Por GARY GUTTING e NANCY FRASER. Tradução: Carolina Gomes para Universidade Livre Feminista.
No último dia 3 de novembro, Nancy Fraser esteve na Universidade Federal da Bahia para ministrar a palestra “Capitalismo, Feminismo e a Astúcia da História”. O auditório ficou lotado de gente ávida por ouvir a filósofa política (que ainda não tem livros traduzidos para o português) falar de teorias da justiça, democracia e capitalismo.
Aproveitando o interesse e enquanto o vídeo com a palestra não sai (em breve a TV UFBA vai disponibilizar no Youtube), nós aproveitamos para traduzir a entrevista recente que Nancy Fraser [1] concedeu a Gary Gutting [2], professor de filosofia da Universidade de Notre Dame e editor do Notre Dame Philosophical Reviews, para o The New York Times e publicada no dia 15 de outubro. Na entrevista, Nancy Fraser faz críticas ao feminismo atual, em especial sobre a sua relação com a luta anticapitalista. A tradução do texto é da nossa colaboradora, Carolina Gomes [3].
Gary Gutting: Recentemente, você escreveu o seguinte: “Como feminista, eu sempre pensei que, ao lutar pela emancipação das mulheres, estava construindo um mundo melhor – mais igualitário, justo e livre. Mas, ultimamente, eu venho pensando que a nossa crítica ao machismo pode estar fornecendo justificativas para novas formas de desigualdade e exploração.” Pode explicar melhor?
Nancy Fraser: O meu feminismo surge na esteira da New Left (Nova Esquerda) dos anos 1960 e ainda é influenciado pelo pensamento da época. Para mim, o feminismo não deve se preocupar em fazer um número limitado de mulheres assumir posições de poder e privilégio dentro de hierarquias sociais existentes, e sim de superá-las. Para isso, é necessário desafiar as fontes estruturais da dominação de gênero na sociedade capitalista – acima de tudo, a divisão institucionalizada de dois tipos de atividades supostamente distintos: de um lado, o chamado trabalho de “produção”, historicamente assalariado e associado aos homens; de outro, as tarefas ligadas ao “cuidado”, historicamente não remuneradas e ainda realizadas sobretudo por mulheres. Na minha opinião, essa divisão sexual hierarquizada entre “produção” e “reprodução” é uma estrutura determinante da sociedade capitalista e grande causa das assimetrias de gênero inerentes a ela. As mulheres não poderão se emancipar enquanto essa estrutura permanecer intacta.
G.G.: Por que atender as demandas feministas não pode ser visto como apenas mais um grande passo para sanar problemas sociais e econômicos da nossa sociedade capitalista, e não uma transformação na base do sistema?
N.F.: É claro que pode ser visto assim. Mas eu questiono se o feminismo de hoje realmente contribui para o avanço desse processo. Para mim, o feminismo dominante atual adotou uma abordagem incapaz de promover a igualdade até mesmo para as mulheres, muito menos para outros grupos. O problema é que o foco desse feminismo é incentivar mulheres instruídas de classe média a “se esforçar” e a “romper barreiras” – ou seja, a conquistar cargos de liderança no mundo corporativo. Assim, apenas mulheres profissionais da classe administrativa seriam beneficiadas. Sem mudanças estruturais na sociedade capitalista, essas mulheres só poderiam colher os louros da vitória ao explorar outras, repassando o próprio trabalho de cuidado e as tarefas domésticas para trabalhadoras precarizadas e mal remuneradas – em geral, mulheres não brancas e/ou imigrantes. Esse não é e não tem como ser um feminismo para todas as mulheres!
Mas isso não é tudo. O feminismo mainstream adotou uma noção de igualdade bem rasa e voltada para o mercado, o que se encaixa perfeitamente na ótica neoliberal dominante. Assim, ele tende a se alinhar a uma face do capitalismo ainda mais cruel e predatória que engorda as contas dos investidores ao diminuir o padrão de vida do resto do mundo. Pior ainda, esse feminismo serve de álibi para esse canibalismo. É o feminismo liberal que cada vez mais fornece o carisma e a aura de emancipação que o neoliberalismo explora para legitimar sua distribuição de riqueza entre os ricos.
G.G.: Você pode dar exemplos específicos de como o feminismo mainstream estaria ajudando a exploração capitalista?
