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Entrevista com Télia Negrão. Jornalista e Secretária Executiva da Rede Feminista de Saúde
Perto de alcançar seus 20 anos de atividades – que serão completados em agosto de 2011 – a Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos é vencedora da categoria Equidade de Gênero da 16ª edição do Prêmio Nacional de Direitos Humanos oferecido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. O Prêmio será entregue pelo Presidente Lula e o Ministro Paulo Vannuchi, em Brasília, no dia 13 de dezembro de 2010. Nessa edição, a jornalista e Secretária Executiva da RFS, Telia Negrão nos fala um pouco sobre a Rede e seu trabalho no Brasil e no mundo.
Desde quando esta atuando na Rede Feminista de Saúde? Como começou sua carreira?
Télia – Eu me filiei à Rede Feminista em 1996, em 2002 fui coordenadora da regional do Rio Grande do Sul e a partir de 2004 fui integrar o Conselho Diretor da entidade. Minha carreira profissional sempre se desenvolveu no jornalismo, trabalhando em veículos nacionais, como o Jornal do Brasil no final dos anos 70 e em veículos regionais no Paraná e no Rio Grande do Sul. Também atuei como assessora de imprensa por muitos anos. Como ativista de direitos da mulher venho trabalhando desde os anos de 1970, integrando o Movimento Feminino pela Anistia, colaborando para o Jornal Brasil Mulher, fui uma das fundadoras da União Brasileira de Mulheres, ajudei a criar conselhos de direitos no Paraná, assim como as primeiras políticas públicas no estado, a delegacia da mulher, por exemplo. E em Porto Alegre, a partir de 1991, ajudei a criar o Forum Municipal da Mulher, a fundar o Coletivo Feminino Plural e fui a primeira presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre. Em 2006 fui eleita para secretária executiva da Rede Feminista de Saúde, depois de ter sido do colegiado executivo da Articulação de Mulheres Brasileiras e parte da Marcha Mundial de Mulheres. Sempre atuei em vários espaços e aprendi em todos eles. Depois do mestrado em Ciência Política me tornei pesquisadora associada do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher e Gênero da UFRGS e atualmente colaboro como pesquisadora da Flacso/Chile.
Poderia dizer mais sobre o trabalho da Rede no Brasil e no Mundo?
Télia – A Rede Feminista tem uma presença muito disseminada no Brasil, com uma ampla agenda sobre saúde integral das mulheres e direitos sexuais e reprodutivos. Desenvolveu, ao longo dos seus quase 20 anos, linhas de trabalho que não tem se esgotado, mas se renovado, como a comunicação em saúde, capacitação de mulheres para a participação no controle social e outros espaços, a incidência política e o advocacy. Além disso a Rede atua de forma articulada com outras formas de organização da sociedade, tanto de mulheres feministas como outras redes e plataformas sociais. Estas linhas de trabalho e a presença nacional a levam a estar em permanente movimento, pois quando num lugar há momentos de acúmulo, em outros há um extravasamento, então há uma sinergia que não pode ser confundia com inércia. A entidade tem iniciativas, propõe, provoca e é provocada todo o tempo pelas conjunturas. Estamos em vários espaços, como nos conselhos nacionais da mulher e da saúde, no Pacto pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, somos parte das Jornadas Brasileiras pelo Aborto Legal e Seguro e da Frente Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto e muitos outros espaços. Um dos mais significativos atualmente é a Plataforma Dhesca/Brasil, com uma relatoria de direitos sexuais e direitos reprodutivos. Estamos visitando presídios femininos e investigando mortes maternas por abortos tendo como referência os marcos de direitos humanos das mulheres.
Quanto à sua interlocução e articulação internacional, integra a Rede de Saúde das Mulheres Latinoamericanas e do Caribe, entidade criada pelas mulheres que depois vão fundar a Rede Feminista, como a Mazé Oliveira e Betânia Ávila. As duas redes tem matriz muito semelhante, feministas da área de saúde e direitos reprodutivos, que depois incorporam os direitos sexuais. Ambas estão alicerçadas na idéia de direitos humanos das mulheres, lutando pelo fim da violência de gênero, pela legalização do aborto como direito que cabe às mulheres decidir, pela saúde integral como direito humano e de cidadania, mais recentemente incorporou o enfrentamento do racismo de forma mais explicita, assim como os direitos sexuais. Desde a sua fundação a rede integra a Rede Mundial pelos Direitos Reprodutivos e várias campanhas regionais. Uma delas é a Solidariedade Feminista ao Haiti, desde a ocorrência do terremoto em janeiro de 2010.
Quais as campanhas que gostaria de destacar nessa entrevista?
