Diego Assis – Do G1, no Rio de Janeiro
Desenhista de ‘Lost girls’ participa de debate nesta sexta na Rio Comicon. Ao G1, ela narra como projeto de 18 anos com Alan terminou em casamento.
Considerando a sua certidão de casamento, é difícil para os fãs de histórias em quadrinhos não associarem imediatamente a desenhista Melinda Gebbie com a denominação de “a mulher do Alan Moore”. Moore é o escritor de graphic novels como “Watchmen”, “V de vingança” e “Do inferno”, todas consideradas obras-primas de modo quase unânime entre críticos e leitores de HQs em todo o mundo.
Mas Melinda, que participa de um debate sobre quadrinhos britânicos nesta sexta-feira (12) na Rio Comicon, tem história e brilho próprios. Nascida em San Franciso, nos Estados Unidos, foi uma das primeiras mulheres a se aventurar pelo então machista universo dos quadrinhos underground.
Suas primeiras HQs apareceram no início da década de 70 na hoje extinta publicação alternativa “Wimmen’s Comix”, ao lado de outras pioneiras como Trina Robbins, Terry Richards, Aline Kominsky e Lora Fountain – estas duas últimas viriam a se casar pouco mais tarde com os papas do undergound Robert Crumb e Gilbert Shelton.
Em entrevista ao G1 realizada nesta quarta-feira – assista aos melhores momentos no vídeo acima -, Melinda lembrou que era vista como uma das mais corajosas entre elas, comparada com frequência a S. Clay Wilson, outro ícone da HQ alternativa daquela época. “Isso para mim foi muito lisongeador, porque acho que ele era um dos melhores. Seus desenhos eram elaborados e loucos, divertidos e ao mesmo tempo meio repugantes”, explica. “Eu acho que ele quebrou mais regras do que qualquer outro. E eu fui considerada versão feminina de S. Clay Wilson porque era a única mulher que quebrava regras e desenhava as coisas sujas que as garotas não deveriam.”
em 1982 (Foto: Alan Light/Creative Commons)
E, diferentemente do que se poderia imaginar, o embate de Melinda não era apenas contra os “caretas” da sociedade daquela época mas também contra os próprios quadrinistas alternativos homens que já gozavam de um certo sucesso em meados dos anos 70 quando as meninas tentavam abrir seu espaço nesse universo. “Era uma espécie de ‘Clube do Bolinha’. Nós tivemos que montar nosso pequeno acampamento perto do clube dos meninos, mas não muito perto ou eles viriam bater na nossa porta e atirar papel higiênico em chamas pela janela. Era essa mentalidade.”
Numa resposta à sua maneira a autores como Robert Crumb, que não raro colocavam mulheres em situações submissas e de exploração sexual em suas histórias, Melinda conta que criou uma HQ para o primeiro número da revista “Wet Satin” em que a personagem era uma mulher que mantinha os homens escravos em seu porão. “Foi um troco irritado ao tipo de misoginia impensada que existia nos quadrinhos masculinos, mas que nunca era tratada em público. ‘Esse é só o tipo de quadrinhos que os homens estão fazendo’. E, quando uma mulher fez igual, disseram: ‘Ó, meu Deus, a cultura está se despedaçando!'”, ironiza.
Mas ao menos um deles não se ofendeu e, anos depois, quando conheceu Melinda, disse que havia adorado a história: o escritor britânico – e então seu futuro marido – Alan Moore.
Quebrando tabus
Alan e Melinda começaram a trabalhar juntos em 1989, em uma ambiciosa e, é claro, provocativa história que colocava três das maiores protagonistas de livros infantis – Alice, de Lewis Carroll, Dorothy, de ‘O mágico de Oz’, e Wendy, de “Peter Pan” – em uma aventura nada inocente rumos às suas próprias descobertas sexuais.
Compilada em três densos volumes que beiram a pornografia, a HQ “Lost girls” – lançada no Brasil pela editora Devir – retrata Alice como uma senhora lésbica de 60 anos, Wendy como uma aristocrata mal-resolvida de 40 e Dorothy como uma caipira de 20 com apetite sexual insaciável.
