Ontem, 23 de março, a Procuradoria Especial da Mulher e a Bancada Feminina da câmara dos Deputados realizaram o seminário Mulheres do Futuro: a formação de uma geração consciente. Tivemos nesse evento várias palestras muito importantes. Lá estava também a Karen Lúcia Borges, diretora colegiada da Associação Lésbica de Brasília – Coturno de Vênus -, representando a Rede Feminista de Saúde. Ela foi brilhante em sua apresentação. As feministas presentes viram nela uma luz importante na crítica ao fundamentalismo e ao machismo. As conservadoras, se mexeram e se reviraram nas cadeiras, como se algo estivesse cutucando o âmago de seu ser. Felizmente a Karen Borges escreveu o que iria falar e gentilmente nos cedeu o texto para que possamos agora compartilhar com você. Vale a pena ler, refletir e debater o que ela nos apresenta. Recomendamos que mande para outras pessoas de suas relações, para que também elas possam refletir sobre esses temas.
Câmara dos Deputados
Brasília, 23 de março de 2010
O evento debate estratégias para que jovens mulheres possam contribuir no processo de transformação cultural, social e política do País.
A presença das mulheres se faz extremamente necessária, (é fundamental) para conseguirmos uma transformação cultural, social e política no Brasil.
E pra quem diz que a juventude é “desorganizada”, “rebelde” ou até mesmo “radical”, eu digo que, apesar de nem todas as pessoas jovens serem assim, é disso que necessita uma transformação. A radicalidade (ou seja, mexer desde a raiz) e a desorganização propositiva, juntamente com toda a coragem e energia da rebeldia, me fazem pensar e sentir que esta pode ser a fórmula estratégica para uma efetiva transformação social.
E para quem fala que juventude é sinônimo de “imaturidade” ou “inexperiência”, são elas, as mulheres jovens e adolescentes, que estão intimamente em contato com muitas das violências que conhecemos; violências iniciadas a partir de poderes socialmente construídos que garantem o caos e que reproduzem o pensamento de que os homens e instituições podem e devem ter o controle sobre o corpo, a vida e saúde das mulheres.
São elas, somos nós, mulheres crianças e mulheres jovens que passamos obrigatoriamente pela criação de ser “mulher”, socialmente, um controle não do homem (marido), mas do pai, mãe, professores(as), familiares, vizinhos… são mulheres que desde cedo passam pela violência sexual dentro de casa, pela exploração sexual pelas ruas, pelos estados e entre países, e tudo isso por pessoas ditas “maduras” e “experientes” – pessoas adultas. Meninas em situação de rua, que aprendem a sobreviver e sentem na pele as marcas das experiências pelas violências vividas. Meninas lésbicas que são rechaçadas e reprimidas em casa, na escola, pela sociedade, tendo que agüentar a heterossexualidade normativa – a chamada “heteronormatividade” tão obrigatória e tão compulsiva na mídia e nos meios de comunicação,(nas novelas, nos desenhos, nas propagandas, outdoors), nos ensinamentos, dos livros de histórias infantis até os livros acadêmicos e literários mais prestigiados do Brasil; na saúde, dentro de rotinas de tantos descasos, desconhecimentos das práticas sexuais e muito menos desconhecem as possibilidades existentes de prevenir DSTs, tanta discriminação e preconceito pelos profissionais nas consultas ginecológicas, na internet, nas páginas virtuais, nas comunidades de relacionamentos que se prendem a divulgar “estupro corretivo para lésbicas – a cura do homossexualismo feminino”… em tudo, em todo os lugares é uma violência invisibilizada; violência essa que é acobertada pela norma social, pela construção e pela interpretação tendenciosa e manipuladora dos acontecimentos históricos, visto que a História construída é masculina, e escrita pelos mesmos.
Seja com uma justificativa religiosa, ou científica, a heterossexualidade passou a ser a regra, a norma social no mundo ocidental. As lésbicas quebram esse modelo na medida em que estas relações escapariam ao “contrato sexual” (Pateman, 1988) que estabelece esse destino biológico para as mulheres, situado entre procriação e casamento.
A origem da violência contra as lésbicas pode estar vinculada, em certos casos, justamente a esta quebra de modelo.
