Debora Diniz
Para aprovar sua reforma da saúde, Obama teve de excluir o aborto do plano de cobertura
Essa foi uma semana histórica para os EUA. A frase que se escuta é “temos agora um sistema de saúde”. Aqueles que resistem ao que certamente será uma das principais conquistas do presidente Obama fazem projeções de que o país caminha para o socialismo. Muito distante de uma mudança política radical como essa, o que se reconheceu foi a proteção a uma necessidade social básica, a saúde. Mas no pacote de serviços a serem garantidos pelo Estado excluiu-se o aborto. Horas antes da votação final na Câmara os Deputados, Obama assinou um documento reafirmando seu compromisso de que a assistência ao aborto estaria fora da cobertura.
As mulheres nos Estados Unidos têm o direito de optar pelo aborto, mas terão que pagar pelos medicamentos ou atendimentos médicos. O impacto é imediato para as mulheres mais pobres e imigrantes, para quem o sistema público de saúde é o único recurso acessível. A pergunta óbvia é: por que excluir o aborto? Assim como acontece no Brasil com a revisão do Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3),o aborto é um tema que rapidamente os governantes cedem à pressão política. É uma questão moral considerada perigosa, que desagrega e, no caso dos Estados Unidos, afastaria da aprovação do projeto de reforma da saúde não só os republicanos, mas também os democratas conservadores. Por trás dos acordos políticos, entretanto, está a negação da proteção a uma necessidade básica de saúde que somente atinge as mulheres – o direito ao aborto.
Por particularidades da legislação americana, não se pode classificar essa exclusão dos serviços de aborto como um ato de discriminação contra as mulheres. Há um embaraço em torno das proteções legais à mulher grávida, um espaço favorável à negociação política que resultou na exclusão dos serviços. Mas em termos éticos é correto falarmos em discriminação, pois a decisão atinge diretamente a saúde reprodutiva das mulheres. Raciocínio semelhante, porém não sustentável no debate político, seria propor a exclusão de serviços específicos de pediatria ou de geriatria, tais como cirurgias para neonatos ou internações prolongadas para idosos. Não tenho dúvida de que exclusões deliberadas de serviços cujos resultados atingem uma parcela específica da população são discriminatórias.
Mas o que está por trás dessa decisão paradoxal dos Estados Unidos é uma compreensão equivocada de democracia. E para entender esse fenômeno, o caso brasileiro com o PNDH-3 é exemplar. O programa de direitos humanos é um conjunto de recomendações políticas sobre como fortalecer a cultura dos direitos humanos no Brasil. Não tem força de lei, mas seu papel é constranger moralmente os governantes sobre as fragilidades dos direitos humanos para grupos específicos e sobre determinados temas. Foi nesse contexto que se provocou a história da ditadura, a questão agrária, a laicidade e o aborto.
Diferentes grupos e interesses sentiram-se ameaçados com o constrangimento provocado pelo plano, mas nenhum tema fez tão rapidamente o governo federal recuar quanto a questão do aborto. A razão é simples – a moral religiosa é mais forte que a cultura dos direitos humanos no Brasil. Ameaçar a hegemonia católica sobre o aborto em ano de eleições é um ato temerário.
O anúncio de revisão do plano é já a prova desse recuo de forças. Há, contudo, uma ameaça à democracia nesse jogo político, pois se ignora que a plataforma de direitos humanos do país não é determinada por valores religiosos ou pessoais de seus governantes, mas pela Constituição Federal e pelos acordos internacionais assinados pelo Brasil nas últimas décadas. A descriminalização do aborto é um compromisso do país por duas razões simples e seculares. A primeira, porque protege uma necessidade de saúde básica– a de não morrer por um aborto realizado em condições inseguras. A segunda, porque protege nosso marco constitucional que reconhece o direito à liberdade e à dignidadedas mulheres.
DEBORA DINIZ É PROFESSORA DA UnB E PESQUISADORA DA ANIS: INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO
artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo em 28/3/2010