Silvia Camurça: 3o Programa Nacional de Direitos Humanos PNDH3 tem que ser por inteiro. Não, pela metade.

Entrevista com Sílvia Camurça: “Quem tem que garantir integralidade do Programa é o Governo”.  “O governo não deve retroceder”.

 


No contexto em que o Governo Federal anuncia que fará mudanças no 3o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), os movimentos sociais do campo democrático e popular se unem mais uma vez na defesa integral do Programa. As propostas de alterações sinalizadas pelo Governo giram em torno dos pontos considerados “polêmicos” pelos setores conservadores do Brasil, como a legalização do aborto; a mediação de conflitos agrários e a exigência de audiência pública prévia nos casos de reintegração de posse de terra; apuração dos crimes cometidos pelos serviços de repressão da Ditadura Militar; retirada de símbolos religiosos de espaços públicos, e o controle social da mídia.


É importante destacar que estes temas incluídos no PNDH3 são legítimos e foram construídos a partir de processo democrático realizado a partir de 50 conferências. Em entrevista, a educadora do SOS Corpo e representante da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) na Frente Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto, Silvia Camurça, fala sobre a atual conjuntura, reforçando a defesa integral do Programa como importante para democracia brasileira e para o sistema de construção participativa de políticas públicas.


Mariana Moreira, da Assessoria de Imprensa do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia


Grande parte dos veículos de comunicação tem divulgado alterações a serem feitas pelo Governo Federal no 3o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), sobretudo nos pontos ditos “polêmicos”. Mas, de fato, houve alteração? Como está este processo?


Sílvia Camurça – Faz dois meses que o Ministro da Secretaria Especial de Direito Humanos, Paulo Vanucchi, anuncia que vai alterar o Programa, inclusive o Governo Lula já deu declarações sobre isso. Mas, o novo decreto não saiu, portanto não houve alteração. Um decreto só pode ser alterado por outro decreto. E, em tese, o PNDH3 só poderia ser alterado por outro processo de construção, ou seja, para a quarta versão. Então, não houve alteração e nem deve haver, se forem respeitados os processos de construção dos planos que esse governo vem implementando. Se esse Governo ousar fazer um novo decreto revogando o anterior, ele vai estar jogando por terra todo o processo de democracia participativa e promoção da cidadania ativa que vem promovendo.


O que representa o 3o Programa Nacional de Direitos Humanos para a sociedade brasileira?


Sílvia Camurça – O PNDH3 está muito longe de representar o alcance da sociedade justa e democrática que a gente deseja para o nosso país. A maioria de nós, brasileiros e brasileiras, queremos viver em um país justo, onde as pessoas tenham direitos, não passem fome, onde não tenha gente vivendo na rua, não existam pessoas sofrendo violência, onde quem está doente possa ter assistência pública de qualidade. Ou seja, a gente quer todos os direitos humanos vividos na prática. O PNDH3 está longe disso, mas ele avança muito em relação aos dois programas anteriores, porque envolveu um processo de construção mais participativo, recolhendo o que foi acumulado de debate e decisões em cerca de 50 conferências de políticas públicas. Então, o PNDH3 é muito abrangente e trata das principais questões, tanto de grupos populares específicos, por exemplo, pessoas com deficiência e comunidades quilombolas, ou ainda questões de interesse geral do espaço democrático, como apurar os crimes cometidos pelos torturadores durante a Ditadura Militar. O PNDH3 abrange também conflitos na área rural, apontando como o Estado deve mediar os conflitos rurais, que são muito profundos aqui no Brasil, de uma maneira democrática e justa.


Então, o PNDH3 incide nos problemas de populações específicas e as questões que interessam à sociedade como um todo. O Programa produz indicativos de como o Estado deve atuar nos conflitos que são derivados das lutas por terra, por moradia e outras lutas sociais por direitos humanos. Essa é a principal contribuição deste terceiro Programa, que deve ser a inspiração e o “norte” dos governos e poderes da República do Brasil. Agora, enquanto cultura política, o fato de os setores conservadores terem atacado o PNDH3 fez com que ele adquirisse uma contribuição especial para a sociedade: desempenhar um papel educativo, formativo, sobre o que é direito e o que não é direito humano, sobre quem são os atores que defendem e quem é contra o avanço dos direitos humanos. Por conta da polêmica que gerou, o PNDH3 está cumprindo um papel muito pedagógico, neste momento, para o conjunto da nossa sociedade.


