Pós-feminismo através de Judith Butler

Revista Estudos Feministas

Print version ISSN 0104-026X

Rev. Estud. Fem. vol.14 no.2 Florianópolis May/Sept. 2006

doi: 10.1590/S0104-026X2006000200018

RESENHAS

 

Pós-feminismo através de Judith Butler

 

 

Justina Franchi Gallina

Universidade Federal de Santa Catarina

 

 

Judith Butler: introducción a su lectura. 
FEMENÍAS, María Luisa. 
Buenos Aires: Catálogos, 2003. 208 p.

Judith Butler: introducción a su lectura é uma obra densa, argumentativa e bastante crítica. Densa e argumentativa porque María Luisa Femenías1expõe o pensamento de Butler e vai buscar nas fontes teórico-filosóficas da autora a utilização e a pertinência de determinados termos. Crítica, pois há um interesse contínuo de Femenías em apontar os possíveis equívocos e interpretações ‘incorretas’ de Butler acerca de alguns conceitos filosóficos.

Inicialmente Femenías traça uma breve trajetória acadêmica da autora, destacando que seu interesse repousa sobre as orientações filosóficas que influencia(ra)m a norte-americana. O primeiro capítulo dedica-se à parte militante de Judith Butler, ressaltando sua compreensão do feminismo enquanto crítica filosófica e como movimento social que possui incoerências dentro de seus próprios pressupostos. Femenías esboça um panorama geral de duas vertentes do movimento feminista, uma denominada pós-moderna (definida como uma crítica às estruturas profundas da sociedade e a certos binarismos restritivos do pensamento) e outra designada feminismo ilustrado (fundamentado na busca da ‘verdadeira’ universalidade). Butler pretende identificar-se com um modelo mais polêmico e ousado que a vertente pós-moderna, o qual muitos/as denominam pós-feminismo. Em sua análise crítica, sustenta que nas duas vertentes alguns binarismos ainda são mantidos sem serem questionados. Assim, posiciona-se contra o feminismo ilustrado, assume genealogicamente os preceitos de autores/as que trabalham com o giro lingüístico, tanto da escola inglesa (Austin, Searle) quanto da francesa (Derrida, Deleuze), e adota algumas posturas da fenomenologia existencialista (Sartre, Merleau-Ponty). Butler aponta a falsa estabilidade da categoria mulher e propõe buscar um modo de interrogação da constituição do sujeito que não requeira uma identificação normativa com o ‘sexo’ binário.

Femenías adverte a dificuldade de leitura dos textos de Butler que são, ao mesmo tempo, muito difundidos e pouco compreendidos dada a densidade e falta de acessibilidade a um texto filosófico ‘duro’. Nesse livro a autora detém-se principalmente sobre três eixos da obra da norte-americana: a herança do pensamento filosófico hegeliano-existencialista e sua referência à Simone de Beauvoir, a crítica psicanalítica e foucaultiana em relação à constituição do sujeito e a interpretação original que a autora faz da tragédia Antígona, de Sófocles.

O capítulo segundo faz menção à Simone de Beauvoir que, de acordo com Femenías, não foi compreendida por Butler em sua vinculação fenomenológica e existencialista. Alega que o grande equívoco de Butler é pensar que Beauvoir seria uma leitora e seguidora acrítica da fenomenologia e metafísica sartreana.2 Femenías questiona Butler quando esta diz que a francesa incita as mulheres a buscarem a condição de sujeito de uma maneira existencialista, ou seja, lhes propõe que se tornem sujeitos masculinos.3 Femenías advoga, por sua vez, que Beauvoir pensa em um sujeito universal que abrange tanto homens quanto mulheres. Contudo, a crítica mais contundente que Butler faz a Beauvoir é a da crença na existência de uma metafísica da substância, ou seja, que há um sujeito prévio a toda escolha de gênero possível (um proto-sujeito).

A diferença fundamental entre ambas é que, enquanto Beauvoir trabalha com a idéia de dimorfismo sexual, Butler acredita que não só a anatomia não dita mais o gênero como também a anatomia não põe limite algum ao gênero (a anatomia já não é o destino). No entanto, Butler ressalva que, ao apontar a natureza do corpo somente como superfície de uma invenção cultural, Beauvoir abriu portas para uma interpretação radical de gênero – que não chegou a explorar.

Sexo e gênero são intercambiáveis para Butler, pois ambos estão imbricados nas marcas dos constructos sociais. Dizer que o gênero existe é pensar e aceitar as normas culturais que governam a interpretação dos próprios corpos. Nesse sentido, expõe que Beauvoir possui uma concepção biologicista do gênero que não a deixa trabalhar com outras possibilidades além de homem e mulher. Para Butler, o sistema sexual binário impõe modelos dados de existência corporal (gerados pela metafísica da substância) e manter essa divisão só tem significado porque há interesse cultural nisso.

Muitos/as teóricos/as criticam-na pois defendem que o sexo é um feito primitivo que não se transforma pelo voluntarismo performativo, como parece sustentar a autora. É que para Butler, na busca pela constituição do eu, inventam-se uma identidade e uma coerência que não são senão ficcionais. Assim surgem os gêneros paródicos. Cada re-escritura, cada paródia implica uma abertura para uma liberdade de constituição de um sujeito. Cada interpretação origina uma diferença.

Sexo e gênero não são características descritivas nem prescritivas e tampouco possuem uma estabilidade natural. Então não há identidade de gênero anterior as suas performances. Só o que há é o disciplinamento do desejo que direciona a ‘lógica’ de uma atração binária dos ‘opostos’. Se for desarticulado o caráter natural do binarismo sexual, os sexos/gêneros podem manifestar-se performativamente pois o corpo já não será mais um dado biológico irredutível e sim um aporte subsidiário.

