Jacqueline Pitanguy*
Os direitos humanos se escrevem com as tintas do poder, da luta política, da negociação. Os direitos humanos são datados. Trazem a marca de seu tempo histórico e expressam processos sociais. A arquitetura dos direitos humanos foi profundamente modificada no século XX, quando uma série de convenções tratados, declarações das Nações Unidas ampliaram as suas fronteiras, inicialmente centradas nos direitos civis e políticos e nos direitos sociais.
Esta ampliação do conceito de direitos humanos é uma das conquistas mais importantes e difíceis em curso desde o século passado. Como qualquer conquista, ela reflete a dinâmica do poder e é resultante dos conflitos, tensões e alianças entre governos, organizações da sociedade civil e instâncias internacionais.
Pobreza, sexo, raça e etnia, orientação sexual, definiram ao longo dos séculos, cidadãos de primeira e segunda categoria em uma clara negação do principio universal de que o único requisito para a titularidade de direitos humanos seria o pertencimento à espécie humana.
O direito ao meio ambiente saudável, o direito a saúde, os direitos sexuais e reprodutivos, foram incorporados a matriz dos direitos humanos e o racismo, a violência doméstica e a discriminação sexual foram considerados violações dos direitos humanos. Ao mesmo tempo novos sujeitos de direitos, como mulheres e crianças, foram incorporados, mediante convenções e legislações especificas, à plena titularidade de direitos.
Desta forma, porque datado, o programa, necessariamente, deve ser abrangente. Cabem nele temáticas diversas como a da união civil entre pessoas do mesmo sexo e a temática do aborto. Com relação a este tema lembro que o direito à opção no âmbito da reprodução humana foi incorporado a matriz dos direitos humanos na Conferencia da ONU de 1994 , e que o direito a interrupção voluntária da gravidez, reconhecido em inúmeros países como um direito humano das mulheres , tem também interface com o direito a saúde. E salientar que o que se pretende garantir é o direito a opção, devidamente regulamentada, e não a imposição autoritária do abortamento .
Outro tema que vem suscitando controvérsias e atritos se refere a questão da tortura. Neste caso não se trata de um questionamento sobre o alcance do plano e sim sobre conteúdo posto que a questão da tortura sempre foi central na matriz dos direitos humanos e seria inaceitável um programa governamental que não abordasse este tema. Desde 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos, das Nações Unidas, instituiu princípios básicos de proteção do indivíduo frente ao arbítrio do estado.
A questão da tortura e da violação da integridade física dos indivíduos é também legislada por convenção internacional de 1984 da qual o Brasil é signatário e que tem força de lei em nosso território. A tortura, a diferença de outros delitos, é também considerada crime de lesa humanidade e neste sentido, é um crime imprescritível,quer seja realizada em delegacias civis contra cidadãos acusados de crimes comuns quer tenha sido realizada de forma sistemática , nos porões de regimes ditatoriais civis ou militares.
No cone sul a Argentina, o Chile, o Uruguai, e o Paraguai estabeleceram comissões de verdade e justiça, sem que tenham acarretado qualquer tipo de instabilidade institucional a seus governos. Ao contrário, indicam claramente que as forças armadas e demais instâncias do governo não admitem a tortura, separando claramente os limites entre a repressão exercida pelo estado que detém o monopólio legitimo da violência, e a tortura.
Outras temáticas abordadas no plano vem também suscitando debates. Dentre estas destaco a questão do uso de símbolos religiosos em órgãos de governo posto que se remetem a consolidação de uma cultura nacional impregnada por símbolos cristãos como o crucifixo, próprio de religiões específicas e que não representam crenças nem valores de pessoas de outras crenças como o islamismo, o judaísmo, o budismo, as religiões afro brasileiras ,o espiritismo, dentre outras, ou de pessoas não religiosas, ferindo o principio básico do respeito a pluralidade em um país cujo Estado é laico desde 1889, e que deve respeitar a diversidade de crenças e valores vigentes na sociedade. E esta postura não tem nada a ver com a estátua do Cristo Redentor ou qualquer outra escultura simbolizando um Orixá, um Buda ou outras formas de expressão artística expostas em logradouros públicos.
A ampliação e afirmação dos direitos humanos como passaporte para uma sociedade verdadeiramente democrática e plural requer capacidade de negociação para o alcance de um consenso que necessariamente deve ter por base o paradigma da indivisibilidade e da universalidade dos direitos humanos. Esperemos que a debate em curso no país permita caminhar nesta direção,evitando retrocessos e ousando avançar .
A ação política da sociedade civil , representada por diversas organizações , dentre as quais cabe destacar os movimentos sociais, tem lutado na arena das Nações Unidas, para que os governos assinem e respeitem acordos que instituam um patamar básico de proteção dos indivíduos frente a violência do estado, que determinem regras de proteção a população civil em situações de guerras e conflitos e que tratem de dimensões mais específicas como as discriminações e violências em função da raça ou do sexo. Alguns destes acordos, como as Convenções e Tratados, tem força de lei nos países signatários. Outros, como as Declarações e Plataformas de Ação, tem "força moral" no sentido de dar legitimidade e amparo a legislações nacionais e ações da sociedade civil.
Porque as mulheres, ao longo dos séculos, tem sido privadas do exercício pleno de direitos humanos e tem sido submetidas a abusos e violências, tanto em situações de guerra como no espaço da vida familiar e domésti
ca, estas tem tido um papel de grande relevância nesta ampliação do alcance dos direitos humanos. Questões que sempre fizeram parte da sua agenda , como a violência doméstica, os direitos sexuais e reprodutivos, direitos sociais específicos à mulher como o de herdar e ser proprietária, muito restringido em países islâmicos, a violação de sua integridade física, entre outros, vem sendo colocadas por estes movimentos nas pautas de discussões das Nações Unidas.
Ao celebrarmos estes avanços, cabe refletir, no entanto, sobre o longo caminho que ainda separa, em nossa sociedade, leis e realidade. Diversos fatores respondem por esta distancia. Dentre estes, a desigualdade em função de classe social, gênero, raça e etnia e o autoritarismo que ainda permeiam a sociedade brasileira. Entretanto , para que haja uma mobilização social no sentido de que direitos e princípios assegurados em leis se traduzam em comportamentos cotidianos, é fundamental conhecer este quadro normativo e saber como opera-lo para garantir o uso efetivo dos direitos neles garantidos.
A implementação destas conquistas representa ainda hoje um grande desafio. A ampliação e universalização dos direitos humanos requer um consenso internacional cujos limites e possibilidades dependem de questões relacionadas a soberania nacional, à valores culturais e religiosos, à características do estado como laicismo ou religiosidade, autoritarismo ou democracia, e à ação da sociedade civil.
*Socióloga
Coordenadora Executiva da CEPIA
Presidente do Conselho Curador do Fundo Brasil de Direitos Humanos
Integrante da CCR- Comissão de Cidadania e Reprodução
Membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher