Ivone Gebara *
Introduzindo a questão
Quando se fala em direito a decidir parece que cometemos de antemão uma espécie de afirmação inapropriada e problemática. A decisão é uma atividade própria do ser humano e, estamos boa parte de nosso tempo decidindo. É claro que as decisões cotidianas e eu diria mesmo as contínuas pequenas decisões que fazemos, nem sempre são chamadas de decisão. Automatizamos tantas coisas e nem achamos que de certa forma estamos decidindo. Entretanto, é bom deixarmos claro que elas também fazem parte daquilo que chamamos as decisões próprias da vida humana, mesmo que não tomamos tempo para pensar sobre elas por considerá-las talvez irrelevantes.
A decisão se torna um problema quando falamos de DIREITO a decidir. É como se alguém ou um grupo ou uma força superior nos impedisse de exercer algo que é próprio do ser humano. Por exemplo, falar de direito de beber água ou direito de comer ou direito à locomoção significa que alguém está usurpando ou roubando não um objeto de alguém, mas uma ação vital sem a qual morreríamos. Então quando as coisas essenciais tornam-se exigência de um direito, quando precisam ser legalizadas para serem respeitadas é porque há algo que está em total desequilíbrio nas relações humanas.
Por isso é preciso analisar a questão do direito de decidir e tentar delimitar alguns aspectos desse direito antes mesmo de pensar especificamente nos seus diversos objetos. Podemos dizer que as questões importantes a esse respeito são: O que é mesmo decidir? Sobre o que estamos querendo decidir? Quem nos impede de fazê-lo? E por quê?
A reflexão que proponho a vocês não é em primeiro lugar teológica, isto é, não supõe a necessidade de uma autoridade divina que justifique nossa decisão ou nosso direito a decidir. A questão que desenvolvo num primeiro momento tem a ver com uma compreensão filosófica mínima de nossa realidade humana hoje. Digo hoje porque a compreensão que os seres humanos têm de si mesmos não só foi diversa e variada no passado, mas continua sendo no presente. A compreensão que temos de nós mesmas é histórica, cultural, contextual e pessoal. Isto significa que ela é inevitavelmente mutável.
Que dizer da teologia?
A teologia é sempre um ato segundo em relação ao imediato de nossa existência. Ela é uma espécie de bordado que tecemos sobre a tela de nossa vida e às vezes confundimos a tela com o bordado. Às vezes o bordado é tão fechado que nos impede até de ver a tela e perceber que é ela que sustenta o bordado. Outras vezes pensamos até que a tela não existe, mas apenas o bordado que se sustenta à medida que vai sendo tecido. Mesmo que provisoriamente manterei a distinção entre tela e bordado. Depois dessa breve introdução, começarei a refletir sobre a tela e em seguida tentarei dizer alguma coisa sobre os diferentes bordados.
1) A tela humana na teia da vida
Somos uma espécie que emergiu na complexa teia organizada da vida. Nesse momento não vou dar nem explicações científicas e nem fazer apelo aos mitos das diferentes culturas e do Cristianismo em particular. Talvez, poderemos refletir em outro momento sobre essas questões.
Igualmente intuo que não posso refletir sobre o que é vida, mas apenas dizer que vivo porque respiro, porque sinto meu corpo, porque sinto frio e calor, fome e sede, porque penso, porque amo e quero ser amada. Falar da VIDA é amplo demais e corre o risco de ser abstrato. São as pequenas coisas cotidianas, os gestos, os desejos, as dores e alegrias que dizem que estou viva ou que estou na vida ou que tenho vida. Portanto, é a um monte de coisas em mim e ao meu redor que chamo de vida. Aliás, é bom dizer que a palavra “vida”, como é empregada hoje, num sentido genérico e abstrato é relativamente recente. A Igreja Católica Romana, por exemplo, tem usado esse termo de forma reducionista, sobretudo quando se refere ao feto. O nome que dão ao feto agora é VIDA e, reduzem o direito à VIDA a proibição de interromper uma gravidez nas primeiras semanas de gestação. Esse emprego indevido corre o risco de levar-nos a abstrações e generalizações que nos distanciam das dores e carências reais de nossos corpos.
