Odailta Alves, uma escritora de “letras pretas”

Por Malu Oliveira para Terra Literária.

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Com minha mãe, minha  avó, mulheres negras eu aprendi a ler o mundo”.

(…) “Minha poesia sangra e mancha as páginas do colonizador”.

Em 14 de julho de 1979, nasceu a menina Odailta, da barriga de Amara Alves, no bairro de Santo Amaro, Recife, Pernambuco. Desde menina até os 23 anos de idade, morou em uma comunidade muito pobre, em barraco, na favela de Santo Amaro, nos arredores do Campo do Onze, em Recife, compartilhando o mesmo espaço com mais oito pessoas da família. Naquele lugar, como tantas outras crianças moradoras das favelas, escapou das balas perdidas e das drogas que circulavam pelos becos, e de tantas outras violências que diariamente rondavam por ali.

No convívio com sua Amara e a avó Regina – duas mulheres negras, que não tiveram a oportunidade de serem alfabetizadas–, desde menina, aprendeu a enfrentar os desafios do mundo. Com o incentivo de sua avó, foi a primeira mulher da família a ser alfabetizada. Ela dizia “que eu era muito inteligente e podia conquistar tudo porque sabia ler”. Odailta conta-nos que foi a primeira pessoa da família a aprender a ler: “com essas mulheres eu aprendi a ler o mundo”. Para ela, alfabetizar-se foi uma grande conquista e tornar-se escritora foi uma revolução contra essa sociedade excludente e preconceituosa.

É mãe de Douglas e Stefana, suas “perolas negras”, que a inspiram a seguir na resistência contra todas as formas de opressões, por todos os lugares que transita.

Uma mulher forte que trilhou os caminhos da educação e conquistou o mundo das letras. Tornou-se Mestra em Linguística pela Universidade de Pernambuco (UFPE), na qual pesquisou a influência africana na Língua Portuguesa, tendo como corpus a obra de Ascenso Ferreira. Foi professora de português das redes municipal e estadual e atualmente trabalha com formação voltada para as questões étnico-raciais, na Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco e também é vice-gestora numa escola pública do Recife.

Suas primeiras escritas surgem na adolescência, quando começou a ler, pois tinha que escrever e ler as cartas na comunidade (meio de comunicação muito utilizado nas décadas de 80 e 90). Conta que tinha cadernos de poesia, nos quais copiava os textos que achava bonitos. Aos poucos foi iniciando um processo de escrita que retratava as dores de amor, saudade, solidão, que perpassavam suas experiências e subjetividades e da vida de mulheres e homens negros.  Na atuação como atriz, dramaturga, algumas de suas escritas ganharam os palcos do teatro de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte e tiveram uma grande recepção pelos espectadores.

Quem ainda não leu seus escritos, não sabe o quanto Odailta tem a nos dizer por meio das suas “letras pretas”. Sua literatura posicionada e crítica confronta o status quo da sociedade brasileira do embranquecimento, racista, colonialista, classista e heteronormativa.

Quem ainda não a escutou recitar seus poemas enegrecidos não sentiu o quanto suas palavras, através de sua voz, nos inquietam, incomodam, queimam em nosso peito. Em suas “letras pretas”, ela  denuncia o genocídio, os extermínios e violências praticadas contra as mulheres negras, jovens, ativistas dos direitos humanos e clama por justiça. Denuncia o racismo estrutural e as várias opressões que marcam os corpos e a vida das mulheres negras, da população negra, (trans, cis, lésbicas, gays, bissexuais, com deficiência, idosos, jovens), da população indígena e das pessoas mais vulneráveis, enfim dos grupos historicamente excluídos e discriminados na sociedade.

A literatura de Odailta assume fervorosamente o compromisso com as questões raciais e sociais. Nos provoca a quebrar com os silêncios do racismo, do machismo, dos preconceitos expressos nas narrativas, nas linguagens, nas relações interpessoais, na vida cotidiana, nos espaços institucionais, nas representações simbólicas, os estereótipos do que é ser negra e negro.  Sua voz literária toca os corações das pessoas e mobiliza-nos contra as crueldades do fascismo, racismo, homofobia, lesbofobia, machismo e tantas outras opressões que ainda persistem no contexto atual.

Clamor Negro (livro Clamor Negro)

Que minha cor
Não seja motivo de xingamento
E emudeçam os tons pejorativos
Que me causam sofrimento

Que meu passado
Não me plante na escravidão
E nunca esqueçam
Que fui escravizada
Mas escrava: NÃO

Que as chibatadas só
Nos livros de História
Sejam  lembradas
E junto também venham
Os heróis e as vitórias:
Zumbi, Dandara, Malês,
José do Patrínio, Benguela, Mahin, a glória

Que meus cabelos
Sejam inocentados
Do crime que não cometeram
Não mataram
Não roubaram
E são ruins?
Coitados…
Que nada!
São lindos, cacheados,
Crespos, pretos,
Castanhos, enrolados

Que por minha boca
Eu Jamais seja chamada
De bicuda, beiçuda
Meus lábios carnudos
Sentem a sede de justiça
Não feita com sangue
Mas de oportunidade

