Laerte: vestir-se de mulher é uma atitude política

16.12.2010 | Texto por Diogo Rodriguez Fotos Clarice Machado – revista TRIP

PARADOXO DE SALTO ALTO. O cartunista Laerte, sobre se vestir de mulher: “É uma emoção como saltar de paraquedas”


Clarice Machado

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Laerte Coutinho está vestido de mulher e todo mundo sabe disso. Sabemos também que ele compra suas roupas em brechós na rua Teodoro Sampaio. Que gosta de fazer as unhas e de salto médio nos pés. E que ele, sim, tem uma namorada. O que ainda não ficou claro, apesar de todo o rebuliço causado por suas aparições com o novo visual, é o porquê de gostar de esmaltes, sapatos femininos, lingeries.

Fruto de um processo que começou em 2004 e só foi se realizar plenamente em 2009, a atitude de Laerte confunde porque embaralha a percepção dos papéis de homens e mulheres. Laerte é um paradoxo de salto alto.

Querendo saber mais sobre isso, a Trip não só convidou Laerte para uma entrevista, como também chamou dois especialistas para conversar sobre que está por trás de suas roupas femininas. O filósofoJosé Rodrigo Rodriguez (pesquisador do Centro das Brasileiro de Análise e Planejamento, CEBRAP, e da DIREITO GV, coordenador da pesquisa “Mulheres e Políticas de Reconhecimento do Brasil”, financiada pelo Ministério da Justiça) e a antropóloga Heloísa Buarque de Almeida (pesquisadora da USP, do centro de estudos feministas Pagu, da Unicamp e especialista em questões de gênero na mídia) participaram da entrevista.

Em um papo que durou quase duas horas, Laerte admitiu uma certa dose de política na sua atitude e explicou como define seu gênero. Mas ficou claro que Laerte é mais do que um militante de qualquer causa específica. Ele vive essa questão teórica no corpo e na cabeça. A formulação das suas ideias é similar ao que diz a filósofa americana Judith Butler, talvez a mais importante crítica do feminismo tradicional e autora do respeitado livro Gender Trouble. Butler afirma que a formação das identidades sexuais e de gênero é muito mais complexa do que a que a sociedade ocidental geralmente considera como normal, a heterossexualidade. Para ela, os comportamentos sociais reforçam esse modelo e excluem outras possibilidades de lidar com o desejo e o corpo, como essa que Laerte está apresentando. Como seus quadrinhos transcederam o humor, Laerte parece optar por fugir de definições exatas de como um homem deve se comportar, ser e desejar.

Clarice Machado

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José Rodrigo Rodriguez (esq.) e Laerte

Existe um momento no qual você se deu conta de que queria se vestir de mulher?
Foi em 2004. Joguei a tira do Hugo na qual ele se vestia de mulher gratuitamente, não estava fugindo da máfia nem nada. Ele simplesmente se veste de mulher e sai à rua. Isso chamou a atenção de uma crossdresser, de uma travesti, que me contactou por e-mail e disse “será que você não tem isso também?”. Funcionou como uma porta aberta. Antes disso, são coisas difusas, obscuras. Foi em 2004 que eu percebi que essa ideia estava desvinculada de qualquer fantasia, era uma vontade mesmo. Vontade de frequentar a área cultural do outro gênero, o reservado das mulheres.

 

Qual foi a primeira coisa que você fez a partir do momento em que percebeu que queria se vestir de mulher?
Levei uns cinco anos. Fiz a minha primeira montagem em 2009. De 2004 a 2009 foi um período de confusão, preocupação, busca, dúvida; processos. No final de 2008 decidi que era isso o que eu queria. Busquei na rede uma saída, uma possibilidade concreta e achei o estúdio da Dudda Nandez [estúdio especializado em vestir, maquiar e fotografar crossdressers]. Fui muito bem-

recebido, fiz a minha primeira montagem lá. Depilar foi a primeira revelação, é compreender seu corpo sem a roupa do pelo.

É muito diferente?
Totalmente. Tudo, a sensação da roupa sobre a pele, do corpo sozinho. É como se eu estivesse vendo outro corpo.

