Clarissa Pont, para a Carta Maior
Dez anos depois, o futuro do FSM é debatido em Porto Alegre. O acúmulo de forças conquistado e a certeza de que ele pode e deve gerar ações efetivas no mundo aparece em diversas avaliações do Seminário Dez anos depois: Desafios e propostas para um outro mundo possível. Para João Pedro Stédile, do MST, Fórum precisa construir idéias mais unitárias. “Não conseguimos ter um programa mais propositivo, não que o FSM tenha que ter um programa próprio, mas que neste espaço pudéssemos construir idéias mais unitárias que representem um acúmulo de forças".
No primeiro livro sobre o processo do Fórum Social Mundial, publicado em 2001 sob o título “FSM: A construção de um mundo melhor”, Bernard Cassen narra uma conversa com Francisco Withaker e Oded Grajew no escritório do Le Monde Diplomatique, em Paris. Era a primeira das incontáveis reuniões que surgiriam para a construção do FSM. “Há momentos na vida em que, numa fração de segundo, temos a intuição e a absoluta certeza que uma iniciativa está destinada a um futuro promissor”, resume Cassen no livro. Dez anos depois, muitas das mesmas pessoas que estiveram em Porto Alegre em 2001 reencontram-se para debater o futuro do FSM. O acúmulo de forças conquistado até agora e a certeza de que ele pode e deve gerar ações efetivas ao redor do mundo aparece em diversas avaliações do Seminário Dez anos depois: Desafios e propostas para um outro mundo possível.
“Em menos de uma hora de discussão, nos pusemos de acordo em três pontos. O anti-Davos não poderia ser na França, país muito próximo da Suíça: era preciso uma ruptura geográfica e simbólica. De longe o Brasil me parecia ser o melhor candidato. E no, Brasil, a cidade de Porto Alegre me parecia a mais adequada, tendo em vista a sua experiência de democracia participativa, mundialmente conhecida como Orçamento Participativo. Eu havia tido a oportunidade de visitá-la pela primeira vez em julho de 1998 e encontrado especialmente, além de Raul Pont, o prefeito da época, Tarso Genro, ex-prefeito, e Olívio Dutra, que preparava ativamente a campanha eleitoral que o faria governador do Estado do Rio Grande do Sul. Para se opor a Davos, tirando partido de sua existência, seria preciso dar à nossa iniciativa o mesmo nome, mudando apenas um adjetivo. Para continuar com o paralelismo conflitivo com Davos, era preciso o FSM ocorresse nas mesmas datas”, conta Cassen sobre a conversa.
E o resto é história. De lá pra cá, Porto Alegre e o Rio Grande do Sul deixaram de ser exemplos progressistas para o mundo, mas o balanço de uma década de Fórum volta à cidade natal, talvez para que se reencontrem, depois de passar por Mumbai, Caracas, Nairóbi e Belém do Pará. Para Cândido Grzybowski, a decisão de permitir que o FSM rodasse o mundo foi um dos acertos do processo. “Isso deu chance às pessoas de cada um destes locais aproveitarem melhor o Fórum. Quando começamos, parecia louco quem ousasse dizer que outro mundo era possível. Hoje, um outro mundo não é só possível, como ele se impõe pelos fatos. Isso não quer dizer que construímos a alternativa. E é aí que entra pensar o Fórum para mais adiante. Seremos capazes de tal construção?”.
A pergunta do diretor do Ibase e integrante do Comitê Internacional do FSM não é de fácil resposta e é exatamente este questionamento que circula por Porto Alegre nestes dias. Para o também membro da membro do Comitê Internacional e representante da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, Francisco Whitaker, na prática, o FSM se concretizou como praça pública. “O Fórum virou um espaço aberto onde os movimentos e organizações altermundialistas pudessem se encontrar livremente, identificar convergências, pensar ações e articular alianças. Com isso, se tornou um instrumento a serviço da reflexão engajada, mas tal objetivo pode ser questionado”.
Whitaker acredita que questionar o FSM é sempre fundamental até porque, após um período de desânimo vivido pelo Fórum, o último encontro em Belém do Pará significou uma retomada de forças, segundo ele. “Lá pelas tantas, não sabíamos quais rumos tomar frente à força da globalização neoliberal. E aqueles que não faziam a necessária distinção entre o movimento altermundialista e o próprio FSM começaram a acreditar que era o Fórum que começava a se esvaziar. Essa impressão se reforçou quando, em Nairóbi em 2007, ele atraiu menos da metade dos participantes do Fórum de 2005, em Porto Alegre. Essa tendência só foi interrompida em 2009, quando reunimos de novo um número recorde de 150 mil participantes”.
