Miriam Gathigah, da IPS
Toriti, Sudão do Sul, 22/12/2009 – Rosalinda Duany passa o dia todo vendendo verduras no mercado local para poder alimentar sua família, enquanto o marido se diverte com os amigos. Mas, quando ele se aborrece muito e a reclama, ela deixa de trabalhar apenas para agradá-lo. Duany viveu assim por anos, sem se queixar nem uma única vez, por considerar que a obediência ao marido é parte de sua cultura. Não é a única que pensa dessa forma.
É comum as mulheres de Sudão do Sul deixarem o trabalho durante o dia apenas para ir em casa alimentar seus maridos e inclusive preparar a água para seu banho. Ao percorrer povoados como Juba e Torit, pode-se ver homens sentados em grupos, jogando cartas e conversando o dia todo, enquanto as mulheres estão trabalhando. Apesar do papel fundamental que elas têm na unidade da família, a cultura tende profundamente a percepção da liderança a favor dos homens.
Em meio a uma prolongada guerra civil que deixou muitos mortos, principalmente homens, o papel das mulheres do Sudão do Sul mudou amplamente, com elas assumindo chefias de famílias e sendo pilares da família, em uma sociedade altamente patriarcal. “Como meu marido está livre o dia todo, às vezes reclama seus direitos conjugais, embora isso signifique eu deixar o que estou fazendo”, disse Duany. Para ela, é parte de sua cultura fazer o quer for solicitado por seu marido. Mas as ativistas pelos direitos femininos dizem que isto vai além, e implica as mulheres ainda verem a si mesmas de maneira errada.
“As mulheres não são vítimas indefesas destas circunstâncias, mas agentes ativas na perpetuação desta cultura. Embora a estabilidade do lar recaia diretamente sobre a mulher, esta ainda vê a si mesma como inadequada para papeis que tradicionalmente são reservados aos homens”, disse Flora Iliha Matia, vice-presidente do Sindicato de Mulheres do Condado de Torit, no Estado de Equatoria Oriental. “Frequentemente visitamos casas e encontramos apenas mulheres e crianças. A mulher diz que não há ninguém em casa, porque o marido está fora”, afirmou. “A cultura estabelece que o homem é o chefe do lar, por isso uma mulher pode receber visita mas não pode falar em nome da família”, acrescentou.
Agnes Leju, funcionária pública de Equatoria Oriental, disse que não é raro um homem tirar sua mulher do local de trabalho para que ela prepare a água de seu banho, apesar de estar ocupada. “As mulheres não apenas toleram estas situações, mas as consideram paralelas às normas e aos valores de uma boa esposa. Seria muito incomum uma mulher falar de sua preocupação por este assunto”, afirmou. Leju disse que não encontrou nenhuma mulher que tenha tido problemas com seu chefe por sair do serviço para atender o marido, pois a maioria dos chefes é de homens e compreendem a situação porque eles também fazem o mesmo.
Acline Aker está casada há dois anos e sente que é responsabilidade da mulher estar à disposição do marido. “A maioria destas coisas, como preparar a água do banho e aprontar a roupa, são coisas que ele pode fazer sozinho, mas não é certo deixá-lo. Por isso se casou comigo, para que cuidasse dele”, disse. “Estas discussões sobre ir contra nossa cultura são as raízes de um casamento desfeito. Faço feliz minhas tarefas de esposa, mesmo quando tenho de interromper o trabalho na fazenda”, afirmou. Estas mulheres não estão conscientes de que seu comportamento perpetua atitudes estereotipadas em matéria de gênero, o que reduz as probabilidades de a sociedade mudar a vista de que elas são adequadas para criar filhos.
“Em nossa sociedade a palavra mulher remete a imagens de papeis reprodutivos, e elas claramente não fazem muito para mudar a situação. Isto dificulta suas oportunidades de participar de processo de tomada de decisões”, disse Betty Ponjh Joseph, integrante do comitê parlamentar sobre gênero e bem-estar social no Estado de Equatoria Central. “Estas são as percepções usadas para medir os direitos das mulheres e sua capacidade de ocupar a esfera política. A menos que elas comecem a trabalhar para diluí-las, a cultura continuará reprimindo suas possibilidades de crescer em todo seu potencial”, acrescentou Joseph.
Segundo Ken Santo, um jornalista de Juba, “pode-se determinar realmente a maturidade de qualquer democracia vendo como trata suas mulheres. As identidades culturais dos gêneros afetam os valores políticos e determinam o peso com que se enfoca a igualdade de gênero. Isto tem a ver amplamente com o modo como somos socializados. É comum ouvir comentários de mulheres como ‘deixem-me trabalhar apesar de ser mulher’. Essas declarações confirmam a percepção de que elas” não servem para desempenhar papeis de liderança, acrescentou.
Quando o sul do Sudão esteve perto da destruição total e morreram muitos homens na guerra, as mulheres tiveram de ser fortes. E “esta fortaleza de uma mulher para suportar as situações mais desesperadoras pelas pessoas que dependem delas deveria dizer aos gritos o que podem fazer se tiverem lugar no espaço político”, disse Santo. “Uma mulher adulta no sul do Sudão não tem outra identidade que não seja a que adquire quando se casa, e são comuns os casamentos tradicionais acertados durante a infância”, afirmou. A mudança real deve partir das mulheres, acrescentou. Elas não são apenas maioria, mas também têm um movimento que começou há mais de três décadas. (IPS/Envolverde)
(Envolverde/IPS)