Quais são os atores contrários ao PNDH3 e, portanto, que não defendem o avanço dos direitos humanos no Brasil?


Sílvia Camurça – Para identificá-los, há nome e endereço. É o Clero, representado institucionalmente pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), é a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que inclusive se retirou da Conferência Nacional de Comunicação. Os grandes jornais comerciais também têm promovido a desqualificação do PNDH3. Um outro ator está representado por todos os latifundiários que são contrários a algumas partes do Programa, especificamente a política de conciliação nos casos de conflitos agrários. Há também o setor das forças militares que é contrário à instalaç

ão de qualquer comissão para averiguar os crimes de tortura durante a Ditadura Militar.


Esses atores têm se posicionado contra cerca de dez pontos do PNDH3, que eles criticam conjuntamente. Em especial, a Igreja tem sido o principal articulador desses interesses, manifestados em documentos dos setores fundamentalistas, como o Manifesto de Bispos católicos e a Declaração do Encontro de Organizações em Defesa da Vida. Então, a Igreja conservadora está sendo o ator principal que faz toda essa articulação. Em seus textos, a Igreja diz que o Programa viola a propriedade privada, como os latifundiários dizem; que o Programa viola a liberdade de imprensa, como as grandes empresas comerciais de comunicação dizem; que a Comissão da Verdade vai ameaçar a individualidade dos cidadãos, como os militares dizem. Ou seja, a Igreja Católica, o seu Clero, está coordenando e aglutinando a aliança desses setores conservadores, junto com os meios de comunicação.


E como a Igreja atua em relação à legalização do aborto que é parte integrante do PNDH3?


Sílvia Camurça – A Igreja tem o interesse principal de evitar a legalização do aborto. A Igreja tem se colocado totalmente indiferente à vida das mulheres e ao que se passa com a vida e morte das mulheres, trabalhando no sentido de sua criminalização. A Igreja aboliu do seu discurso a idéia de pecado porque já não conseguia adesão da população, dadas as contradições que vivencia, com os casos de pedofilia e outros escândalos. Então, a Igreja passou a tratar o aborto como crime, criminalizando as mulheres que o praticam. Além disso, mente ao dizer que o PNDH3 pretende legalizar “totalmente” o aborto. A palavra “totalmente” é um subterfúgio para confundir a população insinuando que o Programa não tem critério para a prática do aborto ou que confunde aborto com parto antecipado. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), aborto é até a 22a semana (154 dias). Daí para diante, se fala em parto. Portanto, é impossível falar de aborto aos 6 ou 7 meses de gravidez. Neste período, trata-se de um parto. O PNDH3 trata do aborto. Mas, a Igreja faz de conta que é tudo a mesma coisa. Eles usam uma informação falsa para confundir a opinião pública violando, mais uma vez, o direito humano à informação de qualidade e correta.


No tocante à legalização do aborto, que avanços o 3o Programa Nacional de Direitos Humanos traz quando comparado aos programas anteriores?


Sílvia Camurça – O primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos, feito no Governo de Fernando Henrique Cardoso, introduziu o aborto dentro do debate dos direitos humanos. Esse é seu mérito. Entretanto, esse Programa introduziu o aborto nos marcos da lei atual. O problema é que a lei atual, de 1940, exclui a grande parte das mulheres que fazem aborto, criminaliza estas mulheres. Anteriormente, o aborto não era considerado crime, ele foi criminalizado e passou a figurar no Código Penal em 1940. Portanto, antes disso, era uma prática moralmente condenada, mas não um crime.


A lei atual só protege a mulher em duas situações: quando ela corre risco de vida ou quando ela engravidou decorrente de um estupro. Apenas nesses dois casos, as mulheres podem recorrer ao Sistema Único de Saúde (SUS) e têm o direito legal para realizar o aborto. Acontece que a maioria dos abortos que nós mulheres fazemos não se encaixa nessas condições.


A pesquisa Aborto e Saúde Pública no Brasil – 20 anos, realizada pelo SUS e a Universidade de Brasília (UNB) em 2009, concluiu que a maioria das mulheres que chegaram ao SUS tendo praticado aborto em casa ou sendo socorridas estavam em outras condições. Elas não estão fazendo aborto porque foram estupradas, nem porque correm risco de vida. Elas estão praticando aborto porque o método de contracepção falhou. A pesquisa revela que essas mulheres são em sua maioria jovens entre 23 e 29 anos, casadas ou mantendo vida sexual ativa com um parceiro único, são mães de um a dois filhos, e estavam usando método de contracepção. Isso significa que são essas mulheres que estão desprotegidas da atual lei, que só abrange os dois casos. E entre essas, a maioria é negra, porque a situação de concentração de renda hoje no Brasil faz com que os serviços públicos sejam procurados pela população mais pobre e o racismo faz com que a população negra seja a mais pobre.


