No final de fevereiro, a Espanha aprovou uma ampla legislação que legaliza o aborto. A nova Lei garante às espanholas o direito à interrupção da gravidez não desejada e regulamenta o atendimento de saúde oferecido pelo estado para que esse direito de fato ocorra de forma segura na prática e na vida cotidiana das mulheres. A Espanha já tinha o aborto descriminalizado, mas os serviços públicos de saúde não garantiam esse acesso, fazendo com que apenas as mulheres com recursos financeiros pagassem pela interrupção em clínicas privadas. Além disso, a nova lei também resolve o argumento de objeção de consciência, apresentado pelos gestores públicos que, muitas vezes se recusavam a oferecer o serviço por não concordarem com a prática do aborto.
O Brasil tem muito o que aprender com a experiência espanhola. No presente momento, nosso país se vê às voltas com as polêmicas geradas a partir da discussão sobre os Direitos Humanos, mais especificamente, o III Plano Nacional de Direitos Humanos, recentemente lançado pelo governo Lula. Gostaríamos de elencar algumas questões e relacionar com as discussões na Espanha sobre o reconhecimento desse direito, ou nas palavras do próprio presidente espanhol, “do reconhecimento de uma dívida com as espanholas”.
Um primeiro ponto que nos chama atenção é a disposição política do poder executivo espanhol em garantir esse direito. Para a conquista da mudança na legislação foi fundamental que Executivo fizesse uma ação consistente de defesa da proposta e depois a encaminhou ao Legislativo. No Brasil, a disposição política para o tema se dá no âmbito do discurso, da fala. Sem dúvidas, é fundamental termos vozes ministeriais e da presidência reconhecendo o aborto como uma questão de saúde pública. Mas, que ações concretas são realizadas para que o discurso se viabilize, para que o discurso vire uma lei real e factível? A presidência da República tem uma grande oportunidade nas mãos para dar esse importante passo. O tema do aborto foi reconhecido no III Plano Nacional de Direitos Humanos como uma questão de direitos humanos das mulheres. O documento final resulta de um amplo processo democrático em que milhares de brasileiros participaram de um ciclo de conferências municipais, estaduais e nacional – um exercício real da democracia participativa. E, por fim, a versão original do III PNDH incluiu, no capítulo sobre direitos das mulheres, a revisão da legislação punitiva sobre aborto. Assim, o Plano entende essa questão como essencial para a autonomia das mulheres sobre seus corpos e, é bom lembrar, essa é uma demanda que foi aprovada tanto na I quanto na II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (CNPM), realizadas em 2004 e 2007, respectivamente, outro amplo processo de consulta popular e democrática que reuniu mais de 200 mil brasileiras.
A inclusão da questão do aborto no III PNDH reflete a luta histórica dos movimentos feministas para que os direitos reprodutivos e os direitos sexuais (que também se materializam no texto do plano) sejam reconhecidos como direitos humanos, portanto, inalienáveis, indivisíveis e universais à autonomia das mulheres sobre seus projetos de vida. Esta inclusão em um documento como o III PNDH demonstra que o direito ao aborto não é uma demanda solitária e exclusiva dos movimentos feministas. Representa o reconhecimento público desse direito por parte de todos os movimentos democráticos de direitos humanos do Brasil que participaram das diferentes Conferências.
Enquanto Zapatero, o presidente espanhol, reconhece o terrível impacto da ilegalidade do aborto para a vida das mulheres e cumpre seu papel de estadista em garantir um direito, o presidente Lula anuncia que irá reverter a proposta de apoiar a descriminalização do aborto no III PNDH, porque a idéia de que as mulheres sejam autônomas para uma decisão como essa não é a visão de seu governo. Ora, podemos nos perguntar, às vésperas do centenário do dia de luta mais importante para as mulheres, o 8 de março, até quando nossa autonomia será vista como algo irrelevante?
Se o governo Lula tivesse coragem de levar essa discussão a frente, seria possível avançar muito mais em termos de direitos das mulheres durante o seu mandato. Assim como na Espanha, o governo brasileiro, sob a coordenação da Secretaria Especial de Política para as Mulheres (SPM) convocou uma comissão tripartite (com representantes do Executivo, Legislativo e Sociedade Civil) para revisar a legislação punitiva sobre o aborto, a partir de demanda expressa nas duas CNPMs. Essa comissão elaborou uma proposta de legalização do aborto, com prazos definidos para a realização da interrupção da gravidez, a partir do entendimento d@s especialistas ouvid@s de que, deixar de ser crime (descriminalizar) não é suficiente para a garantia do direito. Mais uma vez, podemos aprender com a Espanha que já garantia o direito ao aborto nos casos de risco de vida, violência sexual e risco à saúde psíquica das mulheres. Foi preciso ir além. E, quem deu esse passo, mesmo com toda a pressão movida por grupos conservadores religiosos, foi o governo espanhol.
Zapatero parece compreender melhor que a garantia do direito de interromper uma gestação não desejada para algumas mulheres não significa estender uma obrigatoriedade da interrupção à todas! Ele coloca à disposição, de quem precisar, um direito que garantirá atendimento digno e seguro, saúde (mental,inclusive) e cidadania às mulheres espanholas.
