado na Lei Maria da Penha. A lesão corporal, por exemplo, agora tem pena de três meses até três anos. A prisão pode ser decretada se representarmos por sua prisão (que depende do promotor concordar e de a juíza conceder), se houver o descumprimento de qualquer uma das medidas protetivas e também em caso de flagrante.

Pacto: A senhora pode nos dar um exemplo de caso de prisão em flagrante?
Delegada: Recentemente, efetuamos uma prisão na casa de um casal. Ele foi xingando sua esposa pela rua, em altos brados, até chegar na delegacia. Então, ele foi preso. Mas mesmo assim, ele continuou xingando e ameaçando a mulher. Enquanto estava sendo autuado, tivemos que colocá-lo no xadrez, pois ele estava xingando a mulher o tempo todo. A impressão que dá é que alguns homens ainda não se deram conta da atuação desta lei. Estão acostumados a pagar uma cesta básica e continuar agredindo a mulher; depois, outra cesta básica e mais agressões; mais outra e outra, sucessivamente. Outros, que preferiam acreditar que mulher gostava de apanhar e, por isso, não fazia nada, ainda não acreditam. Isso porque, antes, a maioria das mulheres não dava queixa, temia por não haver uma forma eficiente de resolver seu problema. E ir à delegacia poderia provocar mais ainda a ira do agressor.

Pacto: Pesquisas dizem que, depois da Lei Maria da Penha, aumentou o número de queixas. Como tem sido a demanda na Deam Legal – Rio?
Delegada: Em média, são 600 registros por mês nesta Deam. E cerca de três ou quatro prisões no mesmo período. Acredito que a informação sobre seus direitos tem estimulado as mulheres a procurarem as delegacias. Agora mesmo, em agosto, a lei fez três anos, tivemos vários eventos, o assunto é sempre abordado na TV, houve entrega de panfletos na Central do Brasil – que é um local de grande circulação etc. Então, as pessoas entendem que, por meio da nova lei, existem punições que não existiam antes, mesmo que a lei ainda tenha pontos a serem melhorados.

Pacto: A Deam Legal – Rio abrange uma grande área da cidade. Há diferença de procura entre as classes sociais?
Delegada: A Deam Centro atinge todo tipo de classe social. Temos procura de todas as classes populares realmente. Atendemos pessoas do Recreio, Vargem Grande, Camorim, toda a zona sul, toda a Leopoldina, Jacarezinho, Manguinhos, Maré etc. Há muitas mulheres de classe media e de classe media e alta, as que têm os endereços considerados os mais nobre da cidade. Mas, infelizmente, o que temos menos aqui é a procura de mulheres de comunidades.

Pacto: Qual seria o motivo dessa baixa procura de mulheres moradoras de favelas?
Delegada: Há mulheres moradoras de algumas comunidades que falam que não podem chegar com carro de polícia. Estas, às vezes, desistem de fazer o RO. Relatam para nós que, se chegar uma intimação, ela vai ser punida duas vezes, além de ser punida pelo agressor, ela também será punida pelo tráfico. Eles não querem a Polícia por perto por nenhum motivo. Acredito que este seja um forte motivo para que não tenha muitos casos de vítimas que moram em comunidades.

Pacto: Essas mulheres ficam sem o amparo da lei?
Delegada: A gente está de pés e mãos atados. Mas com muito cuidado para não colocar a vida da vítima em risco maior, tentamos fazer com que a lei se cumpra. Há poucos dias, tivemos o desfecho de um caso assim. Uma senhora, moradora de uma comunidade dominada pelo tráfico, tinha o filho como agressor. Ela teve a medida protetiva concedida. Mas ele descumpriu tudo, continuou na casa da mãe e a agredia. Foi decretada sua prisão. Ela disse que o rapaz estava em casa, então, quando dissemos que iriamos até lá para prendê-lo, a mãe pediu que não fôssemos com o carro da polícia. Chegou a sugerir que o policial fosse de táxi para prendê-lo e que não o algemasse lá. Impossível! Então, ela preferiu continuar naquela situação. Até que um dia, ele saiu da favela para visitar um outro parente, e nós o prendemos.

Pacto: Como ficam as mulheres que desistem de fazer o registro de ocorrência?
Delegada: A gente não tem como monitorar isso. Eu não sei se as mulheres resolvem isso na própria comunidade evocando a lei que tem lá. Ou se não retornam por medo. O que sabemos é o que chega até nós. E o que chega são casos de mulheres que, ao fazerem a queixa e ao saber que precisaremos ir até lá, expressam o seu medo.

Pacto: E quanto à segurança dos policiais?
Delegada: Em algumas comunidades onde há UPP [Unidade de Polícia Pacificadora], a gente consegue entrar e entregar a intimação ou prender o agressor. Mas há comunidades onde, assim que o carro da polícia chega nas ruas próximas, já é recebido a tiros. E são sempre dois policiais para esse tipo de ação. Nesse caso, os policiais voltam, solicitam reforços.

Quem é Maria da Penha?

Maria da Penha Maia Fernandes é brasileira e biofarmacêutica. Ela foi agredida pelo marido, o professor universitário colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, durante seis anos. Ele tentou mata-la duas vezes: Na primeira ele atirou contra ela, simulando um assalto, e na segunda tentou eletrocutá-la. Por conta dessas agressões, Penha ficou paraplégica. Seu marido foi punido depois de 19 anos de julgamento e ficou apenas dois anos em regime fechado.

O episódio chegou à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e foi considerado, pela primeira vez na história, um crime de violência doméstica.

Hoje, com 60 anos e três filhas, Penha é coordenadora de estudos da Associação de Estudos, Pesquisas e Publicações da Associação de Parentes e Amigos de Vítimas de Violência (APAVV), no Ceará. Ela esteve presente à cerimônia da sanção da lei brasileira, que leva seu nome, junto aos demais ministros e representantes de movimentos feministas.

Serviços:

  • A Deam Legal/Rio fica na Rua Visconde do Rio Branco, 12 – Centro / Praça Tiradentes.Telefone: 21-23329994

  • Disque Denúncia: 21- 2253-1177
fonte: http://www.pactopelacidadania.org.br/index.php/artigos/198-lei-maria-da-penha

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *