STJ e Lei Maria da Penha: Instituições que não nos representam deturpam leis democráticas que nos protegem

Ana_Claudia_Jaquetto_Pereira1Ana Claudia Pereira – Cfemea

A decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que os processos de indiciados pela Lei Maria da Penha (11.340/2006) podem ser suspensos por um período de dois a quatro anos e que, após este período, a punibilidade pode ser extinta, foi recebida com indignação pelos movimentos feministas, movimentos de mulheres e, sobretudo, pelas mulheres brasileiras.

Essa decisão permite –mas não obriga- que os agressores deixem de ser punidos por seus crimes, caso não cometam faltas no período determinado. Na prática, mecanismos destinados a crimes de “menor potencial ofensivo” voltam a ser aplicados para casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres.

Somente o peso da mão do poder patriarcal explica tamanha deturpação de nossos direitos. Em primeiro lugar, este entendimento contraria a vontade das/os cidadãs/ãos: uma pesquisa recente, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mostrou que quase 82% dos brasileiros consideram que este tipo de violência é um “grande problema da nossa sociedade”, contrariando a idéia de que sejam crimes de menor potencial ofensivo.

Em segundo lugar, o posicionamento da Sexta Turma do STJ contribui para o agravamento das dimensões da violência contra as mulheres no Brasil. Dez mulheres são assassinadas todos os dias em nosso país, 70% delas por seus companheiros. Em um ranking composto por 73 países, o Brasil é o 12º com maior taxa de homicídios de mulheres[1]. Nossas taxas são piores do que países como México, África do Sul e Suriname.

Entretanto, a violência letal é apenas a ponta do iceberg. Os dados existentes sobre agressões físicas, psicológicas, morais e patrimoniais são impressionantes: 43% das mulheres já foram vítimas da violência machista; 33% já sofreram agressões físicas; e 6,8 milhões já foram espancadas.

Este quadro não será revertido apenas com boas intenções. São necessárias políticas públicas e mecanismos para garantir que, logo nas primeiras ocorrências da violência, as mulheres sejam protegidas. E é exatamente esse objetivo, mais do que uma punição desmedida de quem comete a agressão, que a Lei Maria da Penha persegue. A prisão do agressor é pensada como um recurso de proteção das vítimas, para que estas tenham tempo de reestruturar suas vidas, de exercitarem seu direito de ir e vir e de viverem livres de ameaças.

Cada detalhe da Lei foi pensado para que as brasileiras tivessem seus direitos garantidos: a violência é considerada em suas dimensões físicas, morais, psicológicas e patrimoniais; foram introduzidas as medidas protetivas, até então inéditas no direito brasileiro; eliminou-se a possibilidade das vítimas “retirarem a queixa” para que as mulheres deixassem de ser chantageadas e punidas pelos agressores; a violência contra as mulheres deixou de ser considerada crime de menor potencial ofensivo e passou a ser uma infração aos direitos humanos; foram previstos os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e serviços e políticas públicas para dar efetividade à Lei; e, pela primeira vez, o direito brasileiro reconheceu a união afetiva entre pessoas do mesmo sexo.

Em terceiro lugar, a ação da Sexta Turma do STJ atropela mais de vinte anos de luta das mulheres, marcados por reivindicações e diálogos com parlamentares e com o poder Executivo. A sociedade civil teve um papel fundamental na redação da Lei, o que contribuiu para sua riqueza e fez com que a Organização das Nações Unidas (ONU) a considerasse como uma das três melhores leis do mundo para combater a violência contra as mulheres.

Sua criação foi comemorada por muitas/os operadoras/es de direito, que participaram da reivindicações e que se viam impotentes diante das repetidas agressões e homicídios de mulheres. Ainda assim, resistências, questionamentos e iniciativas que enfraquecem nossos direitos mostram que o machismo não foi superado no interior do Poder Judiciário e que as mulheres ainda não têm seus direitos plenamente reconhecidos pelo órgão que ficou conhecido como “Tribunal da Cidadania”. Somos consideradas cidadãs de segunda categoria, uma vez que descartam medidas que garantiriam nossa integridade física, psicológica e moral.

Felizmente, nem todas as decisões do STJ têm prejudicado a cidadania feminina. Em outubro de 2010, essa mesma corte reconheceu a importância da Lei ao decidir que o processo contra agressões não dependia do pronunciamento da vítima, contrariando uma decisão anterior de fevereiro do mesmo ano.

Entretanto, a estrutura que permite a revogação de nossos direitos está longe de ser transformada. Conforme informa o assessor do INESC Edélcio Vigna, das/os 30 ministras/os do STJ, apenas cinco são mulheres. Há apenas um ministro negro e nenhuma mulher negra tem assento na corte.

Ao STJ cabe o importante papel de zelar pela uniformidade de interpretações da legislação federal brasileira, que é fundamental para o bom funcionamento de uma democracia. Entretanto, suas portas estão fechadas para a maioria da população brasileira (mulheres e negras/os) e a herança elitista, machista e racista de nosso país se impõe quando as decisões são tomadas sem levar em conta alternativas e debates democráticos propostos pela sociedade civil.

Foram necessários 500 anos para o Estado brasileiro reconhecer a violência machista cometida contra as mulheres, mas tamanha negligência não nos desanimou em nossa luta. Nossa conquista é fragilizada pela atuação de instituições que não nos representam e tomam decisões que colocam a vida de milhares de mulheres em risco. Não vamos nos calar diante dos retrocessos.

Ana Claudia Pereira é consultora do CFEMEA na área de violência contra as mulheres

 

fonte: INESC

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *