É possível escamotear o racismo no Brasil?

ABONG *

Adital – Aprovado pelo Senado no dia 23 de junho deste ano, o Estatuto da Igualdade Racial tem sido alvo de polêmicas e discussões acaloradas sobre seu conteúdo, principalmente aquele que foi retirado de seu texto. A proposta original, que tramitou por mais de dez anos no Congresso, continha itens que determinavam o estabelecimento de cotas para a população negra em universidades, partidos políticos, programas de televisão e peças publicitárias, e iniciativa privada (mediante isenção fiscal), além de propostas de criação de políticas públicas de saúde voltada para as suas especificidades. Nada disso permaneceu no texto aprovado.

 

Foram retirados também os pontos sobre demarcação de terras quilombolas, políticas e direitos das mulheres negras (que como sabemos, sofrem mais com as consequências do machismo que as brancas), e, pasmem, todas as palavras que faziam referências ao termo raça foram substituídas por outras, como, por exemplo, etnia. As mudanças no texto começaram na Câmara e foram aprofundadas no Senado por Demóstenes Torres (DEM-GO), relator do projeto.

Organizações e entidades que se articulam e fazem parte do movimento negro, muitas delas associadas à ABONG (veja aqui alguns posicionamentos), se manifestaram contrárias a aprovação de um Estatuto mutilado, pedindo inclusive que o presidente Lula não sancione a lei. Do outro lado, ativistas ligados(as) à Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial saudaram o Estatuto como uma conquista na luta por direitos e igualdade de negras e negros. Houve ainda quem criticasse o Estatuto por considerar que o texto, mesmo desconfigurado, é perigoso, pois estabelece a divisão da sociedade brasileira entre brancas(os) e negras(os). Esse tipo de argumentação, elaborada pelos setores mais conservadores, insiste em ignorar todo um histórico de racismo e opressão, defendendo a pretensa existência de uma democracia racial no país.
Além da retirada de todos os pontos mencionados acima, assusta a ideia de que palavras como raça tenham sido expurgadas do texto em nome da manutenção da mentira de que não existe racismo no Brasil[1]. A corrente que tenta comprovar essa tese, a despeito de dados que dão conta da situação de pobreza e exclusão em que vivem dois terços das(os) negras(os) brasileiras(os) e de todos os casos de violência – principalmente do Estado – contra uma multidão de jovens negros, ganha força de quando em quando, com o lançamento de livros e publicação de artigos em veículos da grande mídia.

Para muitas(os) integrantes do movimento negro que se posicionaram sobre a questão do Estatuto, o racismo que ainda permeia todas as nossas relações tem sua existência mais do que comprovada pela forma como se deu todo este processo, além de ser a raiz da retirada de todos os pontos que poderiam realmente fazer a diferença na vida de negras e negros.

Inegavelmente, o debate acerca da aprovação de um Estatuto da Igualdade Racial caracteriza um avanço que, há alguns anos, seria impensável no Brasil. Esse avanço é consequência direta da luta intransigente e cotidiana de milhares de negras e negros. A existência do Estatuto em si reconhece a necessidade de formulações específicas para uma parcela da população que vive há séculos em condições desiguais. Mas, para além deste reconhecimento, o que um texto como o que foi aprovado pode realmente transformar?

A ABONG atua, por meio de suas associadas que compõem o movimento negro, no sentido de reverter o quadro de discriminação racial existente no Brasil. Por conseguinte, lamentamos que, dentro de nossas instâncias representativas, ainda não haja força política suficiente para a aprovação de um instrumento que seja realmente coerente com a realidade para mudar essa situação. Seguiremos, assim, apoiando a luta da população negra brasileira por direitos, políticas públicas e leis que acabem com o racismo, ao invés de escamotear sua existência, reafirmando-o.

Nota:

[1] Muitas vezes, a negação da palavra raça vem acompanhada do argumento de que raça é uma só, a humana, e todas e todos pertencemos a ela. Assim, nega-se a existência de racismo a partir do esvaziamento de sentido do próprio termo. Evidentemente, ninguém contesta essa afirmação de uma única raça humana do ponto de vista biológico mas, sociologicamente falando, são as diferenças de raças (e não só étnicas ou de cor) e a forma com que elas são percebidas socialmente, que criam as situações de discriminação para as pessoas de raça “não branca”, principalmente de raça negra e indígena.

* Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais

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