A violência além dos registros

Marina Lemle, do Comunidade Segura

Se os números oficiais do crime no Brasil já são assustadores, o que dizer da violência real que ocorre a cada instante entre quatro paredes, em becos escuros ou até no cada-um-por-si das ruas movimentadas das cidades?

Em lugar algum do mundo os registros oficiais reproduzem a gravidade da violência. Entre o que chega às autoridades e o que realmente acontece há grandes diferenças. Por isso, há décadas muitos países complementam os dados policiais, criminais e judiciais com informações coletadas diretamente junto à população por meio de pesquisas de vitimização. Estas pesquisas ajudam a estimar a subnotificação de crimes e dão uma ideia mais aproximada da realidade da violência, permitindo o planejamento de políticas públicas de prevenção mais eficazes.

Com longo atraso – os Estados Unidos começaram a coletar dados sobre a violência em 1972 e os britânicos em 1982 -, mas com o cuidado científico que uma pesquisa dessa envergadura demanda, a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (Senasp/MJ) lançou oficialmente, em 1o de julho, a primeira Pesquisa Nacional de Vitimização. A pesquisa pretende conhecer os riscos de vitimização em diferentes grupos sociais, mensurar o medo do crime e sua relação com possibilidades concretas de vitimização, entender a experiência do crime do ponto de vista das vítimas, investigar as razões da subnotificação de crimes e avaliar as instituições do sistema de segurança pública.

Apoiada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), a pesquisa deverá ouvir cerca de 70 mil moradores de 300 municípios com mais de 15 mil habitantes, uma em cada domicílio escolhido por amostragem.

O trabalho de campo começou em junho, com 150 pesquisadores do Datafolha realizando entrevistas em 16 capitais, e deve estar concluído até dezembro. Os técnicos do órgão de pesquisa contam com a consultoria do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), da Universidade Federal de Minas Gerais. A divulgação dos resultados está prevista para de fevereiro de 2011.

Em cerca de uma hora, os entrevistados respondem a 100 perguntas, divididas em cinco blocos, incluindo dados como renda, escolaridade e estado civil. Com o objetivo de avaliar a sensação de segurança, os fatores considerados de risco e verificar crimes não notificados são feitas perguntas como se a pessoa já presenciou ou sofreu alguma forma de violência em seu bairro, sente-se protegida perto de casa e se precisou mudar a rotina após passar por algum tipo de problema.

O questionário também aborda o que o entrevistado acha da atuação policial na sua comunidade, como avalia a segurança prestada em seu bairro e serviços como Disque-Denúncia e o 190. Há ainda questões específicas sobre alguns tipos de crime, como roubo, estelionato e violência doméstica.

A coordenadora geral no Núcleo de Pesquisas da Senasp, Luciane Patrício, destaca a seção de crimes sexuais. “Os moradores sorteados em cada residência serão entrevistados por pessoas do mesmo sexo – homens por homens e mulheres por mulheres. O objetivo é ter o mínimo possível de subnotificações nas entrevistas”, explica.

Luciane enfatiza que para garantir a adesão da população à pesquisa é preciso sensibilizar as pessoas sobre a sua importância, expondo os objetivos. “É necessário qualificar as informações para que políticas públicas mais adequadas possam ser desenvolvidas”, completa. Segundo ela, uma vez que a pesquisa for realizada regularmente, todos os anos, poderão ser feitas comparações.

Metodologia elaborada por Conselho Gestor

Pesquisas semelhantes já foram realizadas em alguns estados e municípios brasileiros, mas esta é a primeira de âmbito nacional, feita com metodologia única. O questionário e os parâmetros metodológicos da pesquisa foram formulados ao longo de dois anos por um Conselho Gestor composto por especialistas com experiência em pesquisas de vitimização, juristas, policiais, gestores públicos, secretários de segurança e outros atores do sistema de segurança pública em conjunto com a Coordenação Geral de Pesquisa e Análise da Informação da Senasp.

De acordo com a socióloga Yolanda Catão, integrante do Conselho Gestor, a primeira pesquisa de vitimização realizada no Brasil foi feita no Rio de Janeiro em 1992, coordenada pelo Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud). Desde então, foram realizadas 27 pesquisas, a maioria no Sudeste, mais especificamente no Rio de Janeiro e São Paulo.

