É inconstitucional e alheio ao ordenamento jurídico brasileiro o Acordo com o Vaticano

A editora da Universidade Federal da Paraíba – UFPB acaba de editar o livro: Acordo Brasil-Santa Sé – uma análise jurídica. De autoria de Hugo Alexandre Espínola Mangueira. Vale a pena ler. (VEJA ao final a Nota Pública da Associação de Magistrados Brasileiros)

Com 132 páginas, o livro tem Apresentação escrita pelo professor Carlos André Cavalcanti, coordenador da Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB, contém um parecer escrito pelo Autor a pedido de vários professores daquela Universidade.

Nessa Apresentação, o prof. Carlos André nos diz que “As liberdades civis de base laica e republicana são a base do estudo científico das religiões e de muitas outras liberdades individuais públicas. O Acordo entre o Brasil e a Santa Sé desafia e arrisca macular vários destes principípis e direitos”.

Ele lembra que “a intolerância e/ou a imposição religiosas se manifestaram em vários episódios no século que vai da República Velha à Nova República. São exemplos: os duríssimos atos policiais e jurídicos contra minorias religiosas; a absurda decisão judicial que quase baniu a Igreja Católica Brasileira no Governo Dutra; a continuidade do uso do dinheiro público para a a ostentação de símbolos religiosos hegemônicos em espaços públicos e diversos atos de censura contra filmes, vestuário, peças teatrais, pesquisas científicas, textos artísticos e acadêmicos. Verifica-se hoje a mesma tendência insistente, incompatível com o mundo globalizado. Na era do Meio Ambiente, das Novas epiritualidades e dos blocos de nações, tal acordo é um retrocesso.”

O Parecer, que dá corpo a essa iniciativa editorial do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB, apresenta um estudo sobre o princípio da laicidade e como foi tratado no constitucionalismo brasileiro. A relação entre laicidade e liberdade religiosa (e de não crer) e o ordenamento jurídico nacional.

Estado e Igreja

O Autor nos conta que no período monárquico, o Brasil tinha a religião católica romana como a religião do Estado brasileiro, mas permitia que pessoas de outros credos pudessem professar suas religiões, desde que de forma privada. Contudo, para ser funcionário público, o cidadão deveria pertencer à Igreja Católica.

Com o Proclamação da República, o Brasil passa a se tornar um Estado laico, pelo menos em seu ordenamento jurídico, com o Decreto 119-A de 1890. Isso ficou claro na primeira constituição republicana, de 24 de fevereiro do 1891.

A Constituição atual, de 1988, preservou a separação entre Estado e igrejas, proibindo expressamente que o Estado estabeleça cultos ou igrejas, as subvencione ou crie qualquer embaraço ao seu funcionamento. Essa condição se completa com a determinação da inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença.

Convenção de Viena

Com relação a quem assina o Acordo, o autor é muito feliz ao verificar que se trata de um acordo entre dois Estados Soberanos (o que de fato é assunto da Convenção de Viena, de 1961, do qual trata o artigo 1º do Acordo).

E, para aprofundar a análise do caso em si, o Acordo com o Vaticano como um acerto entre dois Estados Soberanos, o Autor nos remete ao que ensina a professora Fávia Piovesan:  “(…) os tratados internacionais, enquanto acordos internacionais juridicamente obrigatórios e vonculantes (pacta sunt servanda), constituem hoje a principal fonte de obrigação do Direito Internacional. Foi com o crescente positivismo internacional que os tratados se tornaram a fonte maior de obrigação no plano internacional, papel até então reservado ao costume internacional. Tal como no âmbito interno, em virtude do movimento do Pós-Positivismo, os princípios gerais de direito passam a ganhar cada vez maior relevância como fonte do Direito Internacional na ordem contemporânea. Na definição de Louis Henkin: ‘O termo tratado é geralmente usado para se referir aos acordos obrigatórios celebrados entre sujeitos de Direito Internacional. Além do termo tratado, diversas denominações são usadas para se referir aos acordos internacionais. As mais comuns são Convenção, Pacto, Protocolo, Carta Convênio, como também Tratado ou Acordo Internacional. Alguns termos são usdos para denotar solenidade (por exemplo, Pacto ou Carta) ou a natureza suplementar do acordo (protocolo)”  ( Direitos Humanos e direito constitucional internecional. São Paulo: Saraiva, 2008).

