VIRAMUNDO entrevista Beatriz Galli sobre a Medida Provisória que institui a bolsa-chocadeira e cria o sistema de vigilância de gestantes
Vocês foram ouvidas sobre essa MP pelo Ministério da Saúde? Em nenhum momento?
Beatriz Galli – Como integrante de redes de defesa dos direitos humanos das mulheres e da comunidade jurídica que trabalha na questão da bioética e dos direitos sexuais e reprodutivos posso dizer que não tomamos conhecimento desta Medida Provisória com anterioridade, somente quando foi lançada.
De quem brotou essa obra prima? A senhora diria que foi gerada onde?
BL – Não posso afirmar qual é a autoria da MP mas posso assegurar que ela não atende aos fins para que foi criada e tem várias inconsistencias jurídicas e até mesmo artigos inconstitucionais. No início deste ano, foi lançado o Programa Rede Cegonha. Agora, vem essa MP 577. “Eles” são parentes?
Por quê? Em que medida?
BL -Sim acredito que fazem parte da mesma estratégia governamental de prevenção da morte materna, ou pelo menos, essa é a versão official que justifica a MP porém considero que ela é ineficaz para a prevenção da morte materna. A MP deve ser questionada por violar a autonomia da mulher gestante ao criar um cadastro compulsorio que cria um sistema de controle e vigilancia de sua vida reprodutiva. Essa medida não terá repercussões na qualidade da atenção dispensada a mulher gestante, por exemplo, que é o que de fato impacta na redução da mortalidade materna, nem na organização do sistema de saúde para garantir uma vaga ou leito na hora do parto. Pelo contrário, coloca a responsabilidade do transporte para a mulher grávida que ganha um auxilio para o deslocamento até a maternidade. Os serviços de saúde devem ser accessíveis a população e o transporte é responsabilidade do Poder Público prover como garantia do direito a saúde para a população.
O que significa em termos práticos a medida provisória 577?
BL – A MP não tem efeitos práticos que possam de fato contribuir para a redução da mortalidade materna no Brasil pois sabemos que o nosso maior problema não é o acesso das mulheres aos serviços de saúde mas a qualidade da atenção as mulheres nos serviços de saúde Isso não se alterar somente com uma Medida Provisória. O acesso a exames, diagnóstico oportuno, profissionais treinados em emergencia obstetrica, transferencia imediata para uma unidade de maior complexidade, com vaga para receber a mulher, por exemplo, a medida provisória não irá garantir.
O que representa para os direitos sexuais e reprodutivos da mulher?
BL – A Medida Provisoria não menciona os direitos sexuais e reprodutivos em nenhum momento.
A partir do momento em que ela assegura 50 mensais para a mãe que se inscrever, ela institui a bolsa-chocadeira?
BL -A mulher passa a ser vista como um receptáculo para o desenvolvimento de um novo ser, violando a sua autonomia e a sua dignidade. No caminho inverso ao reconhecimento da liberdade e autonomia das mulheres, a MP tem uma clara ponderação pró-feto que novamente reconduz a mulher à condição análoga a de uma incubadora, sem autonomia,
Quais os pontos cruciais da MP? Por quê? Isso já não estava previsto nas leis brasileiras?
BL – A MP é ineficaz para tratar das causas de mortalidade materna no país. Para isso o governo deveria ter se baseado no Relatório da CPI de Mortalidade Materna de 2001 que traz todas as recomendações em termos de políticas e leis necessárias para a sua redução. Além disso, a MP tem equivocos conceituais e por isso tem efeito discriminatório pois viola a vida privada das mulheres ao instituir um cadastro obrigatório de gestantes, além disso preve medidas e ações já previstas em políticas públicas e normativa no ambito do SUS, previstas no Pacto de Redução da Mortalidade Materna em 2004, para investigação dos óbitos e fortalecimento dos Comites de Mortalidade Materna, essenciais para prevenir as causas evitáveis de morte materna, como destacado abaixo:
No ambito do Ministério da Saúde, da Portaria nº 1.119/GM/MS, de 5 de junho de 2008, que regulamentou a vigilância de óbitos maternos no âmbito do SUS, executada por meio de parceria com Estados, Distrito Federal e Municípios como uma das ações previstas no Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, de 8 de março de 2004.A referida portaria define diretrizes para investigação de óbitos de mulheres em idade fértil e o estudo do óbito materno, estabelece os fluxos e prazos especiais para estes eventos, redefine o papel das Secretarias de Saúde de Municípios, Estados e do Distrito Federal, do Ministério da Saúde e dos Comitês de Morte Materna quanto à vigilância do óbito. Promove uma grande mudança de paradigma ao reconhecer que a investigação de óbitos de mulheres em idade fértil bem estruturada e, sobretudo, ágil, realizada como atividade de rotina pelos setores de vigilância epidemiológica das Secretarias de Saúde é indispensável para a identificação de óbitos maternos e infantis sub-informados ou sub-registrados e seus fatores determinantes. Por outro lado, reflete a compreensão de que os Comitês de Prevenção da Morte Materna, Infantil e Fetal qualificam o estudo desses óbitos podendo levar á definição de medidas para a redução desses eventos adequadas à realidade local.Atendendo à deliberação da referida Portaria, foi criado no Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, o Módulo de Investigação de Óbitos de Mulheres em Idade Fértil, que permite o registro das ações de investigação e estudo de cada óbito, pelo Distrito Federal e Municípios, contribuindo para o monitoramento dessa prática.Os resultados oriundos desse sistema permitiram identificar que mais de70% dos óbitos de mulheres em idade fértil ocorridos em 2010 foram investigados.