A vida não é algo abstrato. A vida é uma vida. A vida é minha vida e a de muitas pessoas de séculos passados e do presente. Todos nós fazemos mais ou menos a mesma experiência quando nos afirmamos vivos. Ao mesmo tempo em que nomeio a vida em mim, nomeio a vida dos outros, alguns semelhantes e outros diferentes de mim. Desta forma sou eu o ponto 0 (zero) a partir do qual sinto a vida e organizo o mundo, de forma individual e coletiva. Não conheço a vida em geral, mas só a particularizada em mim e em outros indivíduos. Minha vida é meu corpo, suas necessidades, suas relações e suas produções. E meu corpo é essa imagem que vejo no espelho ou que reconheço como um eu, meu eu projetado, mas um eu que muitas vezes parece ser maior ou menor do que a imagem refletida. Meu corpo é também feito pelo olhar do outro, pelo corpo do outro que me toca e se constitui em limite e ao mesmo tempo proximidade ou em intimidade para meu corpo. Reconheço meu corpo no outro e o outro no meu. Olho-me no espelho ou me percebo de muitas formas e digo: essa sou eu e eu sou minha vida e minha circunstância. Deixo-me olhar pelo outro ou olho o outro e o reconheço como um outro, meu semelhante, uma outra vida.
Este corpo que se confunde com o que chamo de eu ou minha vida está em relação a outros tantos. Sobrevivemos porque estamos em relação de cuidado, carinho, proteção. Mas também, estabelecemos relações destrutivas, formas de dominar uns aos outros, de tirar a vida de outros buscando saciar estranhas necessidades ou quase incontroláveis desejos. A tela da vida é construída inevitavelmente pela tela da morte. Em outros termos não há vida sem morte. Não há morte sem vida. E, portanto não são duas telas, mas a mesma tela que se mantém através do movimento de vida e morte. A morte é absolutamente essencial à manutenção da vida e à nossa própria capac
idade de nomear a vida de vida. Entretanto, ao nos reconhecermos como seres vivos e frágeis começamos a temer por nossa vida. Buscamos instintivamente protegê-la. Além disso, nos damos conta de nossos poderes uns sobre os outros e passamos ao mesmo tempo a temer as ameaças e a morte, coletivamente. Os cadáveres nos mostram o que é a morte. A imobilidade total, a incapacidade de comer, beber, pensar, comunicar-se, amar, decidir. E passamos a temer a morte total e a temer a todos os que possam ameaçar a nossa vida ou todos os que imaginamos capazes de matar as nossas vidas coletivamente. E não só tememos a morte, mas tememos aqueles que em vida possam ter mais vida que nós, como se a vida pudesse ser guardada, comprada e vendida, como se ela se transformasse em produto que pudesse ser acumulado por alguns em detrimento de menos vida para outros. Aqui se poderia pensar na luta de classes, na luta entre etnias, castas, gêneros, gangues, partidos etc.
Não estou contando um conto imaginário ou uma ficção sobre seres extraterrestres. Estou tentando captar algo desses seres existentes que chamamos “humanos”; estou, portanto falando de nós e de mim mesma.
Há vidas que parecem mais ameaçadas que outras; há vidas que parecem mais fortes do que outras, há vidas que se mostram mais importantes que outras… Bordamos uma escala de valores e de hierarquias em torno dessa “coisa nossa” a qual chamamos vida. E muitas vezes o bordado parece fugir ao bom senso, a uma racionalidade respeitosa, a uma regra de convivência entre as cores e os diferentes fios.
É dessa ameaça à nossa vida que nasce nossa capacidade e nosso desejo de por um lado ter vida eterna e por outro de nos referirmos a alguém que não morre, por exemplo, um Deus ou uma Deusa e atribuirmos a ele ou a ela qualidades superiores e, sobretudo a imortalidade. E, além disso, entregamos aos nossos deuses poderes sobre nós, poderes que podem nos libertar e oprimir dependendo das situações. Esta questão está presente em todas as culturas e podemos retomá-la de diferentes maneiras.
2) Os diferentes bordados
Tudo isso nos faz perceber que bordamos muitos desenhos na tela de nossa vida. De fato bordamos, mas também a cultura borda em nós. Há uma interação entre um sujeito e os outros sujeitos no próprio tecido da vida.
Às vezes, tentamos desmanchar algo para bordar novos traços com novas cores. Mas, nem sempre o bordado inicial desaparece. Ficam traços e às vezes até cores meio desbotadas que não conseguem sair da tela como se fossem manchas indeléveis. Há alguns bordados poderosos, sobretudo aqueles que nos vêm da educação familiar e das instituições da religião. São resistentes, agarram-se à tela da vida e até podemos rasgar a tela se tentamos arrancá-los à força. Mesmo quando conseguimos desfazê-los eles parecem voltar em forma de culpas, arrepios, emoções angustiantes.
