Do Hoje em Dia
Caso, ocorrido em Minas, é exemplo de falha no processo de reconhecimento de corpos
Dona de casa, mãe, religiosa. Papéis que Sandra Duarte Medeiros, de 56 anos, tem orgulho de exercer e que poderiam ser coroados pela oficialização da união com o homem com quem vive há 23 anos, não fosse um pequeno detalhe: legalmente, ela está morta e enterrada.
A história de Sandra, moradora de um barracão simples de uma vila no bairro Boa Vista, em Contagem, na Grande Belo Horizonte, revela a falta de disciplina na emissão de declarações de óbito nos hospitais de Minas Gerais.
O médico responsável por liberar um corpo para sepultamento em Governador Valadares – como sendo o de Sandra – se valeu de uma certidão de casamento, um documento sem foto, para confirmar a identificação.
Não há uma norma que estabeleça como deve ser feita a elaboração do laudo médico. A Secretaria de Estado da Saúde diz ter distribuído um CD sobre a melhor conduta a ser seguida nos hospitais de Minas Gerais, mas não há garantias de que o procedimento esteja sendo adotado.
A displicência nos necrotérios pode abrir oportunidade para atos de má-fé. No caso de Sandra, ela teria sido vítima de uma vingança do primeiro marido, o aposentado Joaquim Fagundes Medeiros, de 71 anos.
Em 1979, após oito anos de relacionamento, ela abandonou o lar em Engenheiro Caldas e se mudou para a Região Metropolitana de Belo Horizonte, segundo a dona de casa, porque o marido era muito agressivo. Na época, ela não se preocupou em se separar legalmente.
Sete anos depois, em maio de 1986, Medeiros precisou socorrer sua então namorada, identificada apenas por Sônia, após ela sofrer uma série de convulsões. O casal morava na zona rural de Periquito, a 19 quilômetros de Engenheiro Caldas. Sônia acabou morrendo de “causas naturais” no Hospital Municipal de Governador Valadares. Medeiros apresentou a certidão de casamento de Sandra como sendo ela a paciente atendida. Nenhum parente de Sônia foi localizado. Ela não teria documentos, conforme alegação de Medeiros.
Em um primeiro momento, o aposentado disse ter tomado a atitude para punir Sandra, mas depois recuou. Atualmente, ele vive em um casebre no município vizinho de Naque.
– Peguei o primeiro documento que vi pela frente. Estava atordoado quando Sônia passou mal. Jamais faria essa covardia com a Sandra, apesar de ela ter me envergonhado, pois me deixou para ficar com outro homem.
A dona de casa, porém, nega a acusação. A mulher é mãe de dois filhos adultos e de uma criança adotiva.
– Ele era muito agressivo e chegou a me bater.
O aposentado possui três passagens pela polícia: a primeira por lesão corporal, em 1974; outra, em 1994, por maus-tratos contra o filho (na época com seis anos); e a última por lesão corporal, em 1998.
A Delegacia Regional de Governador Valadares apura o caso de Sandra, com o intuito de agilizar a correção do registro de casamento. Com a saúde debilitada por um derrame sofrido há cinco anos, o aposentado não pode mais responder pelo crime de falsidade ideológica, que prescreveu em 1998.
Sandra descobriu a certidão de óbito em seu nome em julho passado, quando providenciava a papelada para oficializar o divórcio com Medeiros. Ela quer se casar com o pedreiro José Domingos dos Santos, de 45 anos, e ser batizada na Igreja de Cristo em Renovação.
– Quero passar pelas águas, mas agora estou vivendo esse tormento. Tem dia que deito na cama e não consigo dormir. Como é que vou ser enterrada quando realmente eu morrer?