Há que se apontar que existe um evidente esforço social em torno de silenciar, esconder e inclusive negar a existência e prática da lesbianidade. Esse esforço social objetiva desqualificar, desconsiderar, menosprezar as relações entre mulheres no imaginário social. Assim utiliza-se a “política do esquecimento/ a política do silenciamento”- o que não se fala, logo não existe. E o que a História não contou, quer dizer que não existiu? como questiona a Profa. Historiadora, Feminista e fantástica Tânia Navarro em seu livro “O que é lesbianismo”.
Juntamente com a Heteronormatividade, caminha, ou melhor, galopa, a intensidade da construção social dos padrões de gênero – a obrigatoriedade em fazer da criança que nasceu com vagina virar e permanecer ( pra sempre) mulher. Passa moda, entra moda, e a insistência da dicotomia entre os gêneros permanecem, se intensificam e se multiplicam ( roupas e sapatos de salto alto, roupas curtas e apertadas, cosméticos para tratar os cabelos “rebeldes” e deixa-los alisados, numa convivência diária com produtos tóxicos e com as dores corporais provocados pelas regras da “beleza feminina”, do “ser mulher”, “da boa aparência”, “da conquista de amores”( e ser amada) e da “certeza de se dar bem na vida” – verdadeiros rituais torturadores para mulheres) como instrumentos mobilizadores de rebanhos, mais uma estratégia de assegurar o poder nas mãos de um grupo específico – uma violência que mais uma vez é legitimada pelas normas sociais. Normas sociais, estas, de beleza e sensualidade que legitimam o estupro e o pensamento do corpo destas jovens mulheres como objetos de consumo, controle e de diversão, como a cerveja, mostrada em tantos comerciais de TV; ou ainda legitimam violência àquelas que desafiam e fogem dos tais padrões.
Assim, se faz, entre a vida e a morte, o sexo. A importância do sexo na sociedade suporta e é suportado pelas relações desiguais de gênero, pela naturalização da sexualidade e assim se reconstrói a penetração como “verdadeiro sexo”, e o falo ( pênis) como o melhor exemplo, dando mais prestígio à heteronormatividade, às dicotomias, aos estupros corretivos para as lésbicas, a ausência do consenso sexual… às violências que compreendem contra as mulheres jovens cotidianamente, e muitas destas violências acompanham as mulheres na vida adulta justamente pelo fato de serem mulheres.
Como se já não bastasse de opressões por serem mulheres, por serem negras, por serem pobres, por serem lésbicas, indígenas, por serem jovens vivendo com necessidades especiais ou vivendo com HIV/Aids, são jovens, e assim também são tratadas, como inexperientes, radicais, crianças…. e por aí vai. O preconceito geracional é uma questão importante a ser discutida, quando pensamos e esperamos a transformação social juntamente com as mulheres jovens. Este preconceito está muito mais presente do que imaginamos, está dentro dos movimentos sociais, e em vários outros espaços de formação e de controle social. É uma das outras tantas questões que são naturalizada e reproduzidas cotidianamen
te, onde se perpetua o paradigma de que experiência e conhecimento pessoal é sinônimo da quantidade de anos vividos e não é tratado considerando a qualidade/intensidade dessa vivência e todo seu impacto no processo de aprendizagem, uma associação crítica e autônoma.
É falando de mulheres, e ainda jovens, que se abre um leque imenso da nossa realidade, do que vivemos e do que continuamos a viver neste país. Diante das várias especificidades que envolvem as mulheres jovens. E dentro das especificações, é necessário planejarmos ações conjuntas com vários setores da sociedade: educação, saúde, gênero, raça/etnias, comunicação, direitos humanos, bem como um vínculo específico com os poderes legislativo, executivo e judiciário, sendo importantíssimo que caminhemos juntos e juntas contra os fundamentalismos religiosos e todos os conservadorismos que impedem não só o debate de muitos temas de direitos, mas que também impedem o empoderamento das mulheres. É com estas reflexões que tento passar a vocês a visão de que as mulheres jovens podem sim serem protagonistas de muitas transformações sócio-culturais e políticas pelo país e fazer toda a diferença quando empoderadas, conscientes e críticas, como sujeito político e transformadora de sua e da nossa realidade social.
Muito obrigada!
Brasília, 23 de março de 2010
Karen Lúcia Borges Queiroz
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Bibliografia:
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