Enquanto isso, hoje, o estado brasileiro reconhece precariamente o direito das brasileiras de serem mães, já que os serviços públicos para a garantia de creches, distribuição de métodos contraceptivos, educação infantil em tempo integral são insuficientes diante da demanda existente. Quer dizer, quem deseja ser mãe enfrenta inúmeros desafios para concretizar esse plano e, ainda assim, manter seu emprego, renda e família reunida. Mas precária ainda está a outra realidade: o governo brasileiro sequer reconhece o direito de as brasileiras decidirem não serem mães se assim o desejarem.
Ressaltamos que esse 8 de março pode ser diferente. Lula, em vez de ouvir apenas o que a hierarquia da Igreja Católica (representada pela CNBB) impõe sobre o tema, pode atender à demanda das mais de 200 mil mulheres reunidas nas conferências de políticas para as mulheres bem como dos movimentos de direitos humanos e se colocar pela defesa da integralidade do III PNDH. Em vez de ouvir uma cúpula elitista e não representativa da população, pode valorizar o processo democrático que as Conferências ilustram, respeitando a voz e a decisão de milhares de brasileir@s de diferentes credos e partes desse país. Só assim possibilitará que seu governo seja visto como aquele que ousou romper com amarras que insistem em enxergar as mulheres como cidadãs sem autonomia, sem voz, como meras depositárias da possibilidade do vir a ser, em detrimento da potencialidade de uma vida plena, a vida de nós mulheres brasileiras. Só assim, dará novos passos para frente.
NOTA PÚBLICA DO CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA E
COMISSÃO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS DO CFP
SOBRE AS TENTATIVAS DE MINIMIZAÇÃO DA ABRANGÊCIA DO
III PLANO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS
O III Plano Nacional de
Direitos Humanos (PNDH) foi, dos três PNDHs, o que notadamente se construiu de forma transparente, envolvendo consultas públicas, grande participação popular, conferências municipais e estaduais com a participação de cerca de 14.000 pessoas, representando o poder público e a sociedade civil.
Procurando a efetivação de uma verdadeira política de Direitos Humanos, imprescindível para a construção de um país democrático e para todos, tornava-se indispensável enfocar questões como a democratização da propriedade, dos meios de comunicação, da abertura dos arquivos da ditadura militar (1964-1985), questões de gênero e direitos da mulher, como o direito sobre seu corpo.
Pioneiro na discussão da relação entre modelo de desenvolvimento e Direitos Humanos, afirmando a impossibilidade de efetivar os Direitos Humanos no Brasil sem o combate às desigualdades de renda, raça/etnia e gênero, e à violência nos centros urbanos e no campo, o PNDH III caminha na direção de concretizar o que já foi ratificado nos inúmeros Tratados Internacionais assinados pelo Brasil, no âmbito das Nações Unidas e do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
A proposta atual, que vem sendo bombardeada por setores da mídia, da igreja católica e evangélica, militares e ruralistas, dentre outras oligarquias – que sempre reagem violentamente a qualquer tentativa de mudança no quadro dos Direitos Humanos no país – coloca seis eixos orientadores, que não podem ser negligenciados, sob pena do fortalecimento de uma visão anacrônica dos direitos humanos, confundindo-os com direitos individuais e de propriedade de alguns, e produzindo cada vez mais uma enorme massa de excluídos de direitos – excluídos de humanos direitos.
A experiência da violência da ditadura militar e da violência de seus agentes, autorizados a torturar e a fazer desaparecer corpos, vestígios e memória histórica, ainda está presente e marcando a nossa sociedade. Outrora contra os subversivos, hoje o aparato policial militarizado volta-se contra a população pobre, em suas comunidades, nas prisões, nos cárceres e a céu aberto.
Como psicólogos devemos sublinhar que a reação a qualquer tirania é e sempre será um movimento ativo e saudável. Como cidadãos conscientes e não subjugados a um pensamento hegemônico e empobrecedor das singularidades, devemos apontar que há uma enorme e premeditada produção de confusão sobre a abrangência do III PNDH.
Há uma enorme diferença entre a necessária abrangência de um efetivo e inclusor Plano Nacional de Direitos Humanos e “um plano saco de gatos”, como querem fazer acreditar alguns.
Há uma enorme diferença entre anistia e impunidade, assim como há uma enorme diferença entre luta democrática, mesmo a chamada luta armada, contra uma ditadura feroz, detentora de poder absoluto, de recursos bélicos e formas de repressão violenta a esses grupos, assim como de métodos de produção de subjetividade sobre a sociedade: produção de silenciamento por intimidação.
Há uma escolha a fazer, por um presidente e por um povo, para que a História não se repita como farsa.
Assinamos esta Nota Pública, bem como assinamos todas as notas de repúdio às tentativas de minimização da abrangência do III PNDH.
Brasília, 13 de Janeiro de 2010
Conselho Federal de Psicologia e Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP
fonte: CFEMEA