Reforçando a idéia de que o FSM não morrerá, nem se tornou menos importante, mas que precisa rever objetivos, as falas em Porto Alegre 2010 convergem em uma palavra: ação. “Nesta idéia de que não se pode ficar eternamente discutindo e é preciso passar mais depressa à ação, surgiu a proposta de que o FSM tenha como objetivo a própria ação. Lançando ele mesmo as suas comitivas para superar o modelo neoliberal e assumindo um papel de maior protagonismo nessa luta. Para mim, o FSM continua sendo uma praça pública de encontro e reflexão em nível mundial e local com vistas a ação do altermundialismo e a criação de novas articulações”, avalia Withaker. Sem dúvida, a proposta de maior protagosnimo ganhou mais força após a crise financeira de 2008, quando parecia que o capitalismo estava prestes a ruir e que teria chegado o momento da virada. “O fórum de Davos foi realizado naquele momento em clima de velório” relembra Withaker.
Para Oded Grajew, o pensamento de ação comum deve transcender o Fórum. “A ação deve existir o ano inteiro, em formação de redes e fortalecimento das existentes. Essa foi a grande sacada do FSM, abrir um espaço onde todos se sentissem contemplados, onde nenhum causa é mais importante que a outra, porque a diversidade é um dos valores da nossa Carta de Princípios. Ela continua válida? Certamente que sim. Avançamos em muitas coisas e nossa tarefa ainda é gigantesca. A discussão do papel do FSM é interessante porque envolve nossa cultura patriarcal, piramidal, onde temos que ser mandados a fazer as coisas. O FSM não orienta subordinados, ele não manda em ninguém”, grifa o presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social.
Entre a partidarização dos movimentos sociais e do FSM e a máxima “mudar o mundo sem tomar o poder”, outros debates aparecem pelos corredores da Usina do Gasômetro e dos Armazéns do Cais do Porto,
construções a beira do Rio Guaíba que abrigam as discussões do Seminário Dez Anos Depois. Para o membro da Direção Nacional do MST, João Pedro Stédile, o acerto do Fórum foi justamente aceitar a todos, “até aos partidos”, grifa. “Acertamos em ser um espaço de debates onde todos se sentissem convidados, mesmo os companheiros que tem militância partidária, não em nome dos seus partidos, pela natureza do FSM. Sempre lutamos dentro do Fórum para que ele fosse massivo. Não poderia se transformar em uma reunião de sabidos ou em um evento acadêmico analisando a luta social. Acho até que em alguns momentos fomos democráticos demais. Mas avançamos em contribuir para derrotar o neoliberalismo não como modelo econômico, mas como ideologia”.
De todo modo, para Stédile ainda falta ação. “Não conseguimos ter um programa mais propositivo, não que o FSM tenha que ter um programa próprio, mas que neste espaço pudéssemos construir idéias mais unitárias que representem um acúmulo de forças. Também falhamos em construir dentro do Fórum espaços que possibilitassem ações de massa internacional”. Segundo ele, a única articulação internacional que pode ser citada foram as mobilizações contra a Guerra no Iraque, em 2003. Naquele ano, manifestantes contrários à guerra saíram às ruas de dezenas de cidades em todo o mundo para protestar. Foram mais de
150 mil pessoas em Paris, em dois protestos contra a guerra ao Iraque. Na Tunísia, centenas de pessoas tomaram as ruas da capital cantando "Give peace a chance" (Dê uma chance à paz). Em Milão, 300 mil pessoas participaram de um protesto. Os organizadores do evento, porém, falavam em 700 mil pessoas e explicavam que a manifestação significa uma oposição à guerra em qualquer circunstância. O protesto foi organizado por cerca de 70 entidades, entre sindicatos, partidos de esquerda e organizações não-governamentais.
“Inaugurado em 25 de janeiro de 2001, exatamente na mesma data que o de Davos, o FSM, em menos de 48 horas se colocou mediaticamente no mesmo nível que WEF, onde os grandes chefes das finanças e da indústria há 30 anos se encontram para decidir, de acordo com suas conveniências, o futuro do mundo. Portanto, o que aconteceu em Porto Alegre se constituiu numa verdadeira virada. Na sua diversidade, os movimentos opostos à globalização liberal irão não apenas seguir contestando, através da organização de anticúpulas, fóruns e manifestações, os que decidem nas assembléias do FMI, da OMC, do Banco Mundial, da Associação de Livre Comércio das Américas (Alca). Este é o grande desafio do próximo Fórum Social Mundial”, imaginava Cassen no mesmo texto do primeiro parágrafo.
O mundo certamente não é mais o mesmo de uma década atrás, com a derrubada das tratativas pela Alca, a crise econômica que povoou os debates do Fórum de Porto Alegre e a quantidade de governos progressistas eleitos na América Latina. Mas Porto Alegre também não é mais a mesma e o Rio Grande do Sul hoje é palco da maior batalha contra movimentos sociais, travada pelo Governo no Estado. O FSM voltou a sua cidade natal para avaliar a última década e encontrar tudo bem diferente de como deixou. No final das contas, as transformações vividas na última década são as provas da essencialidade do Fórum até hoje.
(Envolverde/Carta Maior )