As crenças religiosas fazem parte desse bordado com múltiplas funções. Poder refletir sobre esses bordados nos mostra a complexidade da vida humana e nos abre para a responsabilidade em relação a nossas vidas.
Os sistemas de poder quaisquer que sejam eles são em parte bordados tecidos com muita força na tela de nossa vida. E não basta uma lei ou nossa decisão pessoal para impedir que coisas independentes de nossa vontade se instaurem em nossa vida. Lembro essas coisas para que percebam o quanto os bordados de nossa vida são extremamente complexos e o quanto modifica-los é tarefa árdua.
Reflito com vocês a partir de imagens femininas para ajudá-las a perceber que quando queremos tomar decisões mesmo se estas forem decisões éticas e políticas em favor das mulheres nem sempre conseguimos desfazer a força dos desenhos da cultura religiosa. Por isso, talvez, devamos investir muito mais na formação do caráter das pessoas, na educação para o cuidado de si, para o diálogo, para o conhecimento de si mesma, para o pensamento. Estes são outros desenhos e outros bordados talvez com pontos mais difíceis de serem aprendidos, mas bastante eficazes quando assumidos com convicção e consciência. Esses bordados cujos fios vêm de dentro e de fora de nós mesmas podem enfrentar com muito mais solidez as investidas dos diferentes totalitarismos e imprevistos que parecem manipular nossas vidas. Ajudar a pensar é uma forma de conquistar nossa dignidade feminina.
3) Decidir: uma vivência complexa
Nós seres humanos herdamos uma estrutura milenar cindida, ou seja, estamos sempre saindo de pequenas cisões ou de muitas divisões que nos habitam. Decidir é sair de uma cisão, é ultrapassar as múltiplas pequenas divisões que estão em nós e nascem cotidianamente em nós. Às vezes saímos da cisão por esforço próprio e outras vezes, forças externas a nós nos tiram da cisão, nos levam a decidir quase sem escolha. Por isso, a decisão nem sempre significa uma real escolha ou mesmo uma escolha livre ou uma escolha boa. A decisão é apenas uma saída do estado de cisão insustentável no cotidiano da vida. É importante dizer isso para não cairmos na ilusão de achar que se decidimos, necessariamente decidimos para o bem de nossa pessoa ou das outras. E mais, se tomamos uma decisão necessariamente estamos tomando-a com todos os elementos disponíveis para que ela não se volte contra nós. Por essa razão muitas vezes tomamos uma decisão indecisa, ou seja, tomamos uma decisão porque não é possível viver na cisão. Tomamos uma decisão até sabendo que ela não é a melhor, mas é o possível no momento.
Mais uma vez, estou problematizando essas situações e chamando sua atenção para as palavras que usamos muitas vezes sem pensar. Convido-as a acolher as dificuldades reais que as decisões encerram. Problematizar significa colocar as coisas ou os acontecimentos diante de si para olhá-lhos e pensar sobre eles. Isto nos ajuda a sermos capazes de pensar e de nos apoiar-nos nas grandes decisões que juntas precisamos tomar. As grandes decisões exigem muito de nós. Nel
as ganhamos algo e perdemos algo porque nunca podemos ter absoluta segurança em relação às decisões que fazemos. É claro que muitas vezes dizemos “não me arrependo do que fiz. Esta foi a melhor decisão. Faria tudo outra vez”. Isto está bem, mas sempre houve perdas de alguma maneira. A decisão supera uma cisão porque escolhe algo ou um caminho. Consente que seja isso que se quer ao menos nesse momento, mesmo com os sofrimentos e novas cisões que possam advir. Decidir não significa assumir um caminho sem sofrimentos.
As decisões, sobretudo aquelas que implicam em rumos diferentes para nossa vida ou que envolvem diretamente outras vidas são parte da complexa teia de nossas vidas. Desembaralhamos um fio e quando estamos desembaralhando outro, um nó aparece e requer uma imensa paciência ser desfeito e para que não rompermos o fio problemático. E, muitas vezes não há outra saída a não ser romper o fio, atá-lo de outra maneira ou até deixá-lo solto.
