ABONG *
Adital – Desde que a ditadura militar brasileira acabou (1985), grupos de direitos humanos e entidades que reúnem ex-presos(as) políticos(as) e familiares de mortos(as) e desaparecidos(as) se esforçam por reconstruir a história deste triste período. Este esforço é muitas vezes prejudicado pela falta de informações oficiais sobre o funcionamento e ações dos órgãos de repressão, já que o Brasil, diferente de outros países que passaram por situações políticas semelhantes, não abriu os arquivos da ditadura.
Ainda hoje, as famílias e amigos(as) de 159 desaparecidos(as) políticos buscam informações que reconstituam os episódios em que essas pessoas foram mortas e levem a seus restos mortais. Algumas iniciativas de setores do governo, sendo a mais recente delas o texto do Plano Nacional de Direitos Humanos III, procuram instituir comissões de apuração e busca de documentos e vestígios dos(as) desaparecidos(as), mas ainda enfrentam reações dos setores militares e conservadores em geral.
Lançado em 25 de março deste ano, em um debate na PUC-SP, o livro “Luta, substantivo feminino: Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura”, parceria entre a Secretaria Especial de Direitos Humanos e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, é uma dessas iniciativas. Coordenada por Tatiana Merlino e Igor Ojeda, jornalistas, a publicação traz 45 perfis de mulheres assassinadas ou desaparecidas durante a ditadura militar, além de 27 depoimentos de sobreviventes que, por pertencerem à organizações de oposição ao regime, foram presas e torturadas.
O livro é a terceira publicação derivada do relatório: Direito à memória e à verdade, que traz as histórias de vida, militância e morte das 436 pessoas que assassinadas e desaparecidas por questões políticas entre 1964 e 1985. A primeira reúne perfis dos(as) quarenta afrodescendentes mortos(as) pela ditadura e a segunda foca nas violações cometidas pelo regime militar contra crianças e adolescentes.
Disponível integralmente para leitura no endereço: http://portal.mj.gov.br/sedh/livromulheres.pdf, Luta, substantivo feminino é, nas palavras do ministro Paulo Vanucchi, uma forma de jogar “luzes sobre uma história que o Brasil não deve apagar da memória”.
Leia abaixo alguns dos depoimentos presentes no livro:
“Muitos deles vinham assistir para aprender a torturar. E lá estava eu, uma mulher franzina no meio daqueles homens alucinados, que quase babavam. Hoje, eu ainda vejo a cara dessas pessoas, são lembranças muito fortes. Eu vejo a cara do estuprador. Era uma cara redonda. Era um homem gordo, que me dava choques na vagina e dizia: ‘Você vai parir eletricidade’. Depois disso, me estuprou ali mesmo. Levei muitos murros, pontapés, passei por um corredor polonês. Fiquei um tempão amarrada num banco, com a cabeça solta e levando choques nos dedos dos pés e das mãos. Para aumentar a carga dos choques, eles usavam uma televisão, mudando de canal, ‘telefone’, velas acesas, agulhas e pingos de água no nariz, que é o único trauma que permaneceu até hoje. Em todas as vezes em que eu era pendurada, eu ficava nua, amarrada pelos pés, de cabeça para baixo, enquanto davam choques na minha vagina, boca, língua, olhos, narinas. Tinha um bastão com dois pontinhos que eles punham muito nos seios. E jogavam água para o choque ficar mais forte, além de muita porrada. O estupro foi nos primeiros dias, o que foi terrível para mim. Eu tinha de lutar muito para continuar resistindo. Felizmente, eu consegui. Só que eu não perco a imagem do homem. É uma cena ainda muito presente. Depois do estupro, houve uma pequena trégua, porque eu estava desfalecida. Eles tinham aplicado uma injeção de pentotal, que chamavam de ‘soro da verdade’, e eu estava muito zonza. Eles tiveram muito ódio de mim porque diziam que eu era macho de aguentar. Perguntavam quem era meu professor de ioga, porque, como eu estava agüentando muito a tortura, na cabeça deles eu devia fazer ioga. Me tratavam de ‘puta’, ‘ordinária’. Me tratavam como uma pessoa completamente desumana. Eu também os enfrentei muito. Com certa tranquilidade, eu dizia que eles eram seres anormais, que faziam parte de uma engrenagem podre. Eu me sentia fortalecida com isso, me achava com a moral mais alta.
[DULCE MAIA, ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), era produtora cultural quando foi presa na madrugada de 26 de janeiro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive em Cunha (SP), é ambientalista, dirige a ONG Econsenso e é cogestora do Parque Nacional da Serra da Bocaina].
“Quando fui presa, minha barriga de cinco meses de gravidez já estava bem visível. Fui levada à delegacia da Polícia Federal, onde, diante da minha recusa em dar informações a respeito de meu marido, Paulo Fontelles, comecei a ouvir, sob socos e pontapés: ‘Filho dessa raça não deve nascer’. Depois, fui levada ao Pelotão de Investigação Criminal (PIC), onde houve ameaças de tortura no pau de arara e choques. Dias depois, soube que Paulo também estava lá. Sofremos a tortura dos ‘refletores’. Eles nos mantinham acordados a noite inteira com uma luz forte no rosto. Fomos levados para o Batalhão de Polícia do Exército do Rio de Janeiro, onde, além de me colocarem na cadeira do dragão, bateram em meu rosto, pescoço, pernas, e fui submetida à ‘tortura cientifica’, numa sala profusamente iluminada. A pessoa que interrogava ficava num lugar mais alto, parecido com um púlpito. Da cadeira em que sentávamos saíam uns fios, que subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios. As sensações que aquilo provocava eram indescritíveis: calor, frio, asfixia. De lá, fui levada para o Hospital do Exército e, depois, de volta à Brasília, onde fui colocada numa cela cheia de baratas. Eu estava muito fraca e não conseguia ficar nem em pé nem sentada. Como não tinha colchão, deitei-me no chão. As baratas, de todos os tamanhos, começaram a me roer. Eu só pude tirar o sutiã e tapar a boca e os ouvidos. Aí, levaram-me ao hospital da Guarnição em Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as coisas, o médico, irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem anestesia. Foi uma experiência muito difícil, mas fiquei firme e não chorei. Depois disso, fi cavam dizendo que eu era fria, sem emoção, sem sentimentos. Todos queriam ver quem era a ‘fera’ que estava ali”.
[HECILDA FONTELLES VEIGA, ex-militante da Ação Popular (AP), era estudante de Ciências Sociais quando foi presa, em 6 de outubro de 1971, em Brasília (DF). Hoje, vive em Belém (PA), onde é professora do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará (UFPA)].
* Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais