Redação IHU
“O aparato do Estado deve ser ampliado para ter condições efetivas de atender adequadamente às mulheres vítimas de violência doméstica”, enfatiza a socióloga Patrícia Mattos.
Instituída há cinco anos, a Lei Maria da Penha já resultou em mais de cem mil sentenças por agressão contra mulheres e é considerada um avanço na legislação brasileira “ao diferenciar a violência sofrida pelas mulheres das outras formas de violência. Dá visibilidade à violência doméstica e familiar e chama atenção para sua especificidade”, avalia a professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ).
Apesar de existir uma lei para proteger as mulheres contra a agressão física, ainda não existe uma norma que dê conta de combater a “violência simbólica (…), que não é percebida pelas próprias mulheres”. A pesquisadora explica que o conceito de violência simbólica demonstra que existe uma “dominação masculina”, a qual “reproduz os esquemas de pensamento, comportamento e avaliação relacionados a um tipo de visão de mundo que essencializa as disposições ‘masculinas’ e ‘femininas’”. Patrícia Mattos desenvolve pesquisas com mulheres da classe média e diz que os relatos “indicam a recorrência da violência simbólica nas relações e práticas sociais e institucionais”.
Ao avaliar a efetividade da Lei Maria da Penha, na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, a socióloga menciona que alguns magistrados consideram a lei “inconstitucional e que em algumas delegacias de polícia evita-se fazer o registro da violência contra mulheres”, o que gera um “constrangimento”.
Patrícia Mattos é graduada em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), mestre e doutora em Sociologia pela mesma instituição. Atualmente, coordena o Núcleo de Estudos de Gênero (Nege) da UFSJ. É autora dos livros As visões de Weber e Habermas sobre Direito e Política e A Sociologia Política do Reconhecimento: as Contribuições de Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que consiste a violência “simbólica” e por que as mulheres têm dificuldade de identificá-la?
Patrícia Mattos – Violência simbólica é aquela forma de violência “suave”, que não é percebida enquanto tal pelas próprias mulheres. Pierre Bourdieu utilizou esse conceito para ressaltar a força da dominação social injusta, isto é, como ela ganha o coração e a mente dos dominados. Em outras palavras, com o conceito de violência simbólica é possível averiguar, no caso da dominação masculina, as razões da submissão feminina ao jogo da dominação masculina. Esse tipo de violência é “suave” porque reproduz os esquemas de pensamento, comportamento e avaliação relacionados a um tipo de visão de mundo que essencializa as disposições “masculinas” e “femininas”.
Não há dúvida de que a “essencialização” dos gêneros, que está por trás da divisão social dos papéis sociais “feminino” e “masculino”, está baseada num sistema de classificação/desclassificação social que coloca as características tidas como tipicamente masculinas como a supremacia da razão sobre os sentimentos e as emoções, tidas como tipicamente femininas, como sendo socialmente mais valorizadas. Ainda que os papéis sociais “masculino” e “feminino” venham passando por constantes questionamentos e transformações, que nos levam a investigar a pertinência do diagnóstico de Bourdieu a respeito da supremacia do “inconsciente androcêntrico”, tenho percebido em minha pesquisa com mulheres de classe média relatos que indicam a recorrência da violência simbólica nas relações e práticas sociais e institucionais das mulheres entrevistadas.
Em várias situações, a violência simbólica aparece travestida sob a forma de um elogio às mulheres. Lembro-me da reação de indignação de Manuela D’Ávila, candidata à prefeitura de Porto Alegre em 2008, ao dar uma entrevista a um jornalista do jornal Zero Hora. Ao ser questionada se ela achava que sua beleza poderia favorecê-la na disputa eleitoral, Manuela respondeu ao jornalista, em tom de indignação, que esse tipo de pergunta ele jamais faria a um homem que também estivesse na disputa. O reconhecimento da beleza feminina nesse contexto é sempre ambíguo, uma vez que coloca as mulheres no papel de depositárias das virtudes do corpo, onde as virtudes que realmente valem são as do “espírito”, da racionalidade. Podemos citar vários exemplos que ilustram essa ambiguidade e tornam difícil o reconhecimento da violência simbólica para as próprias mulheres. No caso citado, Manuela D’Ávila percebeu e denunciou a violência. No entanto, na maioria das vezes, ou as mulheres não a percebem, ou quando percebem têm receio de denunciá-la, de serem acusadas de mal-agradecidas, ressentidas, problemáticas.