Télia – Já faz dez anos que a Rede assinou a criação da Campanha por uma Convenção dos direitos Sexuais e Reprodutivos, sendo ponto focal no Brasil, considerando que estes são direitos que necessitam ser debatidos com a sociedade em nossa região. As desigualdades sociais profundas se mesclam com as discriminações fundadas em padrões culturais conservadores, exigindo que lutemos coletivamente pelo reconhecimento de direitos no âmbito da OEA. Além disto, a Rede é ponto focal e integra um grupo de apoio à coordenação da Campanha 28 de Setembro pela Despenalização do Aborto, atualmente na República Dominicana. Como todos sabemos, o aborto é uma causa relevante de morte materna e de adoecimento na nossa região, e sua realização em condições precárias e inseguras está ligada à criminalização das mulheres e de sua prática em geral. Mesmo onde há alguns permissivos o acesso é difícil às mulheres pobres, tanto pela falta de políticas públicas como pela forte ingerência das igrejas como obstáculos, configurando violações aos direitos humanos, à justica social e à liberdade das mulheres de dispor do próprio corpo, ou seja, de poder tomar decisões autônomas. Então são várias campanhas América Latina, que se caracterizam pela busca de cidadania e também pela democratização da sociedade no seu sentido mais amplo e profundo, de democratização da vida social, das estruturas que as regem, das instituições, e o campo das idéias.
Fale mais sobre a Campanha Ponto Final, quais os resultados obtidos até agora?
Télia – A Campanha Ponto Final da Violência Contra Mulheres e Meninas surge a partir da Rede de Saúde das Mulheres Latinoamericanas e do Caribe, que há muitos anos vinha coordenando uma ação regional chamada Campanha 25 de Novembro. Ela está acontecendo em quatro países simultaneamente, Brasil, Haiti, Guatemala e Bolívia, onde se desenvolvem ações nacionais e experiência locais de prevenção primária da violência contra as mulheres. Este é um enfoque metodológico pouco utilizado em nossa região, em que as estratégias tem sido mais focadas no advocacy por políticas públicas e trabalho com mulheres. A Ponto Final trabalha no eixo da prevenção e eliminação da violência, promove a reflexão sobre os padrões culturais que levam à aceitação e a permanência da violência de gênero como algo natural. Ao envolver com mulheres, homens, jovens, crianças, educadores, em nível comunitário e ao mesmo tempo fazer a ampla difusão regional e nacional de mensagens contrárias a esta forma de violência, produz uma mobilização social muito interessante, que se alimenta mutuamente e passa a idéia de que é possível acabar com a violência. Temos uma experiência piloto em Porto Alegre e realizamos o lançamento da Campanha em 14 estados brasileiros e no distrito federal, com altas autoridades. No próximo ano esta experiência será aprofundada e expandida.
A que atribui o prêmio conferido pela Secret
aria de Direitos Humanos na categoria Equidade de Gênero?
Télia – A Rede possui um capital político construído ao longo dos seus 20 anos, tendo à frente sempre mulheres muito valentes no seu colegiado, cada uma com suas características, mas mulheres convencidas sobre a estreita relação entre o projeto societário feminista com a garantia dos direitos humanos. Considero que há um coroamento e também um reconhecimento, numa conjuntura difícil para os direitos sexuais e reprodutivos no Brasil e em toda a região. Penso que é também o resultado de um trabalho de transparência institucional e política e de visibilidade no tratamento dos direitos humanos das mulheres. Eu pessoalmente considero este o momento mais importante na minha vida de ativista feminista e quero transferir este sentimento a todas as defensoras de direitos humanos das mulheres do Brasil.
Quais as perspectivas futuras para a Rede Feminista de Saúde?
Télia – Queremos que muitas mulheres se filiem à rede e que ela possa ser cada vez mais horizontal, transparente e auto sustentável, e que as filiadas aprofundem seu pertencimento. A legitimidade desta rede a coloca com grande responsabilidade para por em discussão na sociedade temas importantes e complexos, como a legalização do aborto, a implementação do aborto legal, a votação da anencefalia no STF, os direitos das mulheres lésbicas, o respeito aos direitos humanos das mulheres privadas de liberdade, a necessidadde de um estado laico para que todas as políticas públicas possam se efetivar, entre outras questões. Acreditamos hoje que os avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos dependem muito da capacidade de dialogar com a sociedade e nela disputar projetos, para que o sistema político possa ouvir e considerar a agenda das mulheres e do feminismo. Sabemos que o grande legado deste movimento é articular idéias e ações para mudança de relações de poder, que não se confinam nas relações de gênero e classe, mas se articulam com todos os outros elementos estruturantes da sociedade, como o racismo e a heteronormatividade. Precisamos de muita democracia e temos a esperança de que uma mulher na presidência do Brasil fortaleça a cidadania de todas as brasileiras.