O “caso Eliza Samudio” e a Lei Maria da Penha

Felício Soares e Márcia Teixeira (MP TO e MP BA)

O mais recente – e dantesco – caso policial de repercussão nacional reacendeu a seguinte questão jurídica: a Lei Maria da Penha se aplica a romances fugazes? No entendimento da Juíza Ana Paula Delduque M. L. de Freitas (do 3º Juizado de Violência Doméstica, de Jacarepaguá), a resposta é não. Em sua fundamentação, a citada juíza alegou que a Lei Maria da Penha “tem como meta a proteção da família, seja ela proveniente de união estável ou do casamento, bem como objetiva a proteção da mulher na relação afetiva, e não na relação puramente de caráter eventual e sexual”.[1] A decisão foi acatada pelo Promotor de Justiça Alexandre Murilo Graça (da 17ª Promotoria de Investigação Penal), para quem foi remetido o procedimento.


Sobre o tema, no julgamento do CC 100654/MG, a 3ª Seção do STJ decidiu que “(…) a aplicabilidade da mencionada legislação a relações íntimas de afeto como o namoro deve ser analisada em face do caso concreto. Não se pode ampliar o termo – relação íntima de afeto – para abarcar um relacionamento passageiro, fugaz ou esporádico (…)”.[2]

No entanto, ousamos discordar. Nossa análise começa pela leitura do art. 5º da lei federal n. 11.340/2006 (Lei “Maria da Penha” – LMP):

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. (grifamos)

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

Observa-se neste artigo a definição de quem pode ser imputado como autor do crime de violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como quais os locais onde pode ser praticado o referido crime. Ou seja, o legislador buscou sinalizar a amplitude do espectro da norma apreciada.

No que se refere ao vinculo de afeto lançado na Lei Maria da Penha, o mesmo não tem a intenção de traduzir – exclusivamente – relacionamentos tradicionais; muito ao contrário, na medida em que a própria lei apresenta inovações significativas para o enfrentamento da violência domestica e familiar.

Demais disso, o art. 5º deve ser interpretado à luz do artigo anterior:

Art. 4º Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. (grifamos)

O “fim social” da LMP foi a criação de “mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher” (vide ementa da lei);[3] ou seja, o diferencial é a existência de vínculo afetivo entre os envolvidos. Em outras palavras, “vitima e acusado tenham algum tipo de convívio habitual, de forma que não possam ser considerados estranhos ao outro” (Campos e Correa, 2007)”.[4] Por consequência, não é qualquer relação interpessoal entre homem e mulher que gera a proteção especial; ficam fora as situações onde os agentes nunca mantiveram nenhum laço de afeto. Alguns exemplos: colegas de trabalho, vizinhos, discussão no trânsito, etc.

A LMP procura tutelar os interesses das vitimas agredida por pessoa do seu convívio, onde se tenha instalado uma intimidade, de forma que a continuidade do contato signifique em si uma ameaça, o que resultou na ressalva do legislador: “independentemente de coabitação”.

As contemporâneas formas de se relacionar (“ficar”, “pegar”, “listar”, “ser amante”, “parceria sexual”, “namoro virtual”) atendem a um novo estilo de vida, centrado na busca do prazer, da satisfação rápida, livre, descompromissada (Giddens, 1992; e Andrade, 2008); e afastar tais relações de proteção especial – unicamente em razão da pretensa precariedade do vínculo – não seria juridicamente aceitável, pois trataria diferente situações semelhantes.

Importante frisar que a fragilidade e/ou ruptura dos relacionamentos, ainda que fugazes, geralmente leva à construção de dinâmicas de tensão, como disputas familiares/financeiras (guarda de filhos, divisão de patrimônio, reconhecimento de paternidade, pensão alimentícia, direitos sucessórios, picuinhas em geral etc), e ciúme (o que é mais freqüente), onde a diferença de forças (a favor do homem) e a tradição machista fazem com que essas divergências sejam enfrentadas à ameaça e/ou à força.

Já com relação ao ciúme obsessivo ou patológico, é traduzido na maioria dos estudos como o desejo de controlar a mulher, considerando que o homem sentindo-se possuidor da mesma passa a ter sobre ela o “domínio

” de vida (tal como proibir/controlar vestuário, saídas, companhias etc) e morte, e esse comportamento pode se instalar independentemente da duração do vínculo; é dizer, não há diferença substancial no ciúme, baseado tão somente no fato de a relação ser fugaz ou antiga.