IHU On-Line – É comum mulheres registrarem queixas nas delegacias e depois retirá-las. As mulheres têm dificuldade de enfrentar as ações de violência?
Patrícia Mattos – Certamente. E isso pode ser explicado por várias razões. O medo da vingança dos seus companheiros, a falta de um aparato do Estado que lhes garanta a proteção contra seus agressores, a interdependência econômica e emocional delas em relação a eles são algumas das razões que levam as mulheres a retirar as queixas contra seus agressores. Sem falar na estigmatização que elas podem sofrer ao denunciá-los. A exposição das dores e dos dramas das mulheres vítimas de violência doméstica gera, em muitos casos, estigmatização e preconceito em relação a essas mulheres.
Recordo-me de uma convers
a com uma de minhas entrevistadas, mulher de classe média, na qual ela me contava que havia despedido a sua empregada depois de ter descoberto que ela – a empregada – apanhava do marido. Ainda que ela não tivesse nenhuma reclamação com relação aos serviços prestados pela empregada, ela não hesitou em demiti-la sob alegação de proteção da própria família. E, assim, cria-se um círculo vicioso no qual a vítima de violência física é punida duplamente. Ao ser demitida, aumenta a relação de interdependência entre ela e seu agressor na medida em que ela não pode garantir as condições materiais para a sobrevivência dela e de seus filhos. Ela é rotulada como “mulher problema”, sendo ainda culpada, aos olhos de sua patroa, por não denunciar as violências sofridas.
IHU On-Line – Ao não denunciarem os agressores, as mulheres acabam reafirmando a violência sofrida?
Patrícia Mattos – Sim. No entanto, não devemos colocar a culpa pela omissão exclusivamente nas mulheres, sob pena de culparmos e responsabilizarmos as vítimas pela permanência da violência doméstica. Devemos procurar entender as razões que explicam esse fato. A começar pela reprodução do “inconsciente androcêntrico” nas delegacias de polícia, desencorajando e desestimulando as mulheres a denunciar seus agressores. Em geral, este campo é dominado por homens que, muitas vezes, tendem a ver a violência contra a mulher como um problema “menor”, de foro íntimo.
Há magistrados que consideram a Lei Maria da Penha inconstitucional e se sabe que em algumas delegacias de polícia evita-se fazer o registro da violência contra mulheres. Sem falar nos acordos intersubjetivos que se colocam tacitamente no âmbito das delegacias de polícia e que expressam os julgamentos machistas que responsabilizam as mulheres pelas violências sofridas. Este é apenas um dos constrangimentos sofridos pelas mulheres. É necessária a ampliação do aparato do Estado. A expansão das delegacias especializadas em atendimento à mulher, dos centros de referência, dos abrigos temporários para receber as mulheres vítimas de violência doméstica e a punição administrativa aos agentes do Estado que não cumprem a lei são algumas medidas que me parecem relevantes para estimular a denúncia dos casos de violência doméstica.
IHU On-Line – Como compreender a violência contra a mulher em uma época em que ela já conquistou diversos direitos?
