Presente de aniversário: 40 chibatadas. Conheça a iraniana que sofreu repressão por usar minissaia e se tornou estilista

Por Michele Shapiro – revista Marie Claire
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Para comemorar seus 16 anos, a iraniana Tala Raassi fez uma festa na casa de uma amiga. No meio da comemoração, tirou a calça que estava por baixo da minissaia e ficou à vontade. Pouco depois, a polícia religiosa a levou, com os convidados, para a cadeia. No Irã, mulheres não podem usar trajes “indecentes” nem festejar com pessoas do sexo oposto. Elas foram presas e levaram 40 chicotadas pela infração. Como esse castigo e a censura sobre os trajes de Tala acabaram fazendo com que ela se tornasse estilista

“Uma lembrança definiu minha vida: estou parada em uma fila num longo corredor escuro, algemada a uma amiga, enquanto escuto o som terrível de duas outras amigas gritando de dor. Estou em uma prisão na capital do Irã, Teerã, e aguardo para receber meu castigo: 40 chicotadas. Minhas amigas saem de uma sala do corredor, com lágrimas escorrendo pelo rosto e sangue manchando as costas de suas camisas. Eu mal consigo respirar enquanto espero que as guardas chamem meu nome. Finalmente é minha vez. Minha amiga e eu, ainda algemadas, entramos juntas na sala de tortura.

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“A primeira das 40 chibatadas desceu com força em minhas costas. Senti um choque de dor lancinante”

Duas guardas femininas de meia-idade e sem expressão vestidas de chador, o longo manto preto, retiram nossa algema e nos mandam deitar de rosto para baixo sobre dois colchões. Seremos chicoteadas nas costas. As guardas agarram dois chicotes de couro preto e os mergulham na água para causar mais dor. Eu viro a cabeça e vejo-as levantar os chicotes no ar, e então aperto os olhos com força, aterrorizada. A primeira das 40 chibatadas desce com força em minhas costas. Sinto um choque de dor lancinante. Estou usando uma camiseta de algodão, o que poderia ser melhor que estar nua, mas logo percebo que na verdade é pior. Enquanto o chicote bate nas minhas costas, repetidamente, a camiseta começa a colar aos cortes nas minhas costas. O chicote puxa a camiseta dos ferimentos depois de cada golpe, intensificando a dor. Eu não paro de pensar: não acredito que isso está acontecendo comigo. Sou uma boa aluna; venho de uma ótima família. Não sou criminosa. A pior parte é saber que meus parentes, que estão sentados do lado de fora da sala, podem ouvir as chicotadas. A dor emocional é quase pior que a dor física.

Tudo começou cinco dias antes, data do meu 16º aniversário. A comemoração seria na casa de uma amiga. Eu vestia o que qualquer jovem iraniana tradicional veste: um lenço sobre o cabelo, casaco preto e calças por baixo da saia. Quando cheguei à casa dela, removi as camadas, ficando apenas com uma camiseta e minissaia pretas. Havia cerca de 30 amigos na festa, homens e mulheres; escutamos música e conversamos, sem álcool nem drogas.

Sem avisar, ou mesmo bater à porta, a polícia religiosa — grupos financiados pelo governo que aplicam a moral islâmica — entrou e começou a gritar. No Irã é ilegal usar roupas ‘indecentes’ como minissaias, escutar música se não for aprovada pelo governo e festejar com o sexo oposto — embora as pessoas façam reuniões como esta na privacidade de suas casas o tempo todo. (Soubemos mais tarde que um sujeito que não foi convidado nos delatou para se vingar; ele pensou que a festa seria apenas encerrada pela polícia.) Entrei em pânico e fugi pela porta dos fundos com uma amiga.

