JOSÉ AUGUSTO LOPES – Diário do Nordeste
Volta à tona o tema do racismo nos meios artísticos, durante o transcurso do mês da Consciência Negra. No cinema, como na sociedade, o negro também precisou lutar por seu espaço
Em Madame Satã, drama biográfico do cineasta cearense Karim Aïnouz, o ator Lázaro Ramos teve a oportunidade de viver um dos personagens mais importantes de sua carreira
Entre os mais populares protagonistas do cinema e da televisão no Brasil, o ator negro Lázaro Ramos é um dos que insistem ainda haver um sério problema de não inserção dos artistas negros na dramaturgia nacional. Apesar de bastante requisitado, sobretudo depois de sua marcante atuação no filme “Madame Satã”, onde foi dirigido pelo cearense Karim Aïnouz, Ramos admite que a sua realidade não se estende a todos e sempre reivindica uma maior diversidade racial na escolha de atores para filmes e novelas de televisão, sobretudo quanto aos principais papéis, campo onde ele representa uma das notórias exceções.
De acordo com o crítico e ensaísta João Carlos Rodrigues, existem alguns constantes arquétipos e caricaturas vinculados aos personagens negros no cinema e na TV nacionais, a exemplo do “Negro de Alma Branca”, do “Crioulo Doido”, do “Malandro Simpático”, da “Mulata Boazuda” e do “Negrão Revoltado”, além dos habituais motivadores de fetiches sexuais. Na maioria dos casos, o homem negro “é um bandido ameaçador, ladrão, traficante ou assassino”, tal como aconteceu, inclusive, no cultuado filme “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles. Certas razões específicas, que também levam à mar-ginalização do negro, decorrentes das discrepâncias sociais e econômicas, geralmente nunca ficam bem esclarecidas no decorrer das tramas exibidas.
Riscos e constrangimentos
Sidney Poitier foi o primeiro negro a ganhar o Oscar de Melhor Ator no cinema americano, por seu excelente desempenho em “No Calor da Noite”. Em sua autobiografia, ele revela os constrangimentos sofridos quando teve de enfrentar riscos para conseguir um papel num filme que questionava exatamente os preconceitos raciais.
Quando foi lembrado para interpretar um homem negro que pretende casar com uma jovem branca, em “Adivinhe Quem Vem para Jantar”, de Stanley Kramer, Poitier foi convidado a jantar com os atores Spencer Tracy e Katharine Hepburn, protagonistas do filme. Seus anfitriões queriam fazer, ao vivo, um teste para saber sobre as habilidades do comportamento do ator em uma “reunião social de brancos”, mesmo ele já tendo sido premiado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Até mesmo Tracy e Hepburn, tidos nos meios artísticos como pessoas liberais e sem preconceitos, não desejavam assumir riscos em suas carreiras.
Durante muito tempo, Sidney Poitier foi considerado pelo público conservador “um negro de alma branca”, porque não participava dos confrontos raciais, muito comuns nas décadas de 60 e 70, e evitava fazer declarações de cunho contes-tatório ou político.
Mesmo após as grandes mudanças de comportamento ocorridas nas últimas décadas, uma mulher famosa como a bela Halle Berry, ganhadora do Oscar de Melhor Atriz, afirmou em entrevista que a cor de sua pele “é sempre levada em conta” quando se pensa em seu nome para um papel importante. Halle se confessa frustrada por ainda ser obrigada a convencer os estúdios de sua capacidade como atriz, tão somente pelo simples fato de ser negra.
Discriminação radical
Muito piores eram as características de discriminação racial nos primeiros tempos do cinema hollywoodiano, quando o tratamento dispensado aos negros resultava absurdamente constrangedor: os primeiros atores “de cor” não eram realmente negros, mas brancos com os rostos pintados de preto, ao custo de muita cortiça queimada.
