STJ decreta que ações penais envolvendo mulheres vítimas de agressão doméstica só prosseguirão se a agredida assim o quiser. Decisão, considerada polêmica, abre uma brecha na Lei Maria da Penha
- Noelle Oliveira – Correio Braziliense
Zuleika de Souza/CB/D.A Press – 24/6/08 |
Laís Cerqueira, coordenadora do Núcleo de Gênero Pró-Mulher: “É papel do Estado processar o autor do crime e não perguntar isso para a mulher” |
Breno Fortes/CB/D.A Press – 5/3/07 |
Promotor Fausto Lima: “A ação penal fica nas mãos dos acusados” |
Representantes de movimentos em defesa da mulher saíram transtornados da Terceira Seção Superior Tribunal de Justiça (STJ) na tarde de ontem. Os ministros do tribunal decidiram, por seis votos a três, que ações penais decorrentes de lesões corporais leves ocasionadas por violência doméstica só podem ter prosseguimento caso haja representação por parte da mulher agredida. (1)Com isso, apesar de a Lei Maria da Penha prever o andamento do processo contra o agressor independentemente da vontade da vítima, a jurisprudência a partir de agora determina que as ações sejam engavetadas quando a mulher assim optar. O Ministério Público ainda pode recorrer da decisão.
A questão foi apreciada em um recurso especial com a intenção de resolver o impasse diante das inúmeras divergências em torno da aplicação da Lei Maria da Penha. Quando há lesões graves ou tentativas de homicídio, os magistrados são unânimes no entendimento de que a autorização da vítima não é necessária para que a ação prossiga. Já quando os ferimentos não deixam a pessoa incapacitada de suas atividades habituais por mais de 30 dias — prazo que consta do Código Penal para a definição dos casos de lesão grave —, os magistrados não tinham orientações sobre a necessidade de levar em consideração ou não a vontade da mulher agredida.
“O STJ perdeu uma grande oportunidade de passar a limpo a vida privada brasileira e não aceitar a violência doméstica”, indigna-se Fausto Rodrigues de Lima, promotor de Justiça de Brasília e membro do Núcleo de Gênero Pró-Mulher do Ministério Público do DF (MPDFT). Para o promotor, com a decisão, os acusados terão ainda mais chances de sair impunes dos episódios de violência. “A ação penal fica nas mãos dos acusados, que estão cientes de que a impunidade depende muito do controle emocional de suas parceiras”, explica. Segundo o promotor, lesões como queimaduras até o terceiro grau, bem como facadas ou um nariz quebrado, por exemplo, são consideradas leves pela legislação. “Basta que haja sobrevida sem sequelas e que a recuperação ocorra em até 30 dias”, esclarece.
E as mudanças vão além. Com a decisão, a partir de agora, apenas a própria mulher agredida pode denunciar a violência. Até então, era comum que familiares e até mesmo vizinhos denunciassem o abuso. “É papel do Estado processar o autor desse crime e não perguntar isso para a mulher, jogando a responsabilidade nas costas dela”, considera a coordenadora do Núcleo de Gênero Pró-Mulher, Laís Cerqueira. Com a nova medida, ela acredita que 60 a 70% das denúncias de violência doméstica no país serão arquivadas. “A mulher acaba sendo a culpada pelo fato de o homem ter que responder judicialmente”, considera.
Família
Para justificar a decisão, os ministros fizeram uso de argumentos não jurídicos, avaliando que a posição seria o melhor caminho para o bem-estar familiar. “A pena só pode ser cominada quando for impossível obter esse fim através de outras medidas menos gravosas”, afirmou o decano da seção, ministro Nilson Naves, defendendo a necessidade da representação.
Organizações em defesa dos direitos da mulher se indignaram com a decisão do STJ. Para a secretária-executiva da Articulação das Mulheres Brasileiras (AMB), Analba Brasão Teixeira, o posicionamento significa um retrocesso para o movimento. “É o absurdo dos absurdos. Em agosto do ano passado, fomos a Brasília e entregamos um documento com 12 mil assinaturas pedindo para que isso não acontecesse”, revolta-se.
Depois de publicada no Diário da Justiça eletrônico, a decisão deverá ser acatada por todos os tribunais de justiça e regionais federais. A aplicação será imediata nos casos semelhantes em tramitação, o mesmo acontecendo nos processos que tiveram sua tramitação paralisada no próprio STJ. O MPDFT vai analisar a possibilidade de entrar com recurso contra a decisão no STF.
1 – Medida tem antecedentes
O caso que mobilizou os ministros do STJ ocorreu em Santa Maria, em setembro de 2007. Agredida pelo marido, uma moradora da cidade teve o braço quebrado e ficou com diversos ferimentos na cabeça. O companheiro chegou a ser condenado pela Justiça, mas a vítima fez as pazes com o réu e decidiu retirar a queixa. O TJDFT acatou o pedido e encerrou o processo. O MPDFT recorreu ao STJ para que o caso prosseguisse.
SEMINÁRIO
Em 2 e 3 de março, realiza-se em Brasília o II
Seminário Lei Maria da Penha. A atividade vai reunir membros e servidores do Ministério Público, parlamentares, acadêmicos, estudantes e representantes de diversos setores da sociedade para discutir os mecanismos de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Gratuita, a atividade oferece ao todo 600 vagas. As inscrições estão abertas até as 18h de hoje pelo endereço www.esmpu.gov.br. O curso será realizado na Procuradoria-Geral da República.
Memória
Conquistas e retrocessos
A Lei Maria da Penha, criada em agosto de 2006 para coibir a violência contra a mulher, ganhou o nome da biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia depois que seu caso ficou conhecido nacionalmente. Em 1983, o marido de Maria da Penha, o professor universitário Marco Antonio Herredia, tentou matá-la duas vezes. Na primeira vez, desferiu-lhe um tiro e ela ficou paraplégica. Na segunda, tentou eletrocutá-la. Na ocasião, ela tinha 38 anos e três filhas, entre 2 e 6 anos de idade.
A primeira decisão sobre a necessidade ou não de representação da vítima para a punição de agressores enquadrados na lei ocorreu em maio de 2007, num caso em que o marido ateou fogo em sua esposa, após jogar álcool em seu corpo, causando queimaduras de primeiro e segundo graus (consideradas lesões corporais leves). A vítima sobreviveu e pediu o encerramento do caso, após reatar o relacionamento. O TJDFT, na ocasião, optou pela intervenção obrigatória. Porém, alguns meses depois, o tribunal retrocedeu e arquivou o caso.