Debater a representação da imagem da mulher na publicidade hoje exige voltar os olhos para o impacto que essa imagem pode produzir no imaginário de garotas e garotos.
Desde seus primórdios, a publicidade vem produzindo imagens estereotipadas, discriminatórias e que ofendem a dignidade das mulheres. Mas do que é que se está falando? Indo diretamente ao ponto, estamos falando das campanhas de cerveja: a “Devassa” de hoje, a “A Boa” de ontem e a “Musa do Verão” de anos atrás. No Brasil, as cervejarias – com um grau de liberdade sem limites e sem metáforas – oferecem cervejas geladas e mulheres como uma única mercadoria para homens que buscam prazer.
A mercantilização da imagem e do corpo da mulher, representada pela exibição na mídia de “devassas”, “musas” e “boas” produzidas para homens sedentos, deveria entrar para a galeria do intolerável em uma sociedade que se pretende mais justa, democrática e moderna.
A indústria de cerveja defende suas campanhas publicitárias com o argumento de que são “sátiras” bem humoradas do ideal masculino da beleza feminina e que esse seria o entendimento do público. Contudo, essa argumentação simplista acerca de como seriam percebidas essas campanhas não se sustenta. No comando desse tipo de campanha estão tradicionais fabricantes de cerveja, que investem milhões na contratação de grandes agências de propaganda, que dispõem das mais sofisticadas ferramentas e que conhecem como poucos a força das imagens veiculadas na mídia para criar desejos e reforçar estereótipos.
Devassa: imoral, depravada, libertina, pervertida, pornográfica
As principais características da cerveja da Schincariol são assim descritas: “Devassa é bem alegre, tem aquele astral que atrai coisas boas, pessoas interessantes e papos divertidos. Pedir uma Devassa tem a dose certa de segundas intenções”.
Estes ingredientes que compõem a imagem da “Devassa” possuem grande poder de mobilização da atenção do público jovem. As imagens “provocantes” e de “mulher sensual” exercem significativa atração sobre este público, escolhido claramente como alvo preferencial das campanhas de cerveja. Neste caso, a publicidade da Schincariol é exemplar.
Na campanha “Devassa” não estão em discussão detalhes inconseqüentes, uma vez que a associação da cerveja gelada com o corpo da mulher devassa é explícita. Trata-se, aliás, de uma associação de duplo sentido usada de forma recorrente, e sem nenhum constrangimento, nas peças publicitárias dos fabricantes de cerveja no Brasil. Vale observar no chamado “manifesto” disponível no site da campanha a seguinte descrição: “uma cerveja que se autoproclama Devassa deve ser no mínimo autêntica. Porque assume tudo o que as outras cervejas gostariam de ser, mas morrem de vergonha”. Com essa peça publicitária da Schincariol, que oferece “cerveja loura, ruiva, negra, índia e sarará”, este tipo de associação atinge um nível chocante de explicitude.
Ao reforçar estereótipos negativos da figura feminina – a representação da mulher na propaganda de cerveja opera no plano de uma “mulher símbolo”, uma “mulher ideal”, uma “mulher ilusão”, uma “mulher sensual” a serviço dos desejos masculinos –, os fabricantes de cerveja promovem um efeito pedagógico altamente negativo sobre garotos e garotas. Essa representação feminina remete à coisificação e à submissão.
Essa repercussão sobre os jovens talvez seja o efeito mais nefasto de campanhas como as da “Devassa”, da “A Boa” e da “Musa do Verão”, entre outras. Trata-se de um público que ainda está construindo uma visão crítica e sua capacidade para fazer escolhas, sendo facilmente seduzível pelos apelos desse tipo de propaganda que, apreendida fora de um contexto crítico, será percebida e absorvida como “lúdica, divertida, interessante e ideal”.
Este público jovem em formação não possui ainda um pensamento crítico capaz de se contrapor a essa imagem de mulher como um ser inferior, que foi criado e existe simplesmente para atender à vontade masculina. A explícita coisificação da mulher nesse tipo de propaganda certamente tem o potencial de produzir uma perversa influência na construção do imaginário das novas gerações.
No âmbito do recente debate provocado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) acerca da necessidade de uma regulamentação rigorosa da publicidade de cerveja, o pesquisador Ronaldo Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo, citou em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo (12/04/2007) uma pesquisa divulgada nos EUA que demonstra como as crianças e jovens são fortemente influenciados pelas propagandas.
A necessária revisão do modelo de autorregulamentação da publicidade
Diferentes pesquisas sobre a imagem da mulher na publicidade mostram que há muito se faz uma crítica geral à exploração publicitária do corpo da mulher, usado como chamariz para promover a venda dos mais diversos produtos. A imagem sexualizada da mulher é a mais fortemente rejeitada por diferentes segmentos da sociedade brasileira.
Em relação à propaganda de cerveja, após dezenas de representações e protestos de organismos de defesa dos direitos das mulheres, o Anexo “P” do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, no item 3 – Princípios do consumo com responsabilidade social, traz as seguintes determinações: “a) eventuais apelos à sensualidade não constituirão o principal conteúdo da mensagem; modelos publicitários jamais serão tratados como objeto sexual; (…) c) não serão utilizadas imagens, linguagem ou argumentos que sugiram ser o consumo do produto sinal de maturidade ou que ele contribua para maior coragem pessoal, êxito profissional ou social, ou que proporcione ao consumidor maior poder de sedução”.
A campanha de lançamento da cerveja Devassa para TV – apresentada pela modelo Paris Hilton, que usa um microvestido preto e tira uma cerveja da geladeira ao som de uma música de striptease – nos alerta para a necessária revisão do sistema de autorregulamentação da publicidade, idealizado por anunciantes e agências de publicidade. Este modelo há muito se revelou insuficiente e ineficiente, em especial no Brasil, onde 91% dos jovens assistem à TV durante o tempo livre. Segundo pesquisa realizada em 2008 pela Cultura Data, “é especialmente nos tempos livres e nos lazeres que os jovens constroem suas próprias normas e expressões culturais, ritos, simbologias e modos de ser que os diferenciam do mundo adulto (…) lazer pode ser espaço de aprendizagem das relações sociais em contexto de liberdade de experimentação”.
A p
ublicidade nutre reproduções simbólicas discriminatórias
Os meios de comunicação de massa têm um papel crucial nas sociedades contemporâneas. Através da mídia transmitem-se valores e reforçam-se estereótipos, desejos e preconceitos. O debate sobre avanços e retrocessos na promoção da igualdade entre homens e mulheres exige um olhar atento sobre as dimensões da mídia e seu impacto sobre as novas gerações.
No Brasil, as mulheres apresentam índices cada vez mais altos de escolaridade, uma participação significativa no mercado de trabalho e um grande poder de decisão na hora de consumir. Em menos de um século, as mulheres derrubaram diversos dogmas arraigados nas sociedades ocidentais. Mas ainda falta muito a conquistar, em especial respeito e poder.
Este artigo busca a necessária atenção para a publicidade que opera na contramão dos esforços da sociedade para a promoção de padrões éticos de civilidade e respeito entre homens e mulheres.
Jacira Vieira de Melo é diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão. Formada em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP.
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Jacira Melo – mestre em ciência da comunicação e diretora executiva
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