Embora seja considerada uma obra capital no desenvolvimento da Sétima Arte, responsável, inclusive, pela estrutura do cinema moderno tal como ele é até hoje, “O Nascimento de Uma Nação”, do pioneiro cineasta D.W. Griffith, apresentava um conteúdo despudoradamente racista. Griffith chegava a enaltecer o surgimento da Ku Klux Klan, sinistra organização criada para aterrorizar e trucidar os negros que viviam no Sul dos Estados Unidos.
Sam Lucas foi o primeiro ator realmente negro a protagonizar uma produção americana, no caso, a quarta versão cinematográfica de “A Cabana do Pai Tomás”, filme inspirado no melodramático romance de Harriet B. Stowe. Só a partir dos anos 20, quando as organizações de defesa dos direitos civis proliferaram nos EUA, os atores de cor começaram a aparecer com maior frequência, embora desempenhando apenas pequenos papéis.
Um dos últimos artistas a preservar a tradição do ator branco com o rosto pintado de preto foi Al Jolson em “O Cantor do Jazz” (1927), primeiro filme de sucesso do cinema falado.
Talento reconhecido
Algo de realmente importante, na luta contra o racismo nos meios artísticos, só veio a ocorrer em 1939, quando Hattie Mc Daniel, a simpática intérprete da criada de Vivien Leigh na superprodução “… E o Vento Levou”, foi a primeira negra a ganhar um Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, concedido pela Academia de Hollywood. Hattie se antecipou, em muitos anos, às idênticas premiações atribuídas a Sidney Poitier (o primeiro a fazer papel principal em filmes considerados “de brancos”), Louis Gosset Jr, Denzel Washington (também considerado um dos mais belos homens do mundo), Cuba Gooding Jr., Jamie Foxx, Halle Berry, Morgan Freeman, Forest Whitaker e Jennifer Hudson. No campo da popularidade, destaca-se Will Smith, detentor de um dos mais altos salários no cinema dos Estados Unidos.
Torna-se inegável, entretanto, que o cinema americano foi responsável pela produção dos mais vigorosos libelos contra o racismo, tais como “O Sol é Para Todos”, de Robert Mulligan; “O Que a Carne Herda”, de Elia Kazan; “Mississipi em Chamas”, de Mira Nair; “Adivinhe Quem Vem para Jantar” e “Acorrentados”, de Stanley Kramer, entre inúmeros outros.
Embora o problema do preconceito ainda persista até os dias de hoje, mesmo com Barack Obama ocupando a presidência dos Estados Unidos, os personagens negros deixaram de ser apenas objetos de discriminação ou intérpretes de personagens subservientes, geralmente em caricaturais aparições secundárias. Existe mesmo uma crescente intenção, sobretudo nas produções americanas, de apresentar personagens negros em pé de igualdade com os brancos, tanto em filmes como em seriados de televisão, sempre com apreciável visibilidade.
Presença brasileira
Antes de Lázaro Ramos, o ator negro mais famoso do Brasil foi Grande Otelo, companheiro do cômico Oscarito nas populares “chanchadas” da Atlântida, porém, igualmente um excepcional intérprete em filmes sérios como “Macunaíma”, “Moleque Tião”, “Jubiabá” e “Assalto ao Trem Pagador”.
Entre outros notáveis atores negros da Sétima Arte, no País, estão Ruth de Souza (detentora de prêmios internacionais por sua atuação em “Sinhá Moça”), Léa Garcia (a mais talentosa presença no premiado “Orfeu Negro”, de Marcel Camus), Antônio Pitanga (o “Ganga Zumba” do filme de Cacá Diegues) e sua filha Camila Pitanga, bastante conhecida através da televisão, Eliézer Gomes, Taís Araújo e Luíza Maranhão, musa de Glauber Rocha no inovador filme “Barravento”.
Embora não mais existam as acintosas discriminações do passado, o negro ainda não assumiu, nas manifestações artísticas de massa, um papel proporcional à sua extraordinária e decisiva importância na formação da cultura brasileira, sofrendo na pele o mais capcioso dos preconceitos, aquele embutido em superficiais manifestações de apoio e solidariedade.