Não à toa  o Autor se detém nesse ponto para mostrar que não se trata simplesmente de um ato qualquer de simples ratficação do que já existe na legislação brasileira com respeito às características da Igreja Católica (seus direitos, responsabilidades e deveres), como querem fazer crer, talvez de má fé, alguns parlamentares que defenderam essa tese na Câmara dos Deputados, como também para mostrar que se trata de um acordo entre Estados para regular condições que atingem a vida cotidiana de milhões de brasileiros e brasileiras. Em si, um acordo dos mais estranhos que poderia existir na relação entre dois Estados.

E mais, como os acordos e tratados acabam tendo, para efeito do ordenamento jurídico brasileiro, um caráter semelhante ao da legislação ordinária, não se poderia acreditar que o governo brasileiro aceitasse a iniciativa de um acordo que limita, reduz e mutila os direitos humanos de grande parcela da sociedade.

Igualdade e ensino religioso

A igualdade entre cidadãos e cidadãs é a base fundamental (junto com a liberdade) da Constituição brasileira.  Igualdade formal, vemos no dia-a-dia, que ainda precisa muito caminhar para chegar à igualdade material e de respeito de fato. Mas é com base na ideia de igualdade e respeito que a legislação, mesmo permitindo a existência de ensino religioso em escolas públicas, não aceita que este seja de caráter doutrinário, isto é, não pode transformar-se o ensino religioso em proselitismo ou defesa de uma religião, em detrimento das demais e do pensamento não religioso.

Essa situação determina a condição do acordo e o padrão de desigualdade que estabelece com as demais religiões, colocando por terra o argumento falacioso da bancada católica que negociava com as demais bancadas a possibilidade de se realizar acordos semelhantes com as religiões que assim o quisessem, como se isso fosse materialmente possível!

O Autor consegue mostrar que se o Acordo for ratificado pelo Congresso Nacional e não havendo aç&

atilde;o retificadora do Poder Judiciário, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96) deverá ser alterada ou o será pela aplicação da Concordata. Diz ele: ” Em nosso entendimento o Acordo, caso entre em vigor com a redação que consta em seu artigo 11, alterará a legislação em vigor atinente à espécie, ou seja, o artigo 33 da LDBEN. Este último disposto determina que a disciplina curricular ‘Ensino Religioso’ deve assegurar o respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil, além de tornar defeso toda forma de proselitismo. Dessa forma, o parágrafo primeiro do artigo 11 do Acordo, ao prescrever que o ensino religioso passe a ser ‘católico e de outras confissões religiosas’  conflitará com o disposto no artigo 33 da LDBEN. Tornar o ensino católico e de outras confissões religiosas significa reintroduzir o proselitismo e o sectarismo em sala de aula, tornando a escola um ambiente propício à intolerância e à segregação”.

Direitos Trabalhistas

Os tratados internacionais de direitos humanos têm uma história que se inicia com os acordos relacionados aos direitos dos trabalhadores. Foi, no início do século XX, uma resposta dos Estados aosmovimentos sociais de trabalhadores(as). Antes da Organização das Nações Unidas, a Liga de Nações já conhecia a Organização Internacional do Trabalho (OIT) como espaço importante de consertação de acordos internacionais de direitos humanos. Direito ao trabalho, direito a salário digno. Quantas horas de trabalho configuravam super-exploração etc. Esses são temas iniciantes dos debates de direitos humanos do século passado.

O artigo 16 do Acordo com o Vaticano define que os “ministros ordenados e fiéis consagrados mediante votos” não tem vínculos empregatícios com a Igreja. E mais, “as tarefas de índole apostólica, pastoral, litúrgica,catequética, assistencial, de promoção humana e semelhantes poderão ser realizadas em caráter voluntário”. Com isso a Igreja deixa de ser empregadora, não se subordina às garantias legais de proteção do(a) trabalhador(a) ou previdenciárias. São milhares de pessoas que ficarão a mercê da bondade de dirigentes da hierarquia católica. Com isso  os direitos humanos dos(as) trabalhadores(as), definidos em legislação nacional e internacional desde os primórdios do século XX, não podem ser garantidos aos(às) trabalhadores(as) ligados(as) à Igreja Católica, quer sejam padres, freiras, assessores(as), professores(as) etc. Quem garante os direitos de um padre ou freira que deixou a Igreja Católica depois de anos de serviços prestados (muitas vezes em condições de muita dificuldade pessoal)? Quem garante os direitos previdenciários desses(as) trabalhadores(as)?

