Miriam Abramovay – Socióloga, pesquisadora, coordenadora da pesquisa Convivência Escolar e Violências nas Escolas da Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla)
A jovem Geisy Arruda chocou os colegas de faculdade, e seus colegas de faculdade chocaram o Brasil e o mundo. Ela, porque usava um minivestido rosa-choque. Eles, porque viram na roupa da colega um sinal de licenciosidade e a humilharam em público. O episódio do linchamento moral — e quase físico — da estudante Geisy Arruda, da UniBan, em São Bernardo do Campo, na semana passada, é o paroxismo de um comportamento que vem se verificando em ambientes escolares Brasil afora, desde o ensino fundamental. Atos de intolerância, que culminam em violência física, verbal, entre outras, são frequentes nas escolas do país e envolvem tanto estudantes quanto professores e funcionários, cada qual em diferentes posições, conforme o caso. Ora, são vítimas, ora, perpetradores de comportamentos violentos. As motivações também são variadas: machismo (como no episódio da UniBan), homofobia, racismo, intolerância religiosa etc.
O caso Geisy é emblemático e, por isso mesmo, deve servir como oportunidade para um debate sério sobre cidadania (ou a ausência dela) no ambiente escolar, espaço por excelência onde ela, em tese, deve se construir e se manter e de onde deveria se propagar. O episódio de intolerância e covardia na UniBan não pode cair no esquecimento como se fosse apenas mais um fait divers da imprensa. Autoridades governamentais, sociedade civil organizada, empresariado (há centenas de instituições privadas de ensino no Brasil), igrejas, associações de pais e mestres, meios de comunicação, todos têm ocasião propícia sobre a qual iniciar — ou prosseguir — uma discussão que resulte em política pública clara sobre a segurança de quem frequenta uma escola, seja ela de que nível for.
Outros debates perpassam a questão da violência nas instituições de ensino, como o que se refere aos valores que a sociedade cultiva. O machismo, por exemplo, sobrevive apesar de toda uma tradição feminista, que trouxe à tona o direito à autonomia da mulher. Muitos homens ainda insistem na precária divisão do mundo feminino em “santas” e “prostitutas”. As primeiras são “para casar”, para se levar a sério e adquirem esse status negando a si mesmas o direito à expressão de qualquer sensualidade, sobretudo por meio do próprio corpo. Vestem burcas simbólicas. As segundas são para “levar para a cama”, não merecem o mesmo respeito. Podem e devem expressar sua sensualidade ao máximo, sempre que possível com o corpo, objeto de desejo e de dominação dos homens. Estão simbolicamente nuas, expostas. Para os chauvinistas, não há meio-termo. A garota de rosa-choque não pode ser santa. Santas não usam minivestido, não exibem as pernas em público, não pintam o cabelo e as unhas. Portanto, só podem ser… Não pode haver silogismo mais estúpido e absurdo. Tanto que, muito justamente, provocou protestos efusivos de tantos segmentos da sociedade.
Décadas após a queima de sutiãs, os protestos de Stonewall, os discursos de Martin Luther King, entre outras manifestações em prol da paz e do respeito aos direitos humanos em geral, não faz sentido que um grupo de estudantes se sinta à vontade para humilhar publicamente uma estudante em trajes sensuais. Se eles fazem isso, é porque contam com algum tipo de apoio de seu meio (e muitas vezes realmente o obtêm, como o comprovou o comportamento da própria faculdade ao expulsar a estudante). Algo está errado. Quem deveria oferecer educação — no sentido amplo dessa palavra — não o está fazendo como deveria. Está passando da hora, portanto, de discutir os porquês e como evitar que a violência das ruas continue a avançar sobre os portões das escolas.
artigo publicado no jornal Correio Braziliense em 21/11/2009