N.F.: Claro. Na década de 1970, feministas fizeram críticas contundentes ao ideal cultural do período do pós-guerra conhecido como “salário familiar”. De acordo com esse ideal, a mulher deveria ser dona de casa em tempo integral e seu marido, o único (ou ao menos principal) provedor, ganhando o suficiente para sustentar toda a família. É claro que poucas famílias dos Estados Unidos conseguiram alcançar esse ideal. Mas ele foi muito popular em uma fase do capitalismo baseada na produção em massa e no trabalho sindicalizado dos homens (principalmente brancos) relativamente bem-remunerado. Mas tudo isso mudou com a chegada da segunda onda do feminismo, que repudiava o salário familiar por ser uma prática machista, um pilar da dominação masculina e da dependência feminina. Nesse momento, o movimento ainda compartilhava da perspectiva anticapitalista da New Left. Sua intenção não era valorizar o trabalho remunerado, tampouco menosprezar o cuidado não remunerado. Pelo contrário, as feministas da época contestavam o androcentrismo de uma sociedade que priorizava o lucro e a produção econômica no lugar das pessoas e da reprodução social e humana. Elas queriam transformar as bases do sistema e seus valores estruturais – em parte através da descentralização do trabalho remunerado e da valorização das atividades não remuneradas, em especial o cuidado realizado pelas mulheres, necessário para a sociedade.
G.G.: E quais foram as mudanças na crítica ao salário familiar?
N.F.: Hoje, a crítica feminista ao salário familiar assumiu um aspecto completamente diferente. Agora, seu grande objetivo é validar o ideal mais “moderno” da família de renda dupla. Nesse novo padrão, a mulher tem um emprego, o que faz com que ela não tenha mais tempo de realizar o trabalho não remunerado do cuidado. Ao endossar esse modelo, o feminismo mainstream se mostra de acordo com as necessidades e os valores do capitalismo neoliberal contemporâneo. Tal capitalismo recrutou mulheres para a força de trabalho remunerado em larga escala, além de exportar produtos industrializados para o Sul global, enfraquecer sindicatos e multiplicar a oferta de subempregos. Isso se traduziu em redução de salários, aumento expressivo do número de horas de trabalho remunerado necessárias para sustentar uma família e corrida desesperada para transferir as tarefas do cuidado a terceiras, com a intenção de disponibilizar mais tempo para o trabalho remunerado. Que ironia tais práticas receberem uma maquiagem feminista! A crítica ao salário familiar feita pelo feminismo, anteriormente contra a desvalorização do cuidado na sociedade capitalista, hoje serve para alimentar a valorização do trabalho remunerado dentro desse sistema.
G.G.: Mas os esforços feministas não estão voltados exclusivamente para as mulheres das classes abastadas. Qual é a sua opinião sobre o projeto que concede empréstimos (microcrédito) a mulheres pobres em países em desenvolvimento para ajudá-las a desenvolver pequenos negócios?
N.F.: Fico muito feliz com essa pergunta, porque esse é mais um exemplo de como as ideias feministas estão sendo distorcidas para fins capitalistas neoliberais. O microcrédito é visto como uma maneira de empoderar mulheres pobres de regiões rurais no Sul global. Mas supostamente também representa uma forma nova, progressiva e mais participativa de combater a pobreza, uma forma que estimularia o empreendedorismo nas camadas de base e evitaria toda a burocracia dos grandes projetos estatais de desenvolvimento de períodos anteriores. Portanto, a glorificação do mercado e a difamação do Estado são tão importantes para os microcredores quanto a igualdade de gênero. Na verdade, o microcrédito entrelaça essas ideias em uma trama duvidosa, usando o feminismo para dar uma nova roupagem à ideologia do livre mercado.
Mas isso é uma falácia. O microcrédito ganhou prestígio no exato momento em que instituições financeiras internacionais passaram a forçar “ajustes estruturais” sobre o Sul global – estabelecendo condições para os empréstimos que exigiam que Estados pós-coloniais adotassem uma economia de práticas liberais e de privatização, reduzissem gastos de cunho social e abandonassem políticas de emprego e combate à pobreza de grande magnitude. Não há como o microcrédito substituir essas políticas. De jeito nenhum. É uma brincadeira cruel dizer que sim.
Então, mais uma vez, o feminismo é invocado para legitimar políticas extremamente prejudiciais para a esmagadora maioria das mulheres, bem como para crianças e homens.
G.G.: Associar o feminismo a uma crítica profunda ao capitalismo o transforma em uma causa perdida? A maioria das pessoas nos Estados Unidos acredita que o capitalismo veio para ficar.
