Maria Dolores de Brito Mota *
Adital – O assassinato de mulheres por questões de gênero, o feminicídio, é um crime cada vez mais reconhecido e há muito denunciado. Mas, a sua reprodução histórica apresenta mudanças que não podemos deixar despercebidas. Essas mudanças indicam mecanismos de atualização cotidiana da violência praticada contra as mulheres no contexto de relações desiguais de gênero que persistem, ainda que já exista uma consciência mundial e nacional contrária a tal desigualdade. No Brasil, apesar da Lei Maria da Penha, instrumento de criminalização dessa violência contra a mulher os crimes contra mulheres se sucedem de forma mais evidente.
Temos assistido nos últimos anos a mídia nacional, particularmente a mídia televisiva, apresentar casos de assassinatos de mulheres por seus ex-companheiros ou companheiros de relacionamento amoroso, que chamam a atenção por sua visibilidade, brutalidade e, em certo sentido, por uma inevitabilidade. Assim o foram os fatos que circunstanciaram as mortes de Maria Islaine de Morais, 31 anos (20/01/2010); Eloá Cristina Pimentel, 15 anos (16/10/2008), Mercia Nakashima, 28 anos (23/05/2010) e Elisa Samudio, 25 anos (desaparecida desde 4/06/2010): todos contendo elementos que indicam a emergência de novos procedimentos no processo do feminicídio do qual foram vítimas.
Identifico como novos procedimentos que indicam mudanças nas circunstâncias dos feminicídios: 1) a realização desses crimes em lugares públicos, sob as vistas de testemunhas, bem como, 2) a formação de associações criminosas para a sua efetivação.
Do privado ao público – a espetacularização do ódio ao feminino
Em se tratando de assassinato de mulher por seus parceiros ou ex-parceiros afetivos e sexuais, o mais comum, tradicional, é aparecer o cadáver da mulher e depois a investigação identificar o feminicida. Eliane de Gramont, assassinada em 30 de março de 1981, aos 26 anos, enquanto cantava no Café Belle Époque, em São Paulo, por seu ex-marido, o também cantor Lindomar Castilho que desferiu cinco tiros em suas costas, deve ter sido o primeiro feminicídio famoso cometido publicamente.
Em Fortaleza, no dia 4 de julho de 2006, o ex-marido de Célia Marilac de Oliveira, 46 anos, assassinaria a ex-mulher à facada na fila de banco de um Shopping Center do Centro da cidade. Mais recentemente, em 2008, assistimos por 59 horas através das redes nacionais de televisão o drama de Eloá, do inicio do sequestro até a sua morte por seu ex-namorado. E as câmeras de um circuito interno de um salão de beleza gravaram a cena do feminicídio de sua funcionária, Maria Islaine (que estava sob medidas protetivas da Lei Maria da Penha), por seu ex-marido que lhe desferiu nove tiros.
Podemos nos perguntar: “O que significa a procura de exposição ao público destes crimes por parte do assassino?”. O fato do feminicida não se preocupar em ocultar e, mais ainda, seu querer dar publicidade à sua ação criminosa, revela a vontade de afirmação pública da força e domínio do macho em ‘retomar’ um espaço de poder que ele tradicionalmente demarcava como próprio e que as atitudes de ‘sua’ mulher estão ameaçando. É como se, em sua pretensa hegemonia nas relações de gênero, ele dissesse, em voz bem alta: “Aqui quem manda sou eu”.
Uma segunda consideração nos sugere que a procura da telinha da TV para fazer conhecer suas ações criminosas contra a mulher, se torna para o macho uma forma de angariar consensos dos demais machos do seu bando. Mas os novos palanques dos crimes de gênero só fazem ligar os holofotes sobre a crise da hegemonia de uma categoria social em sua guerra contra a afirmação humanizante do feminino nas relações de gênero e na sociedade.
Da reação individual à associação criminosa
Os casos mais recentes de feminicídio que ainda estão na mídia, também chamam a atenção pelo fato de envolverem uma associação criminosa para matar as mulheres. Misael Bispo, que contratou um amigo, vigilante, para ajudá-lo a matar Mércia Nakashima. E Bruno, que mobilizou aproximadamente 10 pessoas no assassinato de Elisa Samudio. Um problema que normalmente é vivido individualmente pelo homem, torna-se uma questão para um crime coletivo, por formação de quadrilha. Em um caso, no de Mércia, embora haja indícios de um contrato financeiro, evidencia-se a relação de amizade e lealdade do ajudante com o feminicida; fato que no caso de Bruno essa relação entre todos os participantes é indubitável, envolvendo não somente amigos homens, mas também mulheres, namoradas atuais e ex.
O feminicídio vai ganhando a característica de “pistolagem”, de encomenda, no qual técnicas profissionais de matar e esconder (desintegrar) o corpo tornam-se ingredientes de práticas de matar mulheres, intensificando a crueldade e o ódio na busca de destruição do feminino e de seus significados. A punição pela não sujeição dessas duas mulheres aos seus parceiros foi brutal: uma por não querê-lo e a outra por confrontá-lo e expô-lo publicamente. A arrogância dos seus feminicidas transparece até na atitude de confrontarem o país negando o que está evidente, mas que ainda necessita de fundamento técnico e jurídico para a imputação de culpa e punição.
A espetacularização e a associação criminosa para a efetuação de feminicídios parecem expressar novas formas de sujeição e de violência contra as mulheres, desenvolvidas como reação patriarcal aos avanços na conquista de direitos humanos e da emancipação das mulheres pelas lutas feministas.
* Socióloga, Profª da UFC, Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família, NEGIF