Como você se sentiu quando percebeu isso? Ficou animado, ansioso?
Isso tudo é verdadeiro: as novas possibilidades, o encantamento, a excitação com tudo isso. Como também é verdadeiro o temor, um medo de entrar no palco, que eu já não sinto. Mas sair de vestido, com unha feita e tudo, é como pisar no palco.

Como você se sentiu quando se viu montado pela primeira vez?
Um tipo de emoção parecida com saltar de paraquedas.

Você já saltou de paraquedas?
Não. Mas eu sei que é isso. Quando você salta de paraquedas, não tem mais medo de cair, está entregue à maravilha de voar. O medo de cair talvez apareça nos instantes finais, medo de que não abra o paraquedas. Todo mundo que voou relata esse tipo de coisa. Depois que você pula, some o medo de cair, de esborrachar. Foi mais ou menos isso. Na primeira vez em que me vesti, minha vontade era abrir a porta e sair. O estúdio da Duda era na Praça do Arouche. A hora em que eu fui não era muito boa [risos].

Era noite?
Não, era dia. De noite é mais seguro. Ela disse: “Não, não vai. Eu sei que deu vontade, mas não vá”.

Laerte Coutinho

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O que te incomoda no vestuário masculino?
É um dado que pede muito pouco da sua vivência ativa. Aquilo é o mundo que se espera de um homem. O cara extremamente vaidoso vai escolher um modelo de terno “xis”, que tenha tal e tal caimento, mas basicamente é um terno! É aquela porcaria, calça e paletó, fim de papo. O universo de variações é uma pulga perto das possibilidades do mundo feminino. O efeito que fazia em mim era gerar uma atitude passiva em relação à roupa. Eu pensava em roupas “práticas”. “Quero uma calça simples de usar, de botar, uma camiseta, um pulôver, um moletom, tênis”. Rapidamente eu caía nesse uniforme masculino largado. Não te desafia mais. Você passa a querer só que a roupa esteja limpa.

O fato de ser mais velho tem a ver com a liberdade de fazer isso?
Não faço ideia. Você quer dizer que ninguém me canta? [risos].

Não. Liberdade de sair montado na rua, de ter coragem de fazer isso?
Não sei dizer. Talvez tenha, talvez não. Sou um cara lento para tomar decisões. Depois que eu faço, penso: “Por que eu fiquei dez anos nesse emprego?”. “Por que demorei anos para tomar uma decisão em relação a tal e tal coisa?”. Esse sou eu, mas não sei dizer. Pela idade que eu tenho não faz sentido ser mais livre. Não pela idade. Talvez pela condição: filhos crescidos, sem esposa. Me sinto dono do meu destino, mas não pela idade, mas pelos processos que eu passei.

Depois que seu filho morreu, você parou de fazer personagens e se dedicou a quadrinhos mais poéticos. Hoje, o Hugo voltou como Muriel. Você está pensando em voltar a fazer personagens?
Não muito. Mantenho o Hugo pela questão de eu me travestir. É um personagem que me ajuda refletir, levantar algumas bolas. Como ele foi a pessoa que me conduziu para esse mundo, eu soltei isso como reconhecimento. Ás vezes saem tiras meio bobas, mas também saem coisas que me ajudam a pensar e me fazem pensar. Esse processo de travestilidade é um caminho no escuro, não tem guias. Cada pessoa é representativa de um tipo de gênero. A quantidade de tipos de expressão de gênero é quase uma impressão digital. Embora exista uma linguagem de frequentar o mundo feminino, cada um tem jeito de fazer isso. Resolvi deixar o Hugo me ajudar, mesmo com o desenho de narigão, essas coisas.

Essas tiras da “Ilustrada”… Você usou a palavra “poético”. Acho que pode ser uma boa palavra para explicar porque eu soltei a franga. Não estou mais fazendo piadas nece

ssariamente. Estou buscando uma linguagem, um lance que é parecido com o que a poesia busca num sentido em que transcende a representação tradicional, a função tradicional que as palavras e a gramática tem. Nas tiras eu tenho sentido presenças e possibilidades parecidas com essas. Faço as tiras e vejo que às vezes elas foram para lugares inesperados.