Batemos nas portas dos vizinhos, procurando um lugar para nos esconder. Os policiais nos perseguiram gritando. Quando eles disseram ‘Parem ou vamos atirar!’, eu obedeci, porque sabia que cumpririam a ameaça. Um policial passou por trás de mim e bateu com a coronha de sua arma em minhas costas com tanta força que eu caí ao chão. Eles me arrastaram de volta para a casa de minha amiga, onde a polícia vasculhou bolsas e bolsos. Um policial encontrou meu Alcorão, que eu sempre carregava comigo; e isso me fez sentir segura. Ele o atirou no meu rosto e perguntou se eu sabia o que o Alcorão significava. Na mente dele, não era possível usar roupas na moda e também ter fé. Então ele começou a bater em minha cabeça com sua caneta antes de me algemar e atirar todo mundo em uma caminhonete.

A polícia nos dirigiu até a prisão local, então separou os rapazes das garotas. Jogou a mim e a mais 15 amigas em uma sala vazia infestada de ratos — sem cadeiras ou camas, apenas um piso de concreto frio. Eu olhei ao redor e vi uma mulher grávida e outra com um bebê, além de várias outras jovens pálidas. Passamos a noite no chão, sem comida nem água. Não tínhamos ideia do que nos aconteceria, ou quanto tempo teríamos de ficar lá. Minhas amigas e eu ficamos em silêncio, tentando não chamar a atenção. Podíamos ouvir os ratos andando pelo chão e gritos no corredor. Se precisássemos usar o banheiro, tí

nhamos de pedir permissão a uma guarda. Havia buracos que serviam de banheiro no corredor, sem pias. Uma mulher nos contou que uma detenta fora estuprada com uma garrafa de refrigerante por outras prisioneiras. Fiquei apavorada.

No dia seguinte, minha mãe chegou com outras mães para nos visitar. Fiquei feliz ao vê-la. Ela trouxe minha comida preferida: arroz com kebabs. Mas não foi uma refeição festiva. Enquanto comíamos, outras detentas nos olhavam com fome.

Dois dias se transformaram em três e então quatro. Sempre durante o adhan, o chamado islâmico para a oração que ocorre três vezes por dia, os guardas gritavam para fazermos fila e nos prepararmos para ser chicoteadas. Ficávamos de pé durante 40 minutos, mas eles nunca cumpriram a ameaça. Eu gostava do adhan e o achava lindo, mas naquela semana passei a temê-lo. Na tarde do quinto dia, as guardas pegaram a mim e às minhas amigas, nos empurraram para dentro de um ônibus e nos levaram para um tribunal. Não tivemos permissão para ter advogados para nos defender. A sentença foi dada pelo juiz rapidamente: 50 chicotadas para os rapazes, 40 para as meninas. Éramos culpadas por infringir as regras islâmicas: usar roupas indecentes, fazer uma festa com membros dos dois sexos, escutar música ocidental. Alguns dos pais tentaram negociar em nosso nome. Sugeriram trocar nossas sentenças por serviços comunitários realizados por eles. Os pedidos deles foram recusados.

Fomos levadas imediatamente para uma pequena cadeia de concreto perto do tribunal, onde os guardas nos alinharam no corredor, rapazes de um lado, garotas do outro. Nossos pais também estavam lá e conseguiram passar algum dinheiro para os guardas, para que diminuíssem a severidade de nosso castigo. Não acho, porém, que os guardas mantiveram sua palavra no acordo. Não vejo como a surra poderia ter sido pior. Eu odiei que minha família escutasse as chicotadas. A polícia quis que nossos pais ficassem lá para dar uma lição a todos. A surra durou o que pareceu uma eternidade, mas foram apenas dez minutos.

Quando fui libertada, abracei meus pais com força. Nunca vou esquecer a viagem de carro para casa. Ficamos em silêncio; ninguém sabia o que dizer. Quando chegamos, fui direto para o banho. Fiquei sete horas sentada debaixo do chuveiro, deixando a água cair sobre mim. Eu queria desesperadamente me sentir limpa.

Mas o medo ainda não tinha terminado. Autoridades no meu colégio ligaram no mesmo dia pedindo para saber por que eu havia ido à festa ilegal. Fiquei com medo de ser expulsa, de não me formar com minhas amigas. No entanto, como faltavam apenas alguns meses até a formatura, a escola me deixou voltar a estudar.

Nas primeiras semanas depois de meu castigo fiquei em choque. Não contei para ninguém e não saí de casa exceto para ir à escola. As cicatrizes físicas sararam, mas as emocionais não desapareceram com tanta facilidade. Para enfrentar a situação, simplesmente não me permitia pensar a respeito. Depois da formatura, meus pais acharam que seria bom para mim sair do Irã por algum tempo. Fui para Dubai e fiquei hospedada na casa de amigos. Durante a infância e a adolescência, eu sonhava em fazer direito. Mas em Dubai outra ideia surgiu na minha cabeça. Pensei em fazer algo que de alguma forma celebrasse as mulheres.

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Um dos modelos de Raassi

Alguns meses depois, me mudei para Washington, capital dos Estados Unidos, para morar com um parente — nasci nos EUA e minha família viveu lá por um breve período, por isso tinha passaporte e não precisei de visto. Em Washington, rodeada por mulheres livres para vestir e pensar o que quisessem, soube exatamente o que queria fazer da vida: ser estilista. Para mim a moda equivalia à liberdade.

Eu sempre gostei de costurar. Quando menina, observava minha mãe, decoradora de interiores, costurar almofadas e cortinas para nossa casa. Eu tentava imitá-la, costurando roupas para minha boneca. A moda foi meu hobby na infância e na adolescência, mas eu queria que fosse algo mais importante na minha vida. Sentia que as mulheres deviam se orgulhar de seus corpos, e não se envergonhar.

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Mulheres iranianas vestidas de maneira conservadora.

Tudo estava contra mim: não conhecia nada do universo fashion, não sabia falar inglês. Comecei do zero. Tive aulas de inglês e estudei obstinadamente todas as noites. Comprei um livro sobre como elaborar um plano empresarial. Aprendi a fazer moldes e entendi como funciona uma confecção. Visitei fábricas de roupas e distribuidores de tecidos para aprender sobre o negócio. Minha família ajudou com dinheiro, trabalhei em uma butique. Finalmente comecei a desenhar minha própria linha, com algumas blusas engraçadas, tomara-que-caia.

Cinco anos depois, eu estava em uma festa, quando um rapaz me cumprimentou pela minha blusa — uma camiseta de algodão preto com um bolso prateado e tachas junto da barra. Eu disse: ‘Obrigada, fui eu quem fiz’. Ele perguntou se eu era estilista, e eu disse que est

ava tentando ser. A resposta dele foi: ‘Por que você está apenas tentando?’ Ele se tornou meu primeiro investidor e ajudou a tirar minha empresa do chão. Eu chamei minha linha de Dar Be Dar, que significa ‘de porta em porta’ em persa.

Hoje, aos 27 anos, minhas peças estão em butiques de Miami, Los Angeles e Dubai. Também as vendo pelo meu site, darbedar.net. No ano passado fiz um desfile na Miami Fashion Week. Agora estou planejando lançar uma linha de camisetas inspirada no movimento revolucionário do Irã, chamada Revolução do Batom.

“O castigo no Irã mudou minha vida. Até hoje sinto horror. Mas sei que a liberdade não é um fato consumado”

O castigo no Irã mudou minha vida. Até hoje, quando ouço o adhan, sinto o terror daquela cadeia. Mas hoje, com certo distanciamento, vejo que a experiência me tornou o que sou. Aprecio minha liberdade em vez de considerá-la um fato consumado. Uma coisa que não mudou é minha fé. Tenho orgulho de ser muçulmana e persa. Estou animada para seguir meu sonho de me tornar estilista, e espero que possa inspirar, e talvez até ajudar a dar mais poder a outras jovens.”

Michele Shapiro é editora do site drivelikea woman.com e diretora de comunicações e superação pessoal no Centro para Cooperação Internacional da Universidade de Nova York

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Fotos de Melissa Golden / Imageplus

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