Presidente do grupo Católicas pelo Direito de Decidir critica o conservadorismo da Jornada Mundial da Juventude e o financiamento do Estado para a visita do papa
por Paloma Rodrigues — revista CARTA CAPITAL – 16/07/2013
Flickr / Randy OHC
Basílica de São Pedro, Vaticano
A Jornada Mundial da Juventude, que será realizada entre os dias 23 e 28 de julho no Rio de Janeiro, tem recebido uma série de críticas por promover algumas pautas conservadoras no País. Um dos grupos mais vocais contra a JMJ é o Católicas pelo Direito de Decidir (CDD). Maria José Nunes, a presidente do CDD, é socióloga e professora de Ciências da Religião da PUC-SP. Ela foi uma das mil mulheres indicadas conjuntamente para receber o Nobel da Paz, no projeto Mil Mulheres pela Paz, e atualmente integra o grupo das 400 Global Experts da ONU. Em entrevista a CartaCapital, Maria José diz por que se opõe às pautas trazidas pelo papa Francisco, como o reforço da luta contra a união homossexual, o uso de preservativos e o aborto.
CartaCapital: O Católicas pelo Direito de Decidir afirma que o Brasil vive um ano de forte conservadorismo católico. De que maneira a vinda do papa impulsiona esse conservadorismo?
Maria José Nunes: Em termos doutrinais, a figura desse papa é a manutenção do que foi o papado de Bento XVI e de João Paulo II, embora os estilos sejam distintos. Há dois indicadores claros nesse sentido: um é o Manual de Bioética para jovens que a igreja está lançando agora e o outro é a encíclica que o papa Francisco acaba de publicar. Nesta encíclica, além da reafirmação da fé, existe a reafirmação, por exemplo, da heteronormatividade. Francisco é um papa muito mais midiático que Ratzinger, que era duro e intelectual. É uma figura que vem a calhar para a Igreja neste momento, mas que significa a manutenção e o aprofundamento do conservadorismo doutrinal.
CC: De que maneira vocês veem a Jornada Mundial da Juventude da maneira como ela está posta hoje?
MN: Com muita preocupação. A Igreja demonstra nisso sua estratégia de investimento nas futuras lideranças dos País, com a perspectiva fundamentalista e conservadora que o papa apresenta. É muito preocupante que a gente tenha uma jornada com esse direcionamento. Seria outra coisa se nós estivéssemos ainda nos anos 70, com a Teologia da Libertação e a Igreja muito focada na questão da justiça social. Ainda que, mesmo nessa época, as questões de moral sexual não tenham avançado na Igreja. Mas se teria uma perspectiva de mais abertura, de diálogo com outras religiões, do que se pode ter agora.
CC: Essa juventude presencia o avanço em diferentes campos legislativos, com estados aprovando leis em favor dos direitos igualitários para casais homo e heterossexuais, ainda assim, se mantém em fincada no modelo de heteronormatividade. Por que isso acontece?
MN: A cabeça da juventude é uma cabeça que depende de inúmeros fatores e ser jovem não é sinônimo de ser progressista. Os jovens estão inseridos no meio social e pertencem a uma classe social. De que jovens estamos falando? A juventude é um mundo muito diverso em termos da sua inserção de classe, sua inserção de raça, em todos os aspectos. Se aqui no Brasil a gente tem a elite brasileira com a cabeça tão conservadora, é de se supor que os filhos e filhas dessa elite reproduzam de certa maneira esse conservadorismo. Encomendamos uma pesquisa Ibope, no contexto da visita do papa, para mostrar o quanto a juventude está distante daquilo que são as proposições doutrinais da Igreja Católica. Há uma juventude que segue o papa, que vai às jornadas, mas que não pratica a doutrina proposta por ele. Acho que a gente não pode imaginar que toda essa juventude não faça sexo, seja heterossexual, não use camisinha e anticoncepção. Uma coisa é a necessidade que eles têm, digamos, de guias e de lideranças. Agora, dessa juventude, qual é a proporção daqueles que seguem a doutrina?
CC: O Manual de Bioética, que será lançado na jornada, está gerando polêmica. De que maneira vocês veem esse manual?
MN: Muito criticamente. As concepções que a Igreja coloca nesse manual vão na direção oposta daquilo que dizem organizações de saúde, da Organização Mundial de Saúde e daquilo que a sociedade deseja. E eu acho que esse é o drama da Igreja hoje. No caso do Brasil, ela esteve alinhada ao desejo da sociedade durante as décadas do regime militar. No momento, o desejo da sociedade era a democracia, o respeito pelos direitos humanos e a justiça social e essas bandeiras foram assumidas pela Igreja com uma força muito grande. Hoje, ela vai na direção oposta. Na questão das mulheres, a Igreja se mantém como o último reduto de exclusão dos lugares de poder e das instâncias decisórias, quando as mulheres são a sua maior base. E não só mantém essa exclusão, como a justifica doutrinariamente e teologicamente.