O Acordo fere direitos de todas as pessoas

A sociedade deveria ter sido consultada no processo de discussão desse Acordo. São abertas consultas públicas para assuntos muito menos importantes, porque esse foi tratado com sigilo? Mesmo que uma Comissáo Inter-ministerial tenha sido composta, mesmo a imprensa nacional acabou sendo surpreendida com a assinatura e o teor do Acordo.

De outra parte, o tema tem sido tratado de forma secundária pelos partidos políticos, entidades da sociedade civil e imprensa. Como se fosse mesmo um assunto relacionado ao interesse particular da instituição católica e seus integrantes, porém “a Concordata reveste-se de amplitude exponencial sobre assuntos correlatos à vida social naciojal, abrangendo diversas áreas. Caso o Acordo seja ratificado, deverá refletir e atuar em abundantes relações intersubjetivas, presentes no cotidiano dos cidadãos brasileiros”.

Ainda mais em um momento em que estão sendo decididos assuntos de interesse e que impactam diretamente na vida das mulheres. O STF está para decidir sobre o direito das mulheres interromperam a gestação no caso de estarem carregando fetos anencéfalos. A Igreja Católica é a principal força contrária ao direito das mulheres. Como ela também tem sido fundamental para influenciar o pessoal da área médica que atende mulheres que abortaram ou que têm direito a abortar por força da atual legislação. Alegando motivos religiosos, esses profissionais acabam tratando mal as mulheres em serviços públicos de saúde.

Temos visto no Congresso Nacional a expressão do fundamentalismo católico contra as mulheres. Aceitar um acordo que acaba fortalecendo a Igreja Católica em suas relações com o Estado brasileiro, significa também dar combustível a essas ações contra as mulheres.

Para resumir, muito bem embasado, Hugo Alexandre consegue concluir que o Acordo é totalmente inconstitucional e estranho ao ordenamento jurídico nacional, em que pese todo o esforço político de se tentar reviver a prevalência da influência da Igreja Católica sobre as instituições nacionais.

As livrarias universitárias têm geralmente as publicações de outras editoras. Procure na mais próxima e encomende o livro, realmente vale a pena ler para fundamentar o debate que estiver realizando. Pois, apesar do que se tenha convencer, esse tema é fundamental para a construção da cidadania e da democracia no Brasil. É preciso superar a dependência institucional com a Igreja, como precisamos também limpar nossas instituições do lixo autoritário que permanece em função de acordos políticos que esconderam os anos de terror e tortura que se amoitaram na censura à imprensa e encobrem a história de fortunas que se fizeram com a corrupção e o uso do aparelho do Estado.

Como o jogo é jogado no Congresso

Na Câmara dos Deputados a previsão era de que a Mensagem do Acordo fosse aprovada rapidamente, sem qualquer debate. E sem publicidade, como na fase de discussão interna no Executivo. Contudo, mesmo com pouca repercussão na imprensa, a que houve foi suficiente para mostrar para alguns parlamentares que parte da sociedade civil brasileira estava atenta e que estudiosos questionavam a legalidade do Acordo. Com isso duas audiências públicas foram realizadas.

Nesse processo de discussão, de pouca discussão diga-se de passagem, foi possível ver como o tema não interessa à grande maioria dos parlamentares, que olham o Acordo muito mais como um momento do jogo de interesses particulares de empresas e organizações do que como um ponto essencial do debate institucional e político fundante da democracia e do Direito Democrático. Alguns parlamentares da base evangélica chegaram a manifestar opinião favorável ao Estado laico e dúvidas quanto a legalidade do Acordo. A bancada católica respondeude dois modos: em um primeiro momento afirmavam que era necessário aprovar-se esse Acordo, para abrir oportunidade para que outras confissões religiosas fizessem os seus próprios acordos com o governo br

asileiro. “Quem quiser que faça o seu depois”, repetiam os católicos. Em um segundo momento, com receio de se adiar a votação e dar margem a um debate nacional, ameaçavam: “estão rompendo com os nossos acordos, se não aprovarem o Acordo, vamos ter que rever os termos de nossos entendimentos aqui no Congresso”. Com isso os deputados católicos tentavam colocar contra a parede os evangélicos. Só não se sabe quais os termos dos entendimentos e acordos entre as bancadas. Mais um mistério.