Pois bem. Vejamos um resumo do contexto do fato concreto (com base no que foi divulgado pela imprensa): (a) em maio de 2009, Eliza e Bruno se conhecem mantém relação sexual; (b) durante o período de maio a julho Eliza e Bruno se encontram mais três ou quatro vezes, e mantêm diversos contatos telefônico; (c) em agosto de 2009, Eliza anuncia publicamente sua gravidez, atribuindo a paternidade a Bruno; (d) em outubro de 2009, Eliza procura uma Delegacia de Proteção a Mulher e alega que teria sido obrigada por Bruno (juntamente com dois amigos) a ingerir substância abortiva, bem como mantida em cárcere privado; (e) em março de 2010, nasce o filho de Eliza, e esta entra com ação de reconhecimento de paternidade frente a Bruno; (f) em maio de 2010, Eliza se hospeda em hotel no Rio de Janeiro, supostamente a pedido de Bruno; (g) em 04.06.2010, Eliza diz para amigas que está indo para Minas Gerais, alegadamente a pedido de Bruno; (h) em 07.07.2010, Bruno é preso, juntamente com outras pessoas, por pretenso envolvimento na morte de Eliza.

No caso em que pretendemos analisar, o inciso III do art. 5º tem mais adequação; eis seus requisitos: (a) relação íntima de afeto; (b) convivência pretérita ou atual entre ofensor e ofendida; (c) prescindibilidade de coabitação.

O questionamento se divide, então, em dois momentos: (a) o vínculo entre os envolvidos configuraria “relação íntima de afeto”? (b) o fato de não ter havido “convivência” perene entre ambos afastaria a incidência da LMP?

De fato, da relação entre os envolvidos não houve nenhuma intenção inicial de se constituir família; apesar de ter resultado uma gravidez (indesejada). Mas, como sabemos essa circunstância não seria óbice à aplicação da LMP, pois para tal não se exige coabitação.

Ademais, por mais débil e superficial que tenha sido o contato entre os envolvidos, é inegável que houve relação extremamente íntima (de caráter sexual) que por si já era suficiente para gerar uma gama extensa de sentimentos e desejos; no caso de Bruno, sexo sem compromisso, a não-aceitação da gestação, a manifestação da agressividade e do poder; no caso de Eliza, a possibilidade de engatar um romance, ter um relacionamento estável, a subjugação e o medo.

É importante ressaltar que a sociedade pós-moderna tem mudado velozmente o seu modo de viver e as suas relações sócio afetivas, sobretudo na maneira de interpretar e controlar  essas relações, que não correspondem aos modelos e padrões simbólicos ideais que, durante muito tempo, restaram estáveis e uniformizados na nossa sociedade, muito ao contrário agora; dinâmicos, plurais, diversos, transitórios. A velocidade é um elemento que caracteriza a modernidade, pois se vive o presente de forma intensa, sem preocupação com os limites, com os riscos, com o tempo.

A interpretação dos sentimentos e da sua forma de manifestação, e aqui especificamente do afeto, é subjetiva e compõem o mundo interno do individuo, não nos autorizando a aferir como adequado ou não, a partir de conceitos pessoais o que o outro construiu por representação de afeto. No caso de Eliza Samudio, inclusive foi divulgado pela imprensa, que ela afirmou “existir entre o casal uma relação de amor e ódio”.

É importante registrar que, apesar de a LMP mencionar os termos “que conviva ou tenha convivido”, em nenhum momento a lei exige que a relação íntima de afeto “deve ser duradoura”. Essas referências vêm sendo construídas na interpretação de alguns Tribunais, que seguem reproduzindo estereótipos de gênero e de crenças culturais, aprisionando a compreensão do significado dos relacionamentos, digamos, “hortodoxos”.

Pode-se afirmar que A relação intima de afeto, na modernidade, pode englobar a relação intima de namoro “perfeito”, de namoro instável, de namoro virtual, de parceria sexual, do sexo sem compromisso, ou outros arranjos. Quem de nós pode afirmar que nessas relações não existe afeto? Todas essas formas de se relacionar fora dos padrões convencionais, podem prescindir do amor, mas criam, ainda que de forma frágil para alguns, intimidade, sentimentos, sensações, emoções, dentre outros.

Importante perceber que, independentemente da duração e/ou profundidade do vínculo, as atitudes de Bruno teriam sido exatamente aquelas que a LMP pretendeu coibir: a violência/ameaça furtiva, clandestina, praticada às escondidas, contra pessoa mais frágil e vulnerável (sobretudo em razão da gravidez).

Assim, considerando-se o balizador de interpretação definido no art. 4º da LMP, tem-se que estamos diante de um exemplo em que a lei “disse mais do que queria” (“plus dixit quam voluit”) quando se referiu à “convivência”, no art. 5º, inc. III.

Concluímos, portanto, que: (a) a LMP deve ser interpretada de forma extensiva; (b) não é toda relação interpessoal entre homem e mulher que atrai a incidência da LMP, mas aquela onde exista algum tipo de afetividade; (c) não é a duração ou a profundidade do vínculo que gera a incidên

cia da LMP, mas a intimidade/proximidade da relação, sem perder de vista os diversos arranjos que compõem o universo das relações contemporâneas.



[3] Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.” (grifamos)

[4] Campos, Amini e Correa, Lindinalva. Direitos humanos das Mulheres, 2007. Curitiba. Editora Juruá.

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