CC: Esse enrijecimento causa um afastamento da Igreja? Qual o futuro para ela?
MN: O único futuro para a Igreja é mudar. Ela não tem outra alternativa. Agora, a Igreja muda, embora ela diga que não. Politicamente, faz parte da estratégia política da Igreja Católica dizer que “sempre foi assim, que todos os nossos predecessores disseram a mesma coisa”. O CDD tem uma publicação que se chama Uma história não contada, que mostra como a questão do aborto – que não é um dogma, é bom esclarecer, e portanto toda católica e todo católico podem discutir isso -, e a afirmação oficial da hierarquia da Igreja de que nenhum aborto é possível ser aceito por uma pessoa católica é uma coisa muito recente na história da Igreja. Na maior parte do tempo isso foi controverso, com teólogos e bispos admitindo a possibilidade do aborto em determinadas circunstâncias. Ela mudou por exemplo quando não admitia o divórcio e a lei civil. Usou de uma estratégia para admitir a separação, que é a anulação dos casamentos. Mesmo no caso da anticoncepção, a posição mais tradicional da igreja era: “na obra de Deus nenhuma interferência”. A procriação é obra de Deus, logo, nenhuma interferência humana. Até o momento em que Pio XII admitiu o coito interrompido, que é a coisa mais antinatural que existe, uma intervenção humana no processo. Quer dizer, ela muda. Agora, ela muda lentamente e só por meio da pressão da comunidade católica e da sociedade.
CC: Como vocês são vistas dentro da igreja?
MN: Muitas vezes, quando a gente fala em eventos, temos como resposta de pessoas católicas: “é nessa igreja que eu acredito, é essa fé que nós temos”. Nós temos um reconhecimento muito grande, um respaldo, digamos. Agora há pouco saiu uma pesquisa realizada pela Universidade de Brasília (UnB) e o Instituto Anis que diz que a maioria das mulheres que aborta no Brasil é católica [65% das entrevistas se disseram católicas, 25% protestantes ou evangélicas e 5% outras religiões]. Quando essas mulheres nos escutam dizer “você pode realizar um aborto”, nós confortamos essas mulheres a partir da sua mesma fé e é quando elas nos reconhecem. Agora, dentro da igreja, você tem setores radicais no seu conservadorismo. Esses setores não nos reconhecem.
CC: No evento em que o papa estará presente, vocês irão?
MN: Não. No evento diretamente, não. Você pode imaginar que o dispositivo militar que o governo colocou para as jornadas não permite uma manifestação contrária àquilo que é o discurso da Igreja e do papa. Não há lugar para o discurso das Católicas no evento. Se a Igreja fosse efetivamente um espaço de diálogo, então nós poderíamos estar lá, apresentando também a maneira como nós pensamos e maneira como nós interpretamos a doutrina, com base na própria teologia católica. Mas não é esse o espírito da Igreja. O espirito da Igreja atualmente não é de diálogo, mas de decisão hierárquica sem nenhuma possibilidade de discussão.
CC: Como você vê a participação da religião na política no Brasil? Nós temos uma bancada religiosa muito forte, acusada de fundamentalismos. A atuação desses segmentos gera preconceitos com a religião de maneira geral?
MN: Preconceito com os pentecostais existe, sem dúvida nenhuma. Mas o pentecostalismo não é inteiramente conservador, ele é diverso, como a Igreja Católica também é diversa. Quem aparece mais são os grupos conservadores, porque eles têm estratégias para a sua atuação política. O que acontece é que temos, na verdade, não uma bancada evangélica, mas uma bancada religiosa, que é a soma de evangélicos, com espíritas e católicos. A Igreja Católica se alia aos evangélicos conservadores no Congresso contra, muito especificamente, os direitos das mulheres e dos homossexuais. Isso é um direito que eles têm, de estar lá, porque a nossa Constituição permite isso e, portanto, é nas urnas que temos que derrotá-los. Mas cabe a nós perguntar sobre o outro lado: como o Executivo lida com a religião? Ultimamente a posição tem sido de subserviência, em função do que eles supõem que sejam os ganhos eleitorais. Não há uma palavra do governo sobre a absurda CPI do aborto, sobre o inconstitucional estatuto do nascituro e sobre a questão da cura gay. E há um investimento de recursos do Estado na religião. O papa vem ao Brasil não como Chefe de Estado, mas como líder espiritual de uma comunidade religiosa. Portanto, constitucionalmente, o Estado não pode colocar recursos ali e, no entanto, coloca. Defendemos o Estado laico, mas esses últimos governos não têm demonstrado, ao contrário até, avanço nessa direção. Eles não podem se pautar por valores e princípios religiosos, sejam eles de qualquer religião. Essa é a base e o princípio do respeito à todas as religiões e à não-religião.