AUTOMUTILAÇÃO: Feridas da juventude

Segundo especialistas, a automutilação praticada por jovens geralmente é um transtorno que desaparece na idade adulta. Ainda assim a prática precisa ser acompanhada. Ela pode indicar sintomas de depressão ou ser um fator de risco para o consumo de drogas

Paloma Oliveto – Correio Braziliense

Publicação: 18/11/2012 04:00

sofrimento

Eles tentam controlar a dor emocional provocando feridas reais. Adolescentes ansiosos, deprimidos e com baixa autoestima se cortam, queimam partes do corpo, automutilam e batem a cabeça contra a parede em um comportamento pouco investigado e ainda incompreendido pela maioria das pessoas. A prática de se machucar deliberadamente é considerada, por alguns especialistas, um distúrbio mental, muitas vezes associado ao transtorno de personalidade borderline — o limite entre a sanidade e a psicose. Recentemente, porém, estudiosos começam a defender que danos autoinflingidos são uma conduta passageira e, embora mereçam atenção, não configuram uma doença.

O comportamento destrutivo geralmente é uma forma de buscar alívio para uma situação que parece fora de controle. Diferentemente do que algumas pessoas pensam, quem se agride não quer chamar atenção — os machucados, na maior parte das vezes, são feitos em áreas que podem ser encobertas pelas roupas. Embora não existam estatísticas oficiais sobre a prática nem estudos epidemiológicos, algumas pesquisas sugerem que 10% dos adolescentes se autoagrediram alguma vez na vida.
Na Suécia, o psicólogo Jonas Bjärehed, da Universidade de Lund, encontrou uma prevalência maior. Ele entrevistou mil jovens em seu país e constatou que quatro em cada 10 já tinham se machucado intencionalmente. Ao conversar com os participantes do estudo, porém, Bjärehed notou que, para muitos deles, o comportamento não é considerado tão grave quanto parece aos adultos. “Na maior parte das vezes, a autoagressão é temporária. Ela pode ser vista como uma questão de experimentação ou um problema de natureza não muito grave”, afirma.

De acordo com o psicólogo, que recentemente defendeu uma tese sobre o tema, a cada época um comportamento preocupante toma conta dos adolescentes. Foi assim nas décadas de 1970 e de 1980, quando os distúrbios alimentares atingiram o ápice, ou na virada do século passado, com a “histeria”, argumenta. “Hoje em dia, estamos lidando com o fato de que o estresse e os distúrbios mentais parecem estar aumentando, especialmente entre os jovens, e nós não entendemos o porquê”, diz. Por isso, ele defende que se estude mais a fundo a autoagressão, sob o risco de se superestimar o problema. “Um episódio ou outro não pode ser entendido como doença mental e, aparentemente, apenas uma minoria de jovens se machuca com uma regularidade preocupante comparável ao que ocorre em adultos que, de fato, são portadores de doenças graves”, diz.

Uma conclusão semelhante surgiu de uma pesquisa realizada por psiquiatras da Inglaterra e da Austrália, publicada na revista The Lancet. Os médicos estudaram o padrão de autoagressão entre 1.802 participantes e constataram que 8% já haviam apelado para a prática, mas, em 90% dos casos, os adolescentes e os jovens abandonaram o comportamento espontaneamente. Durante uma década, os voluntários foram acompanhados pelos pesquisadores que, ao longo do estudo, verificavam uma redução da tendência. Aos 29 anos, menos de 1% dos adultos ainda se machucava.

“Círculo vicioso”

Isso não significa, contudo, que a prática deva passar despercebida. Na pesquisa britânica, também se descobriu que a autoagressão era, muitas vezes, um sintoma de depressão e de transtorno da ansiedade, além de constituir um fator de risco para o uso de maconha e álcool e de comportamento antissocial. “Apesar de a maioria dos adolescentes parar espontaneamente de se ferir, também há uma relação entre a prática e a saúde mental que pode não ser resolvida sem tratamentos apropriados. Há uma forte relação entre ansiedade e depressão na adolescência e a autoagressão no início da idade adulta”, ressalta Keith Hawton, diretor do Centro de Pesquisas sobre Suicídio da Universidade de Oxford.