N.F.: Bom, eu não vejo a transformação do capitalismo neoliberal como uma causa perdida. Na minha opinião, parece que esse sistema está passando por uma crise profunda em diversos campos – uma crise econômica, ecológica, social e política – e que alguma coisa vai ter que mudar, como aconteceu na década de 1930. Então eu diria que a questão não é se o capitalismo atual vai sofrer uma metamorfose, e sim como, por quem e quem seriam os beneficiados.
Eu gostaria que as feministas se juntassem a outros movimentos sociais progressistas e emancipatórios e contribuíssem com esforços intelectuais e práticos para ajudar a direcionar as mudanças.
G.G.: Isso significaria limitar os esforços para melhorar as condições de vida das mulheres no atual sistema capitalista em nome de uma desejada revolução?
N.F.: De forma alguma! Eu gostaria de propor uma estratégia de “reforma não reformista”, para usar uma ideia do pensador ecossocialista André Gorz. Ou seja, reformas que produzam resultados reais nos dias de hoje e, ao mesmo tempo, abram caminho para lutas radicais por mudanças mais profundas e estruturais no futuro. As feministas podem ter uma visão mais cética dessa abordagem. Não precisamos decidir agora se o resultado final deve ser uma sociedade pós-capitalista.
Como eu disse antes, a dominação masculina não pode ser superada sem abolirmos a fixação do capitalismo pela produção econômica em detrimento da reprodução social. É por isso que eu enxergo a busca por transformações radicais como uma pauta mais realista do que a ideia de “romper barreiras”. Mas eu não teria problema se alguém provasse o contrário. Se um novo modelo capitalista for capaz de promover a libertação das mulheres (de todas as mulheres) sem prejudicar outras pessoas, eu aceito. Bom, então vamos correr atrás de reformas não reformistas e ver no que dá.
G.G.: Muitas feministas se preocupam com os preconceitos inconscientes contra as mulheres – preconceitos reproduzidos até mesmo por quem defende os direitos das mulheres, inclusive pelas próprias mulheres. Que importância você atribui a essa questão?
N.F.: O preconceito inconsciente contra as mulheres – na verdade, contra tudo que é identificado como “feminino” – está profundamente enraizado na nossa sociedade. E você tem razão; é algo que influencia o que as mulheres pensam de si mesmas e afeta até as que se declaram feministas. Eu poderia dar vários exemplos, mas um dos meus preferidos é uma história de adivinhação. É a seguinte: um menino chega à emergência de um hospital em estado grave depois de sofrer um acidente de carro seríssimo. O pai dele morreu na hora. A pessoa responsável por fazer a cirurgia olha para o menino e diz: “Eu não vou conseguir operá-lo. É o meu filho.” Aí eu pergunto: como é possível?
É impressionante como a maioria das pessoas – dentre elas, mulheres e feministas – demora para perceber que a pessoa responsável é uma mulher. Muitos acabam dizendo que é um homem gay. É claro que existem inúmeros outros exemplos significativos de como esses preconceitos machistas influenciam o julgamento da qualificação de candidatos a vagas de emprego.
G.G.: Mas essa é só uma questão de preconceitos individuais, sejam conscientes ou inconscientes?
N.F.: De modo algum. O padrão que considera as qualidades “masculinas” melhores do que as “femininas” está arraigado nas nossas instituições e práticas sociais, inclusive no direito, na medicina, na cultura corporativa e nos critérios de concessão de benefícios sociais. Não é de espantar que faça parte da mentalidade das pessoas. Mas não é só aí que ele está presente. Pelo contrário. Valores culturais de subordinação das mulheres estão totalmente embutidos nas estruturas sociais que regulam a interação entre as pessoas no cotidiano. Assim, o feminismo não pode se limitar a uma mudança de mentalidades. Também precisamos extirpar os princípios machistas das nossas instituições sociais e substituí-los por outros que fomentem uma participação igualitária de mulheres e homens, entre todas as pessoas.
G.G.: Você pode dar exemplos de como esses valores estão enraizados nas nossas instituições e práticas sociais?