Quais os pontos em comum entre a bolsa-chocadeira e o projeto da bolsa estupro?
BL – A garantia de direitos ao nascituro igualmente mencionado projeto bolsa-estupro e no Estatuto do Nascituro, é um ponto em comum e flagrantemente inconstitucional. Os direitos da mulher são previstos na ordem constitucional que não adota a proteção da vida desde a concepção. Ao contrário, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou que a
O Magno Texto Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. Não faz de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva (teoria ‘natalista’, em contraposição às teorias ‘concepcionista’ ou da ‘personalidade condicional’). E quando se reporta a ‘direitos da pessoa humana’ e até a ‘direitos e garantias individuais’ como cláusula pétrea, está falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais ‘à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade’, entre outros direitos e garantias igualmente distinguidos com o timbre da fundamentalidade (como direito à saúde e ao planejamento familiar). (…)O embrião referido na Lei de Biossegurança (in vitro apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível. O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O embrião pré-impl
anto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere à Constituição.” (ADI 3.510, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 29-5-2008, Plenário, DJE de 28-5-2010.)
A tentativa de equiparar os direitos do nascituro aos direitos da mulher gestante reduz ou dilui os direitos da mãe, como o direito à liberdade, visto que ela teria de ser praticamente monitorada e ter a sua gravidez registrada e supervisionada ou vigiada para cumprir os dispositivos da MP. A rigor, a mulher teria uma “obrigação” legalmente imposta de ter todos os filhos gerados já que estaria sendo monitorada pelo Estado para tal finalidade, violando o direito a igualdade previsto na Constituição Federal pois somente as mulheres engravidam e podem gerar filhos.
Quando o Ministério da Saúde lançou o Rede Cegonha ignorou o programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher . Na ocasião, nós questionamos isso. Agora, na tal medida provisória, é dito que essa vigilância da gestante e do nascituro faz parte da Atenção Integral à Saúde da Mulher. Seria apenas um fetiche? Ou uma expressão pra ingês ver? Ou para dar um cala boca nas feministas?
BL – A polarização com as feministas não ajuda em nada neste momento. As feministas lutaram por décadas para que tivessemos as politicas em direitos sexuais e reprodutivos que temos hoje no pais, a Lei de Planejamento Familiar entre outras conquistas importantes para toda a sociedade. Existe por parte de setores conservadores no governo e fora dele uma tentativa de instituir uma nova ordem jurídica que desconsidera a mulher como sujeito de direitos constitucionais e direitos humanos. O Brasil está na contramão na garantia dos direitos reprodutivos das mulheres. O Brasil já foi condenado pelo Comite CEDAW pelo Caso Alyne em que uma mulher foi vítima de morte materna evitável. As medidas necessárias foram recomendadas pelo Comite ao Estado do Brasil, em especial as destacadas em amarelo abaixo que tratam do acesso das mulheres a assistencia medica emergencial de qualidade e a procedimentos de responsabilização de profissionais que tenham sido negligentes ou que tenham contribuido para o desfecho evitavel das mortes maternas. Se o governo de fato tivesse interesse e vontade política em reduzir a mortalidade materna, estaria tomando medidas para implementar a decisão do Comite CEDAW e não lançando Medida Provisória para distribuir bolsa de 50,00 para transporte para as mulheres grávidas a partir de um cadastro nacional compulsório de gestantes.
Interessante é que em nenhum momento na tal MP se fala no aborto. Como se vai fazer um mapa da mortalidade mortalidade ignorando a principal causa de morte materna no Brasil? O fato de não abordar o aborto já não cria um viés?
BL – Pior que isso, a MP pretende criar um cadastro de gestantes, violando a vida privada e a confidencialidade das informações médicas contidas nas fichas ou prontuarios em um momento politico de recrudescimento e fechamento de varias clinicas clandestinas de aborto pelo pais. É no mínimo preocupante que o Estado proponha um cadastro de monitoramento e vigilancia das mulheres grávidas se temos uma legislação que criminaliza a prática de aborto e que tem sido usada para fechar clinicas e investigar milhares e processar centenas de mulheres.
A MP tem, entre outros objetivos, reduzir a mortalidade mortalidade. Será possível isso, já que não leva em conta a mortalidade materna?
BL – Acho que já falei acima o porque que a MP de fato não pretende reduzir a mortalidade materna pois as ações previstas não alcançam esta finalidade. O seu enfoque é meramente de controle e vigilancia e não de melhorar os problemas estruturais do sistema de saúde para de fato reduzir as mortes maternas evitáveis.