A morte do meu filho funcionou de várias maneiras. Uma delas foi me bloqueando do processo em que eu estava de me travestir. Outra delas foi me aproximando dessa possibilidade, porque muitos véus caíram. Acabei percebendo que muitas coisas são convenções, estruturas frágeis, fantasmas, não é nada real. As objeções que eu fazia em relação a isso, especificamente, apareceram como tolas. Isso também funcionou em relação ao meu trabalho. O modo de trabalhar fazendo aquele humor mecanicamente conhecido e clichê de piada, o desenho de humor convencional com olhões, narigões, isso tudo me pareceu sem sustentabilidade depois que o ciclo se cumpriu. Fiz aquilo por trinta e tantos anos. Precisava ir para outro lugar.

Talvez a roupa feminina tenha a ver com bagunçar as expectativas de gênero.
Essa é uma convenção muito forte. Muito mais forte do que eu pensava. Eu vejo que é um pensamento que também frequenta a minha cabeça. Não que eu estou chegando em Marte e resolvi me vestir de um jeito e está todo mundo estranhando. Eu sou igual àquelas pessoas. Estou entrando num caminho no qual elas não estão, mas estamos vivendo o mesmo problema. O problema em relação à política de gênero, códigos, tabus, eu também faço parte disso. Até hoje essa coisa passa pela minha cabeça. Preconceitos. Não virei outra pessoa

“O problema em relação à política de gênero, códigos, tabus, eu também faço parte disso. Até hoje essa coisa passa pela minha cabeça. Preconceitos. Não virei outra pessoa.”

Dá para pensar isso em termos políticos, não?
É, mexe. Até dentro do fórum [de crossdressers do qual participa] eu acho que movimenta o debate. O fato de eu ser uma pessoa que assumo que me visto, isso talvez seja inédito. Lá dentro, a gente tem uma identidade feminina. Eu não gosto de ficar misturando. Não conto em entrevistas como me chamo lá dentro. Mas lá, todo mundo sabe. E não mudou nada. Porém, mudou a natureza do debate. A possibilidade dessa interação com o mundo real é uma novidade dentro do contexto dos crossdressers,porque eles são travestis que precisam manter uma determinada vida secreta. O que eu estou fazendo é adotando um modo de vasos comunicantes. Me visto desse jeito aqui, ali [risos].

Um professor universitário, advogado, se assume isso em público, vai ter uma barreira profissional muito forte…
Sim, claro! Não estou dizendo que as pessoas são covardes. O que se passa é que as travestis que estão na rua, são a imagem como o preconceito vê.

As prostitutas…
Nem todas são prostitutas. São travestis, transgêneros, e tiveram suas vidas afuniladas para esse tipo de “sevirol”. Você jamais vai ser professora na vida, se você quiser ter um salão de cabeleireiro vai ter que dar para metade da cidade. São pessoas que foram mergulhadas numa barra mais pesada por causa do contexto social onde elas vivem. Não é fofinho que nem eu. Eu viro para os meus filhos, meus pais, minha namorada e falo: “Ah, acho que vou me vestir de mulher, beleza?”. Rola um entranhamento, mas eu sou aceito. Essas pessoas que, muito jovens, enfrentam essa barra, são expulsos de casa, são violentadas, brutalizadas, viram-se na prostituição por falta de escolhas, mas tem uma coragem muito grande de viver sua travestilidade plenamente e abertamente. O que não se passa com os crossdressers. Sem querer colocar um juízo de valor pessoal, [falar em] coragem, covardia, eu acho que as crossdresserssão travestis que não tem essa existência pública. Algumas pessoas argumentam que a travesti vive 24 horas, a crossdresser só quando quer. Não é bem verdade. Se houvesse esse trânsito livre, muito provavelmente as travestis não se vestiriam o tempo todo ou as crossdressers se vestiriam muito mais, não ficariam reduzidas a sessões privadas. Se existe algum trabalho político nessa área, é quebrar códigos de gênero, fazer as pessoas refletirem e debater esse tipo de coisa.