N.F.: Claro. Por exemplo, vários juízes julgaram que o fato de um empregador não conceder licença-maternidade a uma funcionária não constitui discriminação sexual, uma vez que não nega às mulheres um benefício concedido aos homens. Ao adotar o homem como o trabalhador padrão, essas decisões penalizam as mulheres por serem “diferentes”. Além disso, a legislação para concessão de benefícios sociais obriga mães de crianças pequenas a “trabalhar”. Com o entendimento tácito de que a criação dos filhos não é um trabalho, essas normas insinuam que as beneficiárias são vigaristas que recebem dinheiro por nada. E por fim, dispositivos legais que definem o que pode ser considerado legítima defesa pressupõem uma socialização tipicamente masculina, na qual a pessoa aprende a revidar imediatamente. Dessa forma, mulheres que sofrem abusos e esperam uma oportunidade para neutralizar os agressores encontram dificuldades ao alegarem legítima defesa. Em todos esses casos – e há muitos outros –, nossas instituições e práticas sociais operam de acordo com padrões androcêntricos e machistas. Isso impede que as mulheres participem plenamente da vida social em pé de igualdade com os homens.
G.G.: Outra grande preocupação feminista diz respeito ao que muitos veem como uma “cultura do estupro”, principalmente nas universidades. O que você pensa sobre isso?
N.F.: Bem, essa é uma questão muito polêmica, e devo confessar que fico dividida. Isso se deve, em parte, porque eu sempre acho preocupante quando um assunto se torna tão predominante que acaba ofuscando o resto das reivindicações feministas – como o aborto tem feito nos Estados Unidos. Mas também porque eu tenho uma sensação de déjà vu; é como se nós estivéssemos revivendo uma antiga disputa entre uma linha mais “protecionista” do feminismo, focada na violência contra as mulheres e interessada em buscar soluções por meio do direito penal, e uma mais libertária, que tenta validar a agência e a liberdade sexual das mulheres.
Pessoalmente, eu sempre quis criar uma terceira abordagem que garantisse a autonomia sexual das mulheres e os direitos civis de todos os indivíduos. E eu gostaria que essa abordagem tratasse da violência sexual e de outras formas de coerção mais impessoais e sistêmicas que restringem a autonomia feminina no sexo e em outras esferas. Por exemplo, eu gostaria de recuperar as contribuições do movimento de mulheres vítimas de violência doméstica dos anos 1970. Além de falarem de sanções penais, elas também enfatizavam a importância de se criar opções para as mulheres conseguirem escapar da situação de abuso, como moradia adequada e acessível e empregos cuja remuneração fosse suficiente para a mulher sustentar a si mesma e aos filhos.
G.G.: Que relação você observa entre essa visão geral e o problema dos estupros nas universidades?
N.F.: Eu fico preocupada com relatos que pintam os campi universitários como territórios de caça para estupradores. Eu tenho certeza de que existem redutos que realmente sejam dignos do rótulo de “cultura de estupro”, mas eu creio que sejam relativamente restritos. Eu não gostaria de ver essa expressão sendo usada de maneira tão leviana que acabasse esvaziada de sentido e força crítica. As situações mais comuns de exploração sexual (e esse termo costuma ser mais correto do que a palavra “estupro”) são caracterizadas pela ambiguidade na comunicação, por sentimentos confusos, pela dificuldade de identificar o desejo da pessoa ou a falta dele e pela sensação de que não valeria a pena articulá-lo. Todas essas circunstâncias agem contra a autonomia das mulheres no sexo e nas relações, especialmente (mas não exclusivamente!) nos meios heterossexuais. É de extrema importância promover um entendimento crítico e transformador dessas dinâmicas. Porém, eu desconfio que a atual campanha contra a “cultura do estupro” seja grosseira demais para isso.
[1] Nancy Fraser é professora de Filosofia e Ciência Política na New School for Social Research, em Nova York, e diretora da Cátedra de Pesquisa Internacional em “Justiça Global” no Collège d’études Mondiales em Paris. Fraser é uma das intelectuais mais influentes do mundo e, ao longo das últimas décadas, tem publicado livros altamente reconhecidos sobre temas relacionados às teorias da justiça, democracia, opressão e feminismo. Entre as suas principais obras destacam-se: “Fortunes of Feminism: From State-Managed Capitalism to Neoliberal Crisis” (2013), “Scales of Justice: Reimagining Political Space in a Globalizing World” (2008) e “Feminist Contentions: A Philosophical Exchange” (1994), em co-autoria com Seyla Benhabib, Judith Butler, e Drucilla Cornell.
[2] Gary Gutting é professor de filosofia da Universidade de Notre Dame e editor do Notre Dame Philosophical Reviews. Seu livro “What Philosophy Can Do” conta com ensaios sobre política, ciência, religião, educação e arte.
[3] Carolina Gomes é tradutora e colaboradora da Universidade Livre Feminista. Contato: 13cgomes[arroba]gmail.com
Imagem: Adaptada da capa do livro “Fortune of Feminism”, de Nancy Fraser.