Jonas Bjärehed concorda com Hawton. “Mesmo que se machucar durante a adolescência não signifique doença mental, esse comportamento tende a desencadear um círculo vicioso: uma vez que a pessoa começa, há um risco de ela continuar fazendo isso, o que deteriora sua saúde mental”, observa. O psicólogo acredita que um envolvimento maior da comunidade — principalmente a família, os profissionais de saúde e os educadores — pode ajudar a fazer com que o problema não evolua. “É muito importante entender melhor o autoflagelo para saber se esse comportamento é algo passageiro ou um sinal de distúrbio mental. Só assim, saberemos tomar as medidas apropriadas. Mas reconheço que esse é um grande desafio”, diz.

Para a professora assistente de Ciência da Saúde da Universidade do Missoure Lindsay Taliaferro, um bom começo é demonstrar abertura ao diálogo, ainda que não se saiba o que fazer a respeito. Muitas vezes, pais, professores e profissionais de saúde evitam conversar com adolescentes sobre a autoagressão porque acham que não são capazes de ajudar. Os adultos precisam saber que eles não têm de resolver todos os problemas dos adolescentes, basta mostrarem que estão dispostos a ouvir, ensina Taliaferro, que conduziu uma pesquisa a respeito com 4 mil participantes. “Às vezes, apenas falar sobre seus sentimentos fornece muito conforto aos adolescentes, que se sentem compreendidos”, diz. Segundo a especialista, com o diálogo, fica mais fácil diferenciar se aquele comportamento foi esporádico, provocado, por exemplo, por uma experiência de bullying, ou se há riscos mais graves para o jovem. “Os adultos podem ajudá-los a dissecar seus problemas e, junto deles, desenvolver estratégias saudáveis, facilitando o acesso aos serviços de saúde mental. É preciso mostrar que os adolescentes podem ser ajudados, que seus problemas têm sempre uma solução.”

“Apesar de a maioria dos adolescentes parar espontaneamente de se ferir, também há uma relação entre a prática e a saúde mental que pode não ser resolvida sem tratamentos apropriados”
Keith Hawton, diretor do Centro de Pesquisas sobre Suicídio da Universidade de Oxford

 
A dor é inevitável, mas o sofrimento…

por Maraci Mendes de Santana

Publicação: 18/11/2012 04:00

Há coisas de que até Deus duvida! Enquanto feridos lutam para se recuperar, há gente “saudável” que se corta, perfura, queima, busca a dor. Por isso é importante falarmos sobre o cutting, não apenas para que todos conheçam e entendam essa triste realidade, mas para que os que com ela sofrem saibam que, também para isso, existe solução.

É importante que se divulgue quais os tipos de agressão mais comuns; que automutilação não tem a ver com tentativa de suicídio; que, em geral, o cutting está associado a depressão, transtorno bipolar do humor, bulimia, anorexia; que a autoflagelação atinge mais mulheres jovens; que superar o problema inclui acompanhamento psiquiátrico e psicoterápico; que quem se mutila costuma falar em substituição da dor emocional pela física, de fracasso, de ódio, de medo, de autopunição.

Todos, mais cedo ou mais tarde, enfrentam a morte de um ser amado, a injustiça, a doença, o divórcio, o desemprego, a solidão, a violência. Mas nem todos se mutilam. Por que reagimos aos dramas de formas diferentes? É sobre isso que precisamos nos debruçar. Se a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional, podemos dizer que cabe a cada um adotá-lo ou não. Então, parece que a questão também é filosófica.

Vivemos em um mundo que cultua o sofrimento, em que as princesas dos contos de fada até têm um final feliz, mas nunca antes de comer a maçã envenenada; em que filmes que mostram mortes em série rendem fortunas; em que se acredita que podemos nos redimir de pecados com sofrimento.

Assim, o cutting, como qualquer outro tormento de difícil superação, exige, além da correção da disfunção química do cérebro, a psicoterapia com tudo o que ela representa — do enfrentamento das vivências dolorosas à revisão da filosofia de vida. Sem esse conjunto de medidas, nada de concreto poderá ser conquistado.

E, parafraseando Jean Paul Sartre, deixo a seguinte mensagem: não importa o que fizeram com você ou o que lhe disseram sobre as coisas da vida. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você, as reflexões que você não apenas pode, mas necessita fazer para crescer.

Maraci Mendes de Santa é psicóloga e terapeuta

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