A recente super-exposição na mídia, comandada pela Rede Globo, de investigações relacionadas à arrecadação de dízimos e doações para a Igreja Universal do Reino de Deus possívelmente faz parte desse jogo de negociação entre evangélicos e católicos. É claro que existe uma disputa de espaço de mídia e de recursos de publicidade entre a Rede Globo (católica) e a Rede Record (evangélica). Mas também estão em tela, na exposição de fatos já investigados em 1993, outros elementos. Há uma cruzada fundamentalista católica que acordou para o fato do crescimento vertiginoso das igrejas pentecostais no Brasil e quer reduzir o poder dessas igrejas imaginando que seu rebanho retornará ao catolicismo. Há também outros interesses. Entre eles a manutenção de uma posição hegemônica contrária ao estabelecimento de direitos civis que vão além do que permite a Igreja Romana e, especialmente, de direitos das mulheres, tais como o direito ao aborto, a liberdade sexual etc.

A forma em que se tem dado o ataque contra a Igreja Universal é para mostar poder de fogo da Igreja Católica, seu domínio da máquina do Estado (Polícia Federal, Ministério Público e Poder Judiciário), que será reforçado com o Acordo Brasil-Vaticano. Tanto é uma demonstração hegemônica de força que a imprensa nacional não deu uma linha sequer de comparação entre esses escândalos imputados à Igreja Universal e os escândalos envolvendo práticas semelhantes ou piores da Igreja Católica, que também desvia recursos de caridade para consumo suntuoso de seus  dirigentes ou para cobrir déficits da Cúria Romana, para empresas ligadas a ela, inclusive em sociedade com a Máfia italiana (o caso do Banco Ambrosiano e o “suicídios”de vários de seus dirigentes não é fato isolado nem algo que se concluiu com a repatriação do Monselhor Marcinkus, braço direito de João Paulo II). Tampouco a Rede Globo lembrou os recentes escândalos na Igreja Católica do Rio de Janeiro, igualmente com desvios para compra de automóvel e vida de luxo por parte de integrante da direção daquela igreja. Talvez essa ação policial (e política) acabe por intimidar a Igreja Universal em sua defesa do Estado Laico, do direito ao aborto e dos direitos civis, assim como outras igrejas menores.

Apesar do péssimo exemplo que têm dado padres e pastores, no Congresso Nacional e fora dele, é fundamental para a democracia e para a construção de um país tolerante que se garanta o direto de todas as pessoas a professarem sua fé (ou a não tê-la), a cultuarem seus credos, sem qualquer interferência de qualquer poder externo, quer seja ele do Estado ou limitações que venham a ser impostas por outras religiões. Apesar de não estar registrado no imaginário coletivo da nacionalidade brasileira, neste país já foram muitos os massacres impostos por religiões. Morreram milhares de indígenas e de negros africanos que para cá vieram escravizados. Oprimiram milhões de outros que tiveram que conjurar suas crenças em favor de uma religião dominante. Tanto que foram obrigados a combinar seus credos com o dominante, formando outras religiões.

Usar o Estado para impor a toda a Nação os preceitos morais e dogmáticos de uma religião é um ato de violência sem limite, uma tortura que se sente no fundo do ser. A grande conquista da democracia moderna é a liberdade. Esta se funda em alguns princípios que não podem ser negociados. Entre eles a de que uma religião não pode se impor e nem ser imposta. Não se pode aceitar retrocessos nesse campo.

Nada é tão simples e tranquilo como querem fazer parecer os ideólogos e os dirigentes das igrejas.


Ivônio Barros – texto atualizado em 14/8/2009 – 11h

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NOTA PÚBLICA
Associação de Magistrados Brasileiros
14/8/2009

A Comissão Nacional de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), composta por representantes de todas as entidades filiadas, vem a público manifestar apoio aos movimentos contrários à incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro do Acordo Brasil e Vaticano.

A AMB ressalta que o modelo constitucional vigente instituiu a laicidade do Estado brasileiro, garantindo a liberdade religiosa a toda cidadania. O acolhimento do Acordo pelo Congresso Nacional (onde tramita como a Mensagem n° 134/2009) implicará em grave retrocesso ao exercício das liberdades e à efetividade da pluralidade enquanto princípio fundamental do Estado. Rogamos que as autoridades legislativas atuem nesta questão com rigorosa conduta constitucional.

 

 

Mozart Valadares Pires
Presidente da AMB

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