Fundamentada em uma consistente pesquisa histórica e cultural da época, a sofisticada trama se passa na Áustria entre os anos de 1913 e 1915 em meio a episódios conhecidos como a estreia do balé “A sagração da primavera”, de Stravinsky, o assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando, e o início da Primeira Guerra Mundial.
apimentada de Alan e Melinda (Foto: Reprodução)
O trabalho levou 18 anos até finalmente chegar às livrarias e acabou transformando o que era então uma simples colaboração de trabalho em uma relação para a vida toda – Moore e Gebbie se casaram em 2007, um ano depois de “Lost girls” ser lançado.
“Foi um relacionamento muito organizado, porque o livro abriu tantas vulnerabilidades em nós dois como pessoas, mas não há outra maneira de dizer: é como levar uma vida sexual diante de uma multidão”, diz Melinda. “Acontece em casa, mas as pessoas vão discutir essas coisas em algum momento, como nós estamos fazendo agora.”
Para a desenhista, no entanto, o que salvou a relação – e a continuidade do trabalho em “Lost girls” – foi o fato de terem se mantido em casas separadas durante toda a realização da obra.
“Não acho que duas pessoas que estejam colaborando em algo como isso possam viver juntas. Porque [tem] todas as coisas do dia-a-dia, como ‘Onde está a pasta de dentes? ‘ ou ‘Por que você aumentou o aquecedor do banheiro?’ Não dá para ter isso quando se está colaborando em um trabalho [que exige essa] alquimia como ‘Lost girls'”, defende. “Eu lembro que tivemos uma briga bem pequena sobre algo, como qualquer casal teria, e eu fui trabalhar em um desenho da Dorothy e acabei desenhando seu rosto de um modo me
io cavernoso porque eu estava infeliz que tínhamos brigado. Então, tudo o que a gente faz afeta o nosso trabalho. E tudo o que o nosso trabalho faz nos afeta também. É como uma câmara de eco.”
em HQ terminou em casamento (Foto: José Villarubia)
A fórmula secreta de ‘Batman’
Da mesma maneira que o marido, que não gosta nem de ouvir falar sobre as adaptações de seus quadrinhos para o cinema, Melinda Gebbie também deixa claro que não tem interesse em se misturar com gente de Hollywood. Nem mesmo aqueles tipos supostamente mais insuspeitos. Perguntada sobre o que achou da versão de Tim Burton para “Alice”, a coautora de “Lost girls” tentou, tentou, tentou… mas não conseguiu segurar a alfinetada:
“Sim, eu vi o filme… Hmmm… Sim… Tim Burton… Hã… Tim Burton veio até a cidade de Alan [Northampton, Inglaterra], o levou para tomar uma cerveja e disse: ‘Como transformo Batman em um sucesso?’ E Alan deu uma descrição bem cuidadosa de como fazer um bom filme. Tim pagou a ele uma cerveja e se foi”, conta, sugerindo que o cineasta tomou emprestadas as ideias de seu marido e nunca creditou ou agradeceu. “Isso ilustra levemente o que eu penso sobre Tim Burton”, desabafa.
E quanto à “Alice”? “Não acho que seja um filme muito interessante, na verdade. Acho que a moça que a interpreta é uma atriz muito boa – eu a vi na série de TV ‘In treatment’. Acho que os efeitos são bons. Tim Burton sempre usa bem os efeitos, mas acho que os diálogos, o argumento e tudo o mais são tipo ‘Por que você não arranjou um escritor?'”, debocha. “Sim… para ser absolutamente honesta, achei um filme decepcionante. Parece ter um estilo cosmético, mas acho que não tem conteúdo. E eu vi muitas adaptações de ‘Alice’.”
Esta é Melinda Gebbie, senhoras e senhores.
Rio Comicon 2010
Quando: 9 a 14 de novembro, das 13h às 22h
Onde: Ponto Cultural Barão de Mauá – Estação Central da Leopoldina, Rio de Janeiro
Quanto: R$ 10 (meia-entrada: R$ 5)
Mais informações: http://www.riocomicon.com.br/