O goleiro Bruno e a gravidez de Luiza: um outro lado da história

MARGARETH ARILHA – Pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp e membro da Comissão de Cidadania e Reprodução

Eliza Samudio e o goleiro Bruno Fernandes engravidaram. Sim, porque na verdade, Eliza não realizou uma fertilização in vitro, com ajuda de um banco de esperma. Houve, sim, relações sexuais desprotegidas entre Eliza e Bruno. Ao menos uma, que terminou gerando uma gravidez. Talvez desejada por Eliza e inoportuna para Bruno. Muitos são os casais que se confrontam com uma situação similar a essa. Nesse caso, a gravidez poderia ter sido evitada caso o goleiro tivesse feito uso de um preservativo masculino, por exemplo. No entanto, como é comum ocorrer, Bruno não deve ter se preocupado com a possibilidade de uma gravidez indesejada, assunto que, infelizmente, ainda é considerado de responsabilidade das mulheres.

 

Pouco depois de saber da gestação, em 13 de outubro, conforme registro policial, Eliza procurou uma delegacia da mulher, no Rio de Janeiro, para relatar que teria sido ameaçada por Bruno, levada a um apart-hotel e forçada a ingerir Cytotec, segundo informações difundidas pela imprensa. A Polícia diz que, na ocasião, o goleiro foi indiciado. Exame de corpo delito feito pelo IML revelou indícios de uso de medicamento abortivo na urina. Foi requerida uma contraprova, feita pelo Instituto de Criminalística Carlos Eboli, que ficou pronta “a toque de caixa”. No último dia 6, os legistas informaram à imprensa que o laudo deu positivo para “plantas abortivas”. Contudo, o instituto reconheceu que a técnica utilizada no exame não teria sido suficiente para indicar se outra substância ou medicamento abortivo poderia estar presente na urina coletada para exame.

Pesquisas mostram um aumento da violência durante a gestação. A Comissão de Cidadania e Reprodução, apoiou estudo da advogada Tamara Amoroso e da socióloga Thais Lapa, que analisaram 781 processos julgados pelos Tribunais de Justiça de todos os Estados, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF) entre 2001 e 2006. Constataram que 31% das ações judiciais que tratam de aborto no Brasil referem-se a interrupções de gravidez causadas por violência contra gestantes. As razões variavam: da indignação de um ex-namorado, por exemplo, por não conseguir reatar o relacionamento, até o cálculo frio de quem mata a ex-mulher grávida por estar em outro relacionamento e não aceitar haver-se com uma ex-companheira grávida de um filho seu. Do total de processos vinculando aborto à violência, 67% eram da Região Sudeste, 20% da Sul, 7% da Centro-Oeste, 4% da Nordeste e 2% da Norte. Essa predominância reflete maior acesso ao Judiciário nos estados mais desenvolvidos.

No entanto, o caso de Bruno e Eliza aponta para outros aspectos, tais como a existência e mau uso do misoprostol no Brasil. Embora não tenha ficado claro, no caso de Eliza, se o medicamento ingerido foi efetivamente o misoprostol, no depoimento ao médico-legista, também segundo a Polícia, ela afirmara ter ingerido cerca de dez comprimidos, alguns azuis e outros cor-de-rosa. De acordo com reportagem publicada em jornal nacional, a contraprova do laudo indicou a presença da substância piperidina. Segundo a polícia, os dados poderiam ser indicativos de que Eliza poderia ter ingerido algum tipo de chá abortivo.

O fato é que não existem chás comprovadamente abortivos e por outro lado, o misoprostol, quando devidamente utilizado, é altamente eficaz. Essas informações são de conhecimento geral da comunidade científica, apoiadas pela Organização Mundial de Saúde, reconhecidas pelo Ministério da Saúde que incluiu o medicamento em sua lista básica. No entanto, estamos longe de poder fornecer às mulheres informações corretas sobre o uso deste medicamento como já ocorre em outros países. Há regulamentações do Ministério da Saúde, produzidas no âmbito da Agência Nacional de Vigilância Sanitária que permitem apenas o uso obstétrico e hospitalar do medicamento. Tal situação empurra as mulheres para uma situação de consumo em contextos de vulnerabilidade. Tal regulamentação precisa ser revisada em nosso país. Enquanto isto, tentativas de abortamento poderão ser mal realizadas e terminarão gerando um ônus enorme para os cofres públicos, ou seguirem como gravidezes indesejadas, podendo chegar a conduzir a relações violentas.

Já há em nosso país evidências suficientes para mostrar que as mulheres precisam do aborto legalizado neste país, e assim como dispõe nossa Constituição, ter acesso a todo progresso científico realizado. O acesso ao misoprostol é um deles. A legislação atual, que apenas contempla dois casos, ou seja, quando há risco de vida da mãe, e quando a gravidez é resultado de estupro, já se mostrou mais do que caduca, não havendo mais sentido a sua permanência no Código Penal. Trata-se de narrativa de 1940, totalmente inútil como mecanismo de barreira para a ação ética, moral e cotidiana das mulheres que, como a pesquisa mostra, abortam, com ou sem lei, com ou sem presença dos serviços públicos de saúde.

As mulheres sabem decidir os filhos que querem ter e os que não querem ter. Pena que, muitas vezes, ainda tenham que pagar com a morte por suas decisões sexuais e reprodutivas.

 

fonte: Cfemea

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