“[sobre travestis] Não é fofinho que nem eu. Eu viro para os meus filhos, meus pais, minha namorada e falo: ‘Ah, acho que vou me vestir de mulher, beleza?’. Rola um entranhamento, mas eu sou aceito”

E qual é o papel da mídia na construção do gênero?
A mídia é meio apavorante. Conduzir uma conversa, um debate como a gente está fazendo agora, não é uma coisa comum. Normalmente, as pessoas são apresentadas em programas, jornais, reportagens, como uma curiosidade: “Veja só! Ele é homem, mas ele sai por aí, na loja ele vai no provador de mulher e experimenta um vestido. Vejam! Olhem!”. Pode ter um sentido positivo nisso, mas, na essência, o que aquele órgão de imprensa está fazendo é uma manutenção do status quo. Ele não está agindo no sentido de transformar nada, ele é conservador.

Clarice Machado

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Laerte e Heloisa Buarque de Almeida

Quando você vai para a esfera pública, se arrisca, questiona isso publicamente, começa a mexer com uma série de representações, questões e modos de comportamento que estão cristalizados.
O modo como os meios de comunicação representam esses pensamentos cristalizados também é interessante porque ele é sempre conservador, procura tranquilizar o leitor. Uma matéria sobrecrossdressers numa revista feminina, diz que isso é uma coisa normal: “Querida leitora, se o seu marido começar a mexer nas suas calcinhas, não entre em pânico. Não quer dizer que ele virou uma bichona, ele só está experimentando” [risos]. Não fala nesses termos, mas é isso que está sendo dito no subtexto. O que é interessante, porque é verdade, não quer dizer mesmo. Mas, ao mesmo tempo o sub-subtexto é o seguinte: “O normal é o heteroerotismo”. Tudo que é desvio é uma exceção. “Você, querida leitora, se seu marido é gay, então salta fora”. Tem um livro de duas jornalistas que saiu agora que procura alertar para esse tipo de coisa: sinais de que seu marido no fundo é gay, portanto, você está num casamento do qual deve fugir. Na capa, tem um casal na mesa tomando café, a mulher meio neutra, e o cara na frente dela, tomando café e por baixo do pano da mesa você vê uma perna com um sapato de salto. Quer dizer, está dizendo que o cara é travesti, crossdresser, coisa assim, portanto, gay.

 

O pessoal não sabe muito o que perguntar para você. Onde é que você se enquadra nisso?
É uma tentativa de fechar esse pequeno furacão dentro de alguns compartimentos: sexualidade, parafilíacos. É muito grande. Vamos baixar esse balão. Por quê? Porque ele está numa área que ninguém entende, gênero. Existe, é a grande lição que a gente explica para as crianças; Você é menino, portanto seu caminho é esse, você é menina, seu caminho é aquele. Não é só questão de vestimenta, mas de uso do corpo. A minha irmã é fisioculturista, além disso é bióloga, socióloga. Ela me diz que as meninas são estimuladas desde cedo a não forçar seus corpos, porque elas vão ficar feias. Isso é uma violência contra o uso do corpo na medida em que os meninos estão se soltando, se expandido, se expressando fisicamente. Eles estão sendo ensinados que eles podem fazer isso e as meninas estão sendo ensinadas que não é adequado. O reflexo disso no uso do corpo no adulto é evidente. Não é só uma questão de roupa, de expressão da sua vontade. As pessoas estranham que tem pouca mulher na política e fazendo charge, cartum, humor de um modo geral. Isso tudo tem um motivo. Elas estão sendo ensinadas desde pequenas. Não tem nenhum motivo real que impeça elas de fazer qualquer coisa que um homem faz.

“Ela [a irmã] me diz que as meninas são estimuladas desde cedo a não forçar seus corpos, porque vão ficar feias. Isso é uma violência; os meninos estão se soltando, se expandido, se expressando fisicamente. Eles estão sendo ensinados que eles podem fazer isso; e as meninas, que não é adequado.”

A gente pensa assim: a criança se tornou homem ou se tornou mulher e aquilo se cristalizou e nunca mais vai mudar. O pai fica tranquilo: o filho arrumou uma namorada e tudo bem.
As possibilidades de surgir coisa nova na vida de uma pessoa são muito grandes. E é meio aleatório. O sujeito pode passar a vida inteira completamente tranquilo em relação a uma série de pontos e conflitos que são reais, permanecem quietos, na gaveta. Para outros, vem, e sabendo deles, o sujeito sufoca eles. E também é possível que ele dialogue com isso.

