No julgamento, ontem (24/2), realizado no Superior Tribunal de Justiça, Maria Eliane Menezes de Farias, Subprocuradora-geral da República, defendeu que o Estado deve garantir o julgamento do agressor da mulher em qualquer situação. Leia o que ela falou …
Sustentação Oral pelo MPF nos autos do RESP no. 1. 097.042/DF
Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho – Terceira Seção do STJ
Excelentíssima Senhora Presidente desta 3ª Seção, Senhor Ministro Relator, Senhores Ministros, (as), Senhores Advogados (as), senhores serventuários (as) e público assistente:
“Sempre ouvi dizer que numa mulher, não se bate nem com uma flor. Loura ou morena não importa a cor. Não se bate nem com uma flor. Já se acabou o tempo que a mulher só dizia então: “Xô galinha, cala a boca menino, ai ai não me dê mais não!”” Capiba
Começo essa sustentação oral trazendo a letra do frevo do compositor pernambucano Capiba para desfazer, rejuvenescendo – pois que essa marchinha data de 1966 – o lugar comum da cultura que, na distribuição dos papéis sociais, vitimiza o papel feminino. Sentimento esse tão arraigado no imaginário popular, ao ponto de se dizer que o homem pode até nem saber porque está batendo na mulher, mas ela, certamente, saberá porque está apanhando. Apesar de Capiba àquela época – 1966 – estar, pedagogicamente, passando a mensagem de não-violência doméstica, sua lição, nos dias que correm, parece não ter sido aprendida…
Hoje não teremos aqui propriamente o julgamento do Sr. JOSÉ ANTÔNIO DA SILVA BUENO denunciado pelo Ministério Público do DF por ter agredido sua companheira, a socos e pontapés, causando-lhe contusões e ferimentos na cabeça e no rosto, contusões nas costelas e fratura de um dos membros superiores.
Hoje teremos aqui nesse Tribunal da
Cidadania o julgamento do Estado Brasileiro, que por seus representantes autorizará, ou ao contrário, não permitirá, a perpetuação desse “status quo” socialmente deletério. Ainda mais quando por decisão do Ministro-Relator, este caso fixará um precedente obrigatório e vinculará a Justiça do nosso país.
Se se concluir que o Estado deve agir para investigar e punir a violência doméstica, veremos o triunfo do bom senso. Situação inversa manterá a família brasileira ao largo do sentido que vincula aqueles que vivem sob o mesmo teto e que devem de ter os mesmos interesses, entre eles: o de preservar a relação de responsabilidade pela convivência solidária, de modo que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de respeitar e de apoiar uns aos outros.
O problema de falar no triunfo do bom senso é que vem a baila o comentário de Descartes no início do Discurso do Método, quando ele afirma: “que o bom senso é a coisa mais bem partilhada do mundo porque todo mundo acha que o tem…”.
Articulando, então, para bem situar a hipótese.
A Lei 9.099/95, ao instituir que a violência doméstica é de “menor potencial ofensivo”, passou a exigir representação das vítimas nos casos de lesão corporal “leve”. Fragilizadas e perplexas pela agressão, e ainda dependentes, emocional ou financeiramente, de seus parentes, as vítimas acabavam por não encontrar forças para exigir a punição de seus agressores.
Tal situação acarretou o arquivamento de mais de 90% dos casos de violência doméstica, gerando justas críticas da comunidade jurídica nacional e dos setores de vanguarda dos movimentos sociais.
Por isso, o legislador editou a Lei 11.340/06, denominada Lei Maria da Penha, pontuando que a violência doméstica contra a mulher é uma violação de direitos humanos (art. 6º), e não infração de “menor potencial ofensivo”. Para que não pairassem dúvidas sobre a necessidade de atuação do Estado, bem como a natureza da ação penal do crime referido, a nova norma revogou totalmente a Lei 9.099/95, pelo seu art. 41.
verbis: Art. 41 Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Suprimido da leitura da exiguidade de tempo.
Observa-se que não houve qualquer ressalva a nenhum dispositivo da lei revogada. Toda ela foi afastada, inclusive seu art. 88.
Desse modo, o crime de LESÃO QUALIFICADO PELA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA (art. 129, § 9º, CP) voltou a ser de ação penal pública incondicionada. Houve a repristinação do Código Penal, que não exige representação para o crime de lesão corporal.[1]
Frise-se que essa conclusão jurídica é inarredável e consentânea com entendimento já consagrado nesta Corte.