Assim, a maioria das mulheres que estão tendo seus direitos humanos violados nos serviços públicos, sendo mal tratadas, punidas ou correndo o risco de serem presas em clínicas clandestinas são essas mulheres: jovens, negras, mães, casadas e usando método contraceptivo.


O PNDH3 avança, então, em relação ao primeiro Programa porque passa a proteger todas as mulheres. Esse é o avanço. O terceiro Programa praticamente universaliza o direito ao aborto nas condições acordadas pela Comissão Tripartite para Revisão da Legislação sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez: com o critério de ser até a 12a semana por livre decisão da mulher; e até a 20a, em caso de violência sexual.


O fim da criminalização das mulheres que praticam o aborto está explícito no 3o Programa Nacional de Direitos Humanos?


Sílvia Camurça – Sim. Está escrito com todas as letras que é apoiar o Projeto de Lei que descriminalize o aborto e promova os direitos humanos das mulheres, considerando o direito à sua autonomia. Isso está no Programa e, implicitamente, a gente sabe, pois o Governo tem declarado que entende o aborto como um problema de saúde públ

ica.


Como está a conjuntura política em torno da defesa integral do PNDH3?


Sílvia Camurça – Até a primeira quinzena de abril, teremos um período muito intenso de debate e discussão, porque o Governo vem anunciando que, depois do dia 12 de abril, data da Audiência Pública com o Ministro Paulo Vanucchi no Congresso Nacional, haverá a revisão do Programa.


Então, acontecerá uma série de iniciativas dos movimentos sociais para marcar posição em defesa da legitimidade e integralidade do PNDH3. Reuniões estão sendo convocadas em Brasília, atividades vão ocorrer na semana da Audiência no Congresso, está ocorrendo articulação de documentos e assinatura via meio eletrônico. A Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres está discutindo também uma mobilização para uma nova rodada de assinaturas.


Os conservadores, por outro lado, provavelmente estarão desqualificando em massa o Programa, nesse período, porque eles estão disputando a opinião pública. E, com certeza, estão articulados. Por exemplo, houve estouro de clínica recentemente no Rio de Janeiro (RJ) e isso, no geral, é uma ação articulada. Outro indicativo: o julgamento das enfermeiras do Mato Grosso do Sul envolvidas no caso da clínica descoberta neste estado, foi transferido para a semana do 12 de abril. Como o Judiciário conservador do Mato Grosso do Sul é muito associado a Opus Dei, organização ligada à Igreja Católica, fica evidente que toda essa ação está articulada para criar um ambiente de hostilidade em relação à prática do aborto, para manter a criminalização das mulheres. Nós compreendemos desta forma a conjuntura e trabalhamos articulando o movimento pelo outro lado para demonstrar o contraditório da discussão, para não ficar apenas uma versão dos fatos, das questões e das propostas.


Quais são os próximos passos para garantir a implementação do 3o Programa Nacional de Direitos Humanos da forma como ele foi concebido?


Sílvia Camurça – Quem tem que garantir a integralidade do PNDH3 é o Governo Lula. Afinal, o Programa é responsabilidade desse Governo, é produto das conferências e do processo de participação política que este Governo promoveu. E mais: é o melhor Programa de Direitos Humanos que o Brasil já teve. Então, a responsabilidade de jogá-lo no lixo, ou não, é do Governo. O que os movimentos sociais do campo democrático e popular vão fazer é seguir afirmando que consideramos absolutamente legítimo o Programa tal como ele está. O Governo não deve retroceder. Se o Governo vai nos ouvir ou ouvir aos conservadores, isso teremos que aguardar. Mas, os passos do que fazer em relação ao Programa são do Governo, não está na nossa mão. Inclusive, achamos que será muito ruim para o Governo Lula retirar o tema do aborto. Se fizer isso, este terceiro Programa vai ficar inferior ao Programa do Governo Fernando Henrique Cardoso. Ou seja, retirando o tema do aborto, o PNDH3 vai ficar aquém do pouco avanço do PNDH1 que o Governo FHC estabeleceu. E eu não sei se esse Governo tem o interesse de fazer isso em ano eleitoral.

 

fonte: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia

 

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