Gritam constantemente:
Respeito – dignidade
Saúde – dignidade
Educação – dignidade
F-A-C-U-L-D-A-D-E

Meu nariz?
Não é afilado…
Por isso é feio?
NÃO!
Ele é modelado,
Está dentro do meu
Padrão de beleza
Que você com sua frieza
Insiste em rejeitar

Minha pobre avó
De olhar agateado
Às vezes, esfomeado
Ou triste… discriminado
Sempre a olhar os pés
PRETA!
Não tinha orgulho
Deveria mirar o chão
Ensinaram-lhe que a saída
Era casar com branco
Clarear a família
Triste ilusão
Graças a meu Deus Negro
Nascemos tal qual vovó
Mas junto também nasceu
Em minha veia
Dado um nó
Algo que não se desfaz
O orgulho de ser negra
De pele e alma negra
E baixar os olhos: JAMAIS!

UMA LENDA DE AMOR (Cativeiro de Versos)

Diz a Lenda
com sua voz sedutora
não sei se acredito
mas sem ter o que dizer
Baixinho aqui repito:

O Mundo era todo Noite
Dia não existia
mas isso triste não era
Namoro no escuro
Jantar à luz de vela
A Lua, Rainha
O Sol, o “dono” Dela

Escândalo celestial
“Sol expulso do Céu!”
Manchete de jornal
Comentários, descrenças
Parecia brincadeira
Mas a Lua, tirando o véu
Gritou para a Noite inteira:
– Eu não quero mais ter dono!

Fez-se a partilha dos bens
O Sol ficou com a Luz
para guiar seu abandono
À Lua coube a noite
cada vez mais enamorada
Com brilhantes roseiras
Deliciava-se com novas paixões
Tinha sentido o saboroso mel
do beijo das Estrelas.

 

LETRAS PRETAS (Livro Letras Pretas)

A sociedade só compreende a vida
Clara, muito claramente
Minhas letras vagam
Pela negritude que sou eu
Empretecem os meus caminhos
São canivetes afiados
Que denunciam os negros finados
O racismo velado
E sei que cada vocábulo
Não está sozinho
Tem o axé dos meus ancestrais
É banto, jeje, nagô
Palavras que ecoarão
Ressignificando a escuridão
Pois as letras pretas fazem
percursos próprios
Nunca foram claras,
Nem nunca serão.

Um comentário

  1. […] Em 14 de julho de 1979, nasceu a menina Odailta, da barriga de Amara Alves, no bairro de Santo Amaro, Recife, Pernambuco. Desde menina até os 23 anos de idade, morou em uma comunidade muito pobre, em barraco, na favela de Santo Amaro, nos arredores do Campo do Onze, em Recife, compartilhando o mesmo espaço com mais oito pessoas da família. Naquele lugar, como tantas outras crianças moradoras das favelas, escapou das balas perdidas e das drogas que circulavam pelos becos, e de tantas outras violências que diariamente rondavam por ali. No convívio com sua Amara e a avó Regina – duas mulheres negras, que não tiveram a oportunidade de serem alfabetizadas–, desde menina, aprendeu a enfrentar os desafios do mundo. Com o incentivo de sua avó, foi a primeira mulher da família a ser alfabetizada. Ela dizia “que eu era muito inteligente e podia conquistar tudo porque sabia ler”. Odailta conta-nos que foi a primeira pessoa da família a aprender a ler: “com essas mulheres eu aprendi a ler o mundo”. Para ela, alfabetizar-se foi uma grande conquista e tornar-se escritora foi uma revolução contra essa sociedade excludente e preconceituosa. É mãe de Douglas e Stefana, suas “perolas negras”, que a inspiram a seguir na resistência contra todas as formas de opressões, por todos os lugares que transita. Uma mulher forte que trilhou os caminhos da educação e conquistou o mundo das letras. Tornou-se Mestra em Linguística pela Universidade de Pernambuco (UFPE), na qual pesquisou a influência africana na Língua Portuguesa, tendo como corpus a obra de Ascenso Ferreira. Foi professora de português das redes municipal e estadual e atualmente trabalha com formação voltada para as questões étnico-raciais, na Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco e também é vice-gestora numa escola pública do Recife. Suas primeiras escritas surgem na adolescência, quando começou a ler, pois tinha que escrever e ler as cartas na comunidade (meio de comunicação muito utilizado nas décadas de 80 e 90). Conta que tinha cadernos de poesia, nos quais copiava os textos que achava bonitos. Aos poucos foi iniciando um processo de escrita que retratava as dores de amor, saudade, solidão, que perpassavam suas experiências e subjetividades e da vida de mulheres e homens negros.  Na atuação como atriz, dramaturga, algumas de suas escritas ganharam os palcos do teatro de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte e tiveram uma grande recepção pelos espectadores. Quem ainda não leu seus escritos, não sabe o quanto Odailta tem a nos dizer por meio das suas “letras pretas”. Sua literatura posicionada e crítica confronta o status quo da sociedade brasileira do embranquecimento, racista, colonialista, classista e heteronormativa. Por  Malu Oliveira para Terra Literária.(http://feminismo.eita.coop.br/odailta-alves-uma-escritora-de-letras-pretas/20193/) […]

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