Patrícia Mattos – A universalização dos direitos foi, sem dúvida, uma conquista importante das lutas feministas. No entanto, a manutenção da dominação masculina ultrapassa muito a esfera jurídica formal. O reconhecimento social por meio do direito não garante efetivamente a supressão das desigualdades de fato. Uma das formas mais eficazes de manutenção da dominação social injusta, como bem denunciaram todos os movimentos de minorias – com destaque para o movimento feminista –, é quando os dominantes recorrem ao universalismo, à igualdade de direito para reproduzir e legitimar a desigualdade de fato. Para compreender adequadamente a permanência das desigualdades existentes entre homens e mulheres, é necessário discutir as bases implícitas, pré-reflexivas do “contrato” entre homens e mulheres, que é atualizado e recriado em suas relações e práticas sociais e institucionais.
IHU On-Line – A violência simbólica se manifesta de maneira diferente entre mulheres de classes média e alta e mulheres de classe baixa?
Patrícia Mattos – Creio que quanto mais subimos na hierarquia social, mais “sutis” são as formas de violência contra mulher, mais forte é a ideologia da igualdade entre os gêneros. Com isso não estou dizendo que não há mudanças significativas nas relações entre homens e mulheres, mas que é necessário fazer a distinção entre as mudanças reais e as mudanças aparentes, que representam, na verdade, a continuidade da dominação masculina sob aparência de mudança. Ainda que valores machistas possam ser encontrados nas relações e práticas sociais e institucionais de homens e mulheres em geral, de forma transclassista, acredito que na classe baixa o sexismo e o machismo sejam encontrados de maneira mais caricata, mais bruta do que nas classes média e alta.
O fato de as mulheres entrarem no mercado de trabalho, seu maior acesso à instrução formal e sua consequente independência financeira tendem a gerar fricções que podem questionar a “ordem natural dos sexos”, gerando, assim, a possibilidade de mudanças no regime de gêneros. E, nesse caso, as mulheres das classes média e alta, devido ao seu posicionamento social, são privilegiadas em relação às mulheres da classe baixa e tendem a ter relações mais equilibradas com os homens. Isto não significa afirmar, de modo algum, que os padrões de percepção, avaliação e comportamento machista e sexista não estejam presentes nas relações e práticas sociais e institucionais dessas mulheres privilegiadas.
Tenho notado em minhas pesquisas com mulheres de classe média que aquelas que conseguiram uma colocação bem-sucedida no mercado de trabalho, em muitos casos, tendem a apagar as desigualdades de gênero e ressaltar toda a ideologia meritocrática, ainda que elas relatem sofrer, das mais variadas maneiras, violência simbólica. Já com as mulheres de classe baixa, as violências manifestas, abertas, efetivas são mais evidentes e expostas. Com isso, não estou dizendo que as mulheres das classes média e alta não sofram violências físicas, abusos e explorações, mas que esse tipo de violência, nesses estratos sociais, não tem a mesma visibilidade que possui na classe baixa.
IHU On-Line – Que avaliação faz dos cinco anos da instituição da Lei Maria da Penha? Quais os avanços e limites?
Patrícia Mattos – Sem dúvida, a lei representa um avanço ao diferenciar a violência sofrida pelas mulheres das outras formas de violência. Dá visibilidade à violência doméstica e familiar e chama atenção para sua especificidade. Com isso, é tematizada a necessidade de políticas públicas de prevenção e enfrentamento da violência contra a mulher. O recado dado aos agressores é que o Estado irá, como disse a ministra Iriny Lopes, “meter a colher em briga de marido e mulher” para protegê-las. As ações punitivas em relação aos agressores questionam a certeza da impunidade e podem s
er um instrumento eficaz no combate à violência contra as mulheres
No entanto, há muito a ser feito ainda. O aparato do Estado deve ser ampliado para ter condições efetivas de atender adequadamente às mulheres vítimas de violência doméstica. Faltam delegacias especializadas e centros de referência no atendimento à mulher, abrigos temporários, enfim, são necessários mais investimentos, mais políticas públicas de prevenção e enfrentamento da violência contra a mulher.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.
(IHU On-Line)
fonte: Envolverde