De fato, a derrogação da Lei 9.099/95, especialmente seu art. 88, não é novidade no direito brasileiro. O legislador já tomou igual providência com relação aos crimes de lesão praticados por militar, determinando a não aplicação da Lei 9.099/95 no âmbito da Justiça Militar, nos termos da Lei 9.839/99[2]. A jurisprudência nacional, inclusive deste STJ, reconheceu que o crime de lesão “leve” praticado por militar voltou a ser de ação penal pública incondicionada. Jamais se questionou a validade da referida derrogação e a jurisprudência desse e. Tribunal é unânime em reconhecê-la. [3]
A Lei Maria da Penha buscou a mesma solução da lei dos militares. Estranhamente, porém, a aceitação jurisprudencial não tem sido pacífica. Aceita-se que um militar seja processado de forma incondicionada se bater em um colega de farda. Se, diversamente, bater em sua mulher, a ação tem de ser condicionada à representação da vítima. Há enorme resistência em se admitir a intervenção obrigatória na violência doméstica praticada contra a mulher. Sustenta-se que a união da família prevalecerá se a decisão ficar nas mãos das vítimas, possibilitando “reconciliações” e evitando a “desagregação familiar”.
É louvável a preocupação com as famílias. O que não se compreende, e nem se pode aceitar numa República que se diz democrática, é que essa pretensa unidade familiar seja forjada em cima do espancamento impune de mulheres. Esse entendimento significa a reinstauração do mais arcaico patriarcalismo, que perdurou na jurisprudência criminal durante todo o século XX.
Com efeito, para manter a hierarquia familiar instituída pelo Código Civil de 1916, sempre se aceitou que o “cabeça de casal”, o marido, utilizasse de violência contra a esposa e os filhos, para “curar” a desobediência de seus comandados.
Quando as vítimas buscavam a polícia, os tribunais tratavam de arquivar os casos, alegando que, por política criminal, a “harmonia familiar” devia ser preservada. Nesse contexto, harmonia significava a supremacia incontestada e incontrastável do homem. Considerava-se que a paz familiar era quebrada pela mulher, e não pela violência de que ela era vítima. Confira-se essa decisão:
“Condenar o réu seria acender a fogueira da discórdia da desunião o que inclusive poderia levar a desunião de um lar. A própria vítima já perdoou seu marido, seu amor por ele e seus filhos falou mais alto que sua condição de companheira fiel e amiga. Veio então pedir a sua absolvição e não seria o juiz como membro do poder judiciário que iria destruir uma família, sustentáculo da sociedade, que é a base do Estado, com uma condenação sem significado” [4]
São os mesmos argumentos utilizados hoje para negar a incondicionalidade do crime de lesão, não é mesmo? Pois bem, referido julgado é de 1975 (Belém/PA) e bem resume a essência da “Doutrina da Harmonia Familiar” exprimindo o entendimento de uma época. De uma época? Antes fosse somente um escorço histórico…
Frise-se que o crime de lesão “leve” era de ação pública incondicionada desde o Código Penal de 1940. Porém, a norma era solenemente ignorada em nome dessa fictícia “harmonia familiar”. A Lei 9.099/95 legalizou aquela situação, ao exigir representação das vítimas. E aqui, é ainda Descartes quem nos chama a atenção: “Tão teimosamente está cada um com o seu critério, que poderíamos achar tantos reformadores quantas cabeças houvesse…” (Discurso do Método) *Suprimida a leitura dada a exiguidade de tempo.
Por isso, ao revogar a Lei 9.099/95, a Lei Maria da Penha buscou romper com a tradição tolerante e omissa. Para tanto, baseou-se no art. 226, § 8º, da Constituição Federal, que reza:
§ 8º – O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de CADA UM dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Vejam que a Carta Maior não visa apenas o bem estar dos maridos ou dos filhos. Ela exige o respeito a TODOS os membros da família, sem qualquer discriminação de sexo. *(art. 3º, IV, CF) *Suprimida a leitura dada a exiguidade de tempo.
Dessa forma, a antiga família-instituição (fim), que valia por si só e devia ser preservada a todo custo, deve ser substituída pela família-instrumento (meio), que garante os direitos humanos de cada um de seus integrantes. *Não pode o Estado esperar, pois os mesmos motivos culturais que subjugavam a mulher no passado, continuam presentes, como bem lembrou a promotora de Justiça do DF, Danielle Martins Silva, citada nas razões do recurso especial. *Suprimida a leitura dada a exiguidade de tempo.
Por outro lado, o argumento de que o juiz pode negar a renúncia das vítimas no caso concreto, com base no art. 16 da Lei Maria da Penha, é útil apenas para os crimes de ação condicionada, como o crime de ameaça, por exemplo. Utilizá-lo para justificar a condicionalidade do crime de lesão corporal poderá acarretar, como já está acontecendo, a criação de uma jurisprudência permissiva à violência contra a mulher.
De fato, várias decisões que sustentam a necessidade de “analisar cada caso concreto”, têm aceito a renúncia das vítimas, quando, além de hematomas diversos e do clássico olho roxo, ocorrem queimaduras, quebra de ossos (nariz, mandíbula), enforcamentos etc.[5] Como as vítimas conseguem se recuperar até o 30º dia, sem sequelas, tais fatos caracterizam lesão “leve” para nosso sistema penal (confira-se a tabela anexa relativa a julgamentos de 2008 à 2009, da qual darei apenas alguns exemplos, em virtude do cumprimento do tempo).
