Mirella Domenich
De Cacheu (Guiné-Bissau) para a BBC Brasil
Um grupo de quilombolas – descendentes dos escravos que fugiram de seus donos no Brasil e fundaram refúgios, os quilombos – está pela primeira vez na África para conhecer a terra de seus ancestrais.
A viagem, financiada pela ONG portuguesa Instituto Marques do Valle Flor e pela União Europeia, começou no último dia 17, em Guiné-Bissau, e termina em 2 de dezembro, em Cabo Verde.
A excursão faz parte do projeto “O Percurso dos Quilombos: da África para o Brasil e o Regresso às Origens”. O grupo de viajantes é formado por 21 quilombolas brasileiros – todos do Maranhão – e cinco acompanhantes.
“O calor com o que nos acolheram deu a impressão de que já nos conhecíamos há milhares de anos, que realmente somos da mesma família”, disse a lavradora e quilombola Maria José Palhano, 50 anos, sobre o contato com os africanos.
“Deu um sentimento de pertencimento, que realmente somos da mesma família e que fomos levados daqui”, afirma ela, que é coordenadora da Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão (Aconeruq), ONG brasileira parceira do projeto.
Deu um sentimento de pertencimento, que realmente somos da mesma família e que fomos levados daqui.
Maria José Palhano, quilombola
De acordo com dados do Conselho Ultramarino, o Maranhão recebeu 31.563 escravos entre os anos de 1774 e 1799, quase metade deles vindos de Guiné-Bissau.
Partilha cultural
A pesquisadora e coordenadora do projeto no Brasil, Verônica Gomes, diz que o objetivo da viagem é de “descoberta e de partilha cultural”, promovendo a proteção, valorização e difusão da cultura quilombola.
“A demanda surgiu dos quilombolas brasileiros, que queriam conhecer suas raízes”, afirma. “A memória, a oralidade, a territorialidade são princípios na vida dos quilombolas, e isso estará registrado para sempre.”
Palhano identificou nos rostos, no gosto da comida, na hospitalidade e na “alegria de viver, mesmo em horas difíceis” as similaridades entre africanos e os brasileiros afrodescendentes.
A visita, segundo ela, veio para reforçar esses laços e essa identidade, assim como para mostrar outras influências que ela ainda não havia notado, como no modo de trabalho.
“Nós trabalhamos em mutirão e percebemos que isso vem daqui, pois nas roças por onde passamos, a forma de trabalho é a mesma, as pessoas se ajudam umas às outras”, afirma.
A visita a Guiné-Bissau começou por Cacheu, no noroeste do pais. A cidade preserva o forte e o porto de onde saíram escravos com destino ao Maranhão, via Cabo Verde.
Os quilombolas visitaram também diversas tabankas, como são chamadas as comunidades rurais na língua crioula de Guiné-Bissau.
Também foram realizadas apresentações culturais, tanto de etnias guineenses quanto dos quilombolas, ao longo da semana em que os brasileiros estiveram no país.
Música e culinária
Para Álvaro Santos, 50 anos, que dirigiu o espetáculo, o tambor de crioula – dança de origem africana celebrada no Brasil em louvor a São Benedito, padroeiro dos negros no Maranhão – é o traço mais marcante da cultura entre os dois povos.
“Ate hoje, seja em uma comunidade quilombola como em umatabanka guineense, o som do tambor e usado para reunir as pessoas, para celebrar”, afirma.
Apesar de não ser quilombola, Santos diz ter reafirmado nessa viagem sua identidade de afro-brasileiro. “O jeito, o modo, a cultura, e as manifestações culturais de modo geral estão em todos nós”, diz. “Não precisei nascer no quilombo, mas precisei me aproximar deles para me sentir mais negro”.
Outra identificação entre Cacheu e Maranhão surgiu pela culinária. O cuxá, prato típico maranhense, tem sua origem na Guiné-Bissau. No país africano, ele é conhecido como baguitche – exceto pela etnia mandinga, que usa o mesmo nome que no Brasil.
“Essa é mais uma prova de que os mandingas estiveram por lá”, diz o diretor-executivo da ONG guineense Ação para o Desenvolvimento (AD), Carlos Schwarz da Silva.
Emoção no porto
Para a “veterana” do grupo de quilombolas, Nielza Nascimento dos Santos, 69 anos, o momento mais emocionante foi chegar ao porto de Cacheu.
“Sempre ouvi falar dos meus antepassados, mas nunca tínhamos tido a oportunidade de chegar ate aqui. Agora vamos poder levar a historia para nossa comunidade, para nosso quilombo”, diz. “Chorei bastante quando começaram a me contar como os escravos eram transportados para o Brasil.”
Depois da visita dos quilombolas, o governo da Guiné-Bissau anunciou que, a partir do próximo ano, irá realizar, coincidentemente com a Semana da Consciência Negra no Brasil, um festival cultural em Cacheu, onde será criado também um memorial da escravatura.
Vários quilombolas relataram o desejo de receber os guineenses no Brasil e de manter contato. “Queremos também ajudá-los, já que a situação aqui é mais difícil do que no Brasil”, afirma Palhano. “Lá, lutamos muito e temos água encanada, energia, escola. Aqui, ainda falta muita coisa.”