4) As diferentes matérias de cisão que povoam nossa vida
Somos seres cindidos como afirmei acima. Todas e todos nós. Por isso, muitas vezes elogiamos as pessoas de decisão porque são capazes de sair logo das cisões. E quando as elogiamos nem pensamos que quase que imediatamente elas são habitadas por novas cisões. Esta é a realidade de todas as vidas humanas. Muitas vezes a segurança total pode ser uma aparência ou uma farsa.
Há cisões que tocam a estrita vida individual no seu cotidiano ou na sua forma ordinária e há cisões que tocam a vida em sociedade. As cisões que tocam a vida social é que são matérias de e do DIREITO, ou seja, são elas que nos convidam a tomar decisões que favoreçam o bem dos diferentes grupos. Digo isso porque cada vez mais nos damos conta dos limites da expressão Bem Comum e da expressão Direito de Todos ou Vida para todos. A matéria de Direito nem sempre favorece a quem precisa do Direito.
Por isso há políticas que visam transformar as coisas que julgamos ser um direito em leis e isto toca em cheio na questão da DECISÃO.
Creio ser interessante lembrar algumas decisões públicas:
– a decisão de eleger um candidato/a para um cargo político
– a decisão de criar um partido político
– a decisão de organizar um movimento social
– a decisão de fazer uma guerra
– a decisão de cessar uma guerra
– a decisão de denunciar opressões
– a decisão de calar crimes
– a decisão de aprovar leis que favoreçam um ou outro grupo
– a decisão de descriminalizar e legalizar procedimentos
– etc.
Estas decisões podem ser pessoais, mas são, sobretudo, coletivas. Indicam muitas vezes que não podemos exercer nossa capacidade de decidir porque forças externas nos impedem de fazê-lo. Penso especialmente nas ditaduras militares, nos regimes totalitários que impedem o exercício da liberdade e da decisão em relação a muitas atividades de nossa responsabilidade comum. Penso também nos fundamentalismos religiosos que procuram manter seus fiéis submissos a uma única interpretação de sua crença religiosa e os proíbem de tomar decisões que têm a ver com sua responsabilidade pessoal.
Há muitas outras decisões que podemos enumerar, mas creio que existe uma que está em nossa mente, pois tem a ver com uma das razões da convocação desse encontro.
Trata-se do direito a decidir sobre nosso corpo, sobre nossa vida sexual, sobre um possível aborto ou interrupção da gravidez. E mais uma vez quero lembrar o quanto a questão da decisão é opaca, ou seja, é complexa mesmo querendo simplificar as coisas.
Pensar em decidir a partir de nosso corpo, levanta uma questão: a quem pertence o nosso corpo? É claro que a resposta imediata num mundo individualista como o nosso é: meu corpo pertence a mim. E imediatamente pensamos que somos as proprietárias de nossos corpos e que podemos dispor dessa propriedade como nos aprouver. Nosso corpo não é visto como um bem pessoal coletivo, mas um bem individual individualista. Meu corpo torna-se o mundo no qual imagino poder desenhar todos os meus desejos e fantasias. E mais, o corpo individualizado dá a impressão de que ele é meu e que, até certo ponto, eu o faço assim ou assado conforme a minha vontade. Esta é uma visão limitada e bastante comum. De fato meu corpo é meu, é minha responsabilidade, mas é também um corpo de responsabilidade comum. Por exemplo, é responsabilidade coletiva cuidar dos corpos enfermos, de construir hospitais, de produzir remédios, de construir estradas etc. Se meu corpo é agredido sinto-o como meu e a sociedade, ou seja, “os outros” apontam-no como “um corpo individual” que tem que reagir à agressão recebida. Mas nem sempre meu corpo tem condições de reagir como se esperaria que ele reagisse. Muitas vezes nos entregamos à agressão, sobrevivemos com ela, muito embora ela possa continuamente nos incomodar. Outras vezes são os outros que reagem para restaurar meu corpo ferido e decidem por mim. Mais uma vez estou problematizando essas questões para mostrar-lhes as muitas dificuldades presentes e peço-lhes que não tirem conclusões aceleradas, mas que acolham o desafio de pensar a nossa vida e seus muitos e complexos processos de decisão.
Por outro lado, podemos igualmente pensar que há tradições para as quais o corpo individual não é propriedade individual. Assim, se fôssemos cristãs de certa linha mais espiritualista diríamos que nosso corpo pertence a Deus, visto que tudo pertence a Deus criador de todas as coisas. Como não escolhi nascer é