Era uma coisa que você vivia e reprimia?
Não é muito claro para mim a presença que esse negócio de vestir roupa de menina ou de mulher tinha. Nos clubes e nas rodas que eu frequento é quase unânime, todo mundo fala: “Eu tinha seis anos de idade…”. Praticamente unânime, cinco, seis anos, nessa fase da infância. É a idade em que o cara alcança a gaveta [risos]. É em muita tenra idade que isso acontece para todas e eu fiquei pensando: “Ué, para mim não foi”. Pensando retrospectivamente eu vejo coisas. Gostava de me fantasiar de grego no carnaval porque eu usava saiote, túnicas. De alguma forma, a ideia de usar botas de faroeste com salto – que eu equiparava com os calçados femininos. Mas não era nada claro, não. E nebulosa ficou até a adolescência. Ideia clara, só recentemente, adulto, quase idoso.

A sua identidade quando você se vestia só de homem era tão hétero…?
Não. A bissexualidade eu descobri faz bem mais tempo, na minha adolescência. Já descobri que eu não era u

m heterossexual convicto.

Essa masculinidade tradicional é muito opressiva?
É sim. O fato de eu ter descoberto na adolescência não quer dizer que eu tenha resolvido o assunto. Foi um problema na vida adulta quase inteira, não é tranquilo até hoje.

Você comentou que alguns jornais estranharam.
Os jornais que me entrevistaram, o modo como a imprensa pauta este assunto, acho que é típico dostatus quo cultural. Em primeiro lugar, a palavra “travesti” é afastada assim que possível. Em segundo lugar, a palavra “crossdresser” é transformada numa espécie de moda.

Uma tribo.
Exatamente. Tem a tribo, assim como tem os jovens que se vestem como ingleses do século XIX.

Clarice Machado

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Você está usando a palavra “travesti”, o que é muito interessante de se pensar, porque no Brasil, o travesti supõe uma interferência corporal, digamos, tomar hormônio para desenvolver seios, colocar silicone.
Supõe falsamente. Faz parte do modo preconceituoso de encarar o travesti. E é o modo classista também. Travesti é quem fica o tempo inteiro montada e transforma o corpo; crossdresser não. No seio dos gruposcrossdressers… Seio [risos]. Existem várias pessoas que se hormonizam. Várias mesmo. Sem orientação médica, acontece, sofrem problemas de saúde. Se você pinta a unha coma intenção de ficar feminina, você está transformando seu corpo. Daí, afinar, a cintura, tomar a cintura, é só uma questão de grandeza. É como a coisa da barba, depilação a laser é quase o passo seguinte, depilar o corpo, tudo isso são transformações corporais. Muitas travestis que estão na rua e fazem parte dessa visão estereotipada que se tem delas, não tem seios. Estão ali ccom o corpo que nasceram. Tem de tudo. Fazer uma coluna de regras para travestis e crossdressers, o que é um, o que é o outro, é falso, não se sustenta. Se você raciocinar sobre essas diferenças todas, você vai ver que crossdressers são travestis, uma espécie de subgrupo.

Se a gente fizer uma coluna para hétero e não-hétero, também não se sustenta.
Uma vez uma travesti chamada Carla Melo desenvolveu uma teoria comprida pra cacete. Em resumo, ela se declara uma travesti quântica, ou crossdresser quântica, porque a possibilidade de migrar de uma coisa para a outra, de vestir-se “masculinamente”, ter uma existência masculina ou vestir-se totalmente “femininamente”, ter uma existência feminina, é o que interessa a ela. Por isso, ela defende a distinção entre crossdresser e travesti. Ela diz que chamar crossdresser de travesti, enquanto ponto de vista de luta política, é válido, mas no ponto de vista dela, ela se considera quântica [risos].

Do ponto de vista político é muito interessante, porque se você pensar existem várias histórias desses movimentos sociais. O que faz o movimento negro nos EUA? Vai positivar o termo que era negativo, “black”. O que fazem as lésbicas? Positivar um termo que era negativo, “lésbica”. Você positivar o termo “travesti”, pegar um termo com conotação negativa e virar para o positivo, é o que você está provocando.
Estou ajudando uma discussão que me parece importante e que eu defendo. Mas ele não é o ponto de vista da comunidade que eu frequento. Não é unânime. Muita gente pensa que travesti e crossdresser são a mesma coisa, e muita gente pensa que não.