A violência desmedida cometida contra as mulheres, cujo ápice é o assassinato, tem crescido a cada dia. Uma simples leitura dos jornais mostra que os atentados diários geralmente são praticados por seus parceiros ou ex-p
arceiros. E a propósito, mais uma vez me socorro de Descartes no mesmo Discurso do Método: “Todas as verdades podem ser percebidas claramente, mas não por todos, por causa dos preconceitos.”
É preciso acabar com a cumplicidade social e estatal. Uma vez incondicionada a ação penal, qualquer cidadão, parente, vizinho ou amigo das vítimas, poderá noticiar as agressões às autoridades. Confiadas no modelo obrigatório da Lei Maria da Penha muitas das oprimidas farão denúncias anônimas… A polícia será obrigada a investigar; o Ministério Público, a acusar; o Judiciário, a punir. Por mais trabalho que isso venha a acarretar para essas instituições. O pesado fardo de sustentar uma acusação sairá dos ombros das vítimas para os do Estado. Os acusados e as vítimas ficarão mais tranquilos em saber que a culpa pela punição não é das mulheres, mas dos agressores. Os casais continuarão a se reconciliar, mas em outras bases. Um novo ideal de família surgirá. Do contrário, o esfacelamento da família, e em última instância, da mulher pelo seu opressor é certo: No particular marca Descartes, no mesmo Discurso do Método: se a “partida é muito desigual, é preferível optar por uma retirada honrosa ou abandonar o jogo, do que expor-se a uma morte segura”.
Por último tenho o dever focar luz em dois aspectos importantes dessa temática, a saber: 1) a invisibilidade que diuturnamente acompanha as agressões à mulher, intitulada Deus-Mãe, ser feminino, o rosto materno de Deus… Materializada na jovem mãe subjugada que teve sua cabeleira cortada rente por aquele dito seu marido, enquanto amamentava sua criança. Como capitular esse crime cometido no resguardo do lar? 2) e a democracia. A violência doméstica atinge parcela extremamente significativa dos lares brasileiros de forma indistinta. Não escolhe entre ricos ou pobres. Entre cultos ou iletrados. Haja vista o lar do Procurador de Justiça que se manifestou nestes autos no sentido de ser condicionada a representação. Ele mesmo atuou em causa própria. Eis que também é acusado de agredir sua esposa. É inteira a razão de Descartes, no mesmo Discurso do Método quando faz a seguinte dicção: “a trepadeira não chega mais alto que as árvores que a sustentam”.
Finalizando estas considerações, o Ministério Público espera que uma vida sem violência seja reservada na verdadeira harmonia familiar prometida para os brasileiros – e brasileiras – neste século XXI! Não esperemos mais noventa anos para começar a modificar esse triste quadro.
Brasília, 24 de fevereiro de 2010.
MARIA ELIANE MENEZES DE FARIAS
Subprocuradora-Geral da República
[1] Essa é a posição da doutrina: Luiz Flávio Gomes (Aspectos Criminais da Lei de Violência contra a Mulher, site http://www.lfg.com.br), Fausto Rodrigues de Lima (O art. 16 da Lei Maria da Penha, Ed. Lumen Juris, 2009), Maria Berenice Dias (A Lei Maria da Penha na Justiça, 2007), Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti (Violência Doméstica, Ed. Podivum, 2010), Marcelo Lessa Bastos (Lei Maria da Penha, alguns comentários, www.jusnavigandi.com.br), Edison Miguel da Silva Júnior (Direito penal de gênero, www.mp.go.gov.br), dentre outros.
[2] [2] Art. 90-A da Lei 9.099/95, acrescentado pela Lei 9839/99
[3] Confira-se: DIREITO PENAL MILITAR. A representação do ofendido como condição de procedibilidade da ação penal consagrada na lei 9.099/95 teve aplicabilidade no campo do direito penal castrense até o advento da Lei 9.838/99. Recurso especial não atendido.[3] STJ, REsp 178488 / DF, Recurso Especial 1998/0044460-2, julgado em 08/08/2000, Ministro Fontes de Alencar.
[4] [4] Decisão judicial em processo de lesão corporal “leve” de 1975, Belém/PA (FERREIRA, Maria Patrícia Corrêa. Das “pequenas brigas entre casais” aos “dramas familiares”: um estudo sobre a violência doméstica em processos criminais de Belém nas décadas de 1960 e 1970. Campinas: UNICAMP, 2002).
[5] Sobre a gravidade da lesão “leve”, vide Fausto Rodrigues de Lima, “Violência Doméstica: Vulnerabilidades e Desafios na Intervenção Criminal e Multidisciplinar”, p. 92-98, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.