Para Butler, a representação política e lingüística já apresenta duas opções (homem e mulher), nas quais os sujeitos devem conformar-se. Somente os sujeitos construídos/conformados de acordo com as normas seriam representados politicamente. Por isso as mulheres não devem pleitear o ingresso na categoria de sujeito (já que, como Foucault, acredita que o poder cria os sujeitos que o vêm representar) e sim transgredir os critérios dessa regulação política e de representação. No entanto, reconhece a necessidade estratégica de manter a categoria mulheres, por imperativo da política feminista.

No terceiro capítulo, Femenías pondera que Butler defende que a noção moderna de sujeito está tão vinculada à noção de dualismo sexual que só se pode falar signif

icativamente em nome de sujeito masculino. A autora segue a linha foucaultiana ao manter que o discurso é constitutivo, produtivo e performativo na medida em que o corpo recebe uma insígnia de sexuado em um determinado momento histórico, de modo a sustentar os modos institucionalizados do controle, principalmente através do controle do desejo. A saída para não ficarmos presos/as nessa lógica é proliferar as mais diversas paródias em relação ao sexo/gênero/sujeito/desejo, o que resultaria em corpos dinâmicos e instáveis, que seriam o produto de uma fantasia – entendida por Butler como liberdade.

Butler trabalha com a idéia de sujeito como uma categoria lingüística, como uma estrutura em formação. Para ela, nenhum indivíduo torna-se sujeito se não foi antes sujeitado ou passou pelo processo de subjetivação. A autora sente-se contemplada com a noção de sujeito inovador,4 desenvolvida por Kristeva, o qual transgride, através do discurso, as normas vigentes e propõe práticas que nos permitem pensar em mudanças reais. A partir dessa idéia, Butler abandona o entendimento de sujeito com uma identidade fixa, coerente e contínua. Trabalha com a perspectiva de identificação, vinculada à fantasia. Essa variabilidade performativa (as identificações do eu realizam desejos e operam performativamente segundo a ordem da fantasia) pressupõe o exercício da liberdade e é capaz de gerar inúmeras possibilidades de identificações de gênero.

A identidade é, para Butler, um ideal normativo, um conjunto de características que estabelecem uma continuidade através do tempo, a partir de práticas regulatórias que marcam a divisão sexo/gênero, a coerência interna dos sujeitos e a auto-identidade da pessoa. “La identidad es outra ficción de la metafísica de la sustancia, un efecto artificial más que se viste de naturalidad” (p. 84).

No derradeiro capítulo do livro, no qual Femenías discute a interpretação butleriana da clássica tragédia Antígona, de Sófocles, a autora propõe-se a revisar a relação entre parentesco-família e Estado, questionando o seguinte: pode haver Estado sem o suporte das mediações das relações familiares? E pode haver parentesco sem Estado? Butler se contrapõe às interpretações que Lévi-Strauss, Irigaray e Lacan fizeram do texto e sugere uma releitura de Hegel, afirmando que as relações entre irmãos não é livre de desejo, sendo constituída por desejo de reconhecimento do outro.

Seguir a linha cartográfica da leitura de Butler proposta por Femenías não exime o/a leitor/a de consultar seus originais, como adverte a autora. Entretanto, não se pode negar que esse é um trabalho de fôlego e dedicação, pois, além de Femenías ter lido as obras de Butler, revisitou igualmente muitas das obras citadas por ela e discutiu a pertinência da utilização de determinados conceitos e interpretações em seus textos. No entanto, parece-me que em alguns momentos a autora perde-se tentando mostrar sua erudição filosófica, ‘esquecendo’ seu foco de trabalho.

Femenías conclui o livro dizendo considerar a obra da filósofa norte-americana em constante gestação, o que obriga que se chegue somente a conclusões provisórias. Entre seus apontamentos está o de que a proposta política e multicultural de Butler exige uma reelaboração que acredita ser possível dentro de pouco tempo, pois ressalva que a autora está sempre dialogando e, mais recentemente, o tem feito com as chamadas ‘novas esquerdas’.

Femenías não corrobora com a supressão do dado biológico da categoria mulheres (o que, segundo ela e muitas/os outras/os autoras/es, cairia em um feminismo sem mulheres) e critica a posição ‘estreita’ e ‘revisável’ de Butler, para a qual só parece existir possibilidade de transformação na ordem social a partir de um campo que não esteja ligado às categorias homem e mulher. Queer é o exemplo de ruptura, ressignificação e transformação política que nos traz a norte-americana. A política queer refere-se a uma corrente de pensamento para a compreensão da diversidade de sexualidades e expressões culturais que tem na resistência a um enquadramento identitário seu foco de estudo. “Esto obedece, según Butler, la ruptura de la lógica del domínio y la reapropriación em clave positiva de las condiciones y de los performativos implicados” (p. 133).

 

Notas

1 Doutora em Filosofia, é professora e pesquisadora do Departamento de Filosofia da Universidade Nacional de La Plata, Argentina.

2 Segundo Femenías, Beauvoir segue mais os preceitos fenomenológicos expostos por Merleau-Ponty e não por Sartre.

3 Dentro do pensamento existencialista somente os homens podem atingir o status de sujeito pleno e conquistar a transcendência. As mulheres, por sua vez, já nascem dentro de um modelo limitado de prescrição que as impede de constituírem-se enquanto sujeitos, sendo consideradas sempre o outro do sujeito universal masculino.

4 Esse sujeito inovador seria quase o sujeito transgressor pensado por Butler, não fosse a restrição de Kristeva somente às práticas poéticas como possibilidades transgressoras do discurso, ignorando sua dimensão política.

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