“É praticamente impossível comparar os resultados das diversas pesquisas em razão das diferenças metodológicas, principalmente no que se refere ao desenho da amostra e do questionário. Outras diferenças dizem respeito ao tipo de respondente (chefe do domicílio ou vítima), ano de referência e população alvo”, explica.

Segundo a pesquisadora, o levantamento permitirá conhecer as características da vítima e do infrator, percepções sobre segurança, impacto do crime na vida da vítima e grupos de risco, fornecendo informações fundamentais para o planejamento e execução de políticas de segurança mais precisas e eficazes.

Yolanda acrescenta que os resultados, comparados com as estatísticas baseadas nos registros de ocorrência, permitirão identificar o grau de subnotificação e sub-registro dos diferentes crimes, ou seja, crimes não reportados à polícia ou reportados, mas não registrados pelo órgão policial.

“Os resultados permitirão analisar e comparar os resultados obtidos nas diversas unidades da federação, estabelecendo ações de segurança diferenciadas e mais apropriadas para cada região. Ela fornecerá subsídios em âmbito nacional, estadual e municipal para os formuladores de políticas públicas e os operadores da justiça criminal, possibilitando o planejamento e execução de políticas de segurança pública baseadas em dados qualificados e não em ‘achismos'”, diz.

A pesquisadora frisa que o Conselho Gestor participou de todas as etapas da pesquisa, desde a elaboração do questionário até o edital de licitação. Ela conta que o questionário foi exaustivamente trabalhado em reuniões sucessivas, levando em conta experiências de pesquisas de vitimização realizadas anteriormente.

“Como se trata da primeira pesquisa nacional de vitimização foi necessário construir nova metodologia. Para o plano de amostragem, várias reuniões foram feitas, contando com a participação de um especialista em plano amostral, uma vez que era fundamental que os resultados da pesquisa fossem representativos para toda a população”, detalha.

Yolanda ressalta ainda que, para a seleção da empresa responsável pela coleta, escolhida através de licitação organizada pelo Pnud, vários critérios técnicos foram considerados e pontuados como, por exemplo, experiências em pesquisas de grande porte (visto as diversidades regionais e a dimensão do país), perfil dos coordenadores e supervisores, entre outros.

O Conselho optou por trabalhar com dois questionários, um nacional e outro internacional, gerando dois bancos de dados. O questionário  internacional contém 20 perguntas elaboradas há mais de 20 anos pelo Instituto de Investigação Inter-regional de Crime e Justiça das Nações Unidas (Unicri) e permitirá que sejam feitas comparações com dados de outros países. A cada 20 questionários nacionais, os pesquisadores aplicarão um internacional. Ninguém responderá aos dois.

Edital

para novas pesquisas

Para permitir que pesquisadores, universidades e institutos de pesquisa analisem os resultados da pesquisa e aumentem a produção acadêmica baseada no banco de dados gerado por ela, a Senasp planeja lançar um edital de um concurso de pesquisas aplicadas.

Esta perspectiva anima o sociólogo Gláucio Soares, do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iupperj/Uerj), também membro do Conselho Gestor. Para ele, uma pesquisa nacional de vitimização não é apenas uma contagem de crimes, devendo ser usada para produzir muito conhecimento. Segundo Soares, um questionário bem construído, rico e variado abre incontáveis possibilidades analíticas – todas as variáveis podem ser relacionadas umas às outras.

“Pesquisas como essa permitem inserir o crime e a vitimização num contexto de relações com outras variáveis, com atitudes em relação a instituições, com traços de personalidade, com estatus socioeconômico e classe social, idade, sexo, religião, todo um universo de possibilidades analíticas”, afirma.

Para Soares, a pesquisa “é um passo importantíssimo tanto para o conhecimento do país, quanto para a redução do atraso cultural em que ainda nos encontramos em relação a alguns países do chamado Primeiro Mundo.” Ele teme, entretanto, que o imenso potencial da pesquisa seja limitado pela escassez de professores e alunos qualificados para trabalhar com dados quantitativos no país, e espera que o concurso estimule o avanço.

(Envolverde/Comunidade Segura)

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