O que você pensa desses rótulos?
Rótulos são para a gente trabalhar, acho que tem peso, contexto. Tudo funciona se a gente botar o olho crítico em cima sempre. As pessoas falam em relação a cartuns ou humor, politicamente correto e incorreto, defendendo o incorreto como libertário, justo e certo, e o correto como repressor, autoritário e errado. Eu não concordo. Sei que termos politicamente corretos acabam colados num negócio
que eu acho positivo. Quando os movimentos sociais, que não tinham expressão nenhuma, conseguem se organizar e valorizar seus pontos, suas características, seus problemas específicos e impor essa agenda na mídia, isso não é uma coisa negativa. Se em algum momento isso funciona como repressivo, paciência, foda-se!

“As pessoas falam em relação a cartuns ou humor, politicamente correto e incorreto, defendendo o incorreto como libertário, justo e certo, e o correto como repressor, autoritário e errado. Eu não concordo.”

Agora você está na esfera pública relacionado a essa questão. Você já está sendo rotulado e as pessoas vão te mobilizar, vão te chamar, te citar. Você quer ter um papel ativo nisso?
Essa conversa aqui, por exemplo, é uma resposta que eu quero dar para esse tipo de coisa. Você não sabe o que rolou de convite, é um absurdo. Ratinho, SBT, praticamente toda a imprensa e as televisões: Gazeta, Rede TV!, Cultura. Na Cultura eu fui, no Metrópolis. Me interessam os vários momentos em que é possível rolar uma conversa lúcida. É isso que me interessa agora. Num primeiro momento eu estava dizendo “oi” para todo mundo. E saíram umas coisas que depois eu fiquei pensando: “Pô, não precisava disso”.

Você não se sente à vontade em nenhum dos rótulos?
Travesti, acho. Travesti. Me travisto. Aí é que tá. Eu sou um travesti? Isso é uma forma de fechar o assunto. Eu me travisto. Tu te travestes… [risos]. Eu acho que é isso. A coisa é um processo. Não quero fechar: “Sou uma travesti”. Outra coisa: sou um travesti ou uma travesti? [risos].

Esse negócio de uso das palavras, travestilidade, travestismo. Recentemente eu soube de um cara, uma pessoa chamada Norrie May Welby. Essa pessoa é a primeira pessoa do mundo a não ter sexo. Ela fez uma cirurgia, depois mudou de ideia e, a rigor, ela tem uma genitália híbrida por operação. Ela nasceu no sexo masculino. Mas estando na Austrália, que deve ser o país mais louco do mundo, conseguiu uma identidade onde não tem sexo.

Não tem sexo na carteira de identidade dele?
A primeira pessoa do mundo que não tem sexo nenhum [risos]. Ele tá, ou ela tá construindo possibilidades gramaticais para lidar com esse problema. Tem coisas que ela discute. Deus por exemplo. Não é “it” no inglês, não é uma coisa. Mas o inglês trata Deus como masculino, coisa que ele não é. Seria um espírito puro, sei lá. Mas também não é “ela”. Tem que ter um pronome que não seja “it”, “coisa”, e que não seja “he” ou “she”. Ela está usando “zie”, que usa para si e para Deus [risos].

No seu caso, você sente uma confusão de gente que não sabe se te dá um beijo ou um tapinha nas costas?
Existe alguma dificuldade de tratamente, se é “senhor” ou “senhora”, mas as pessoas não se enganam quanto ao meu sexo, sabem que sou homem. Ao me verem como eu me represento, às vezes vão direto para o “senhora” por gentileza. Acho muito gentil.

* * *

Para saber mais: Judith Butler (1956) é uma filósofa e professora da Universidade de Berkley, nos EUA. Envolvida com o que se chama de “pós-estruturalismo” fez uma revisão da teoria feminista tradicional em seu mais importante livro, Gender trouble. Neste trabalho, publicado originalmente em 1990, Butler discute como se formam os padrões que definem o sexo e gênero no Ocidente, apontando uma predominância opressora do heterossexualismo que oprime não só as mulheres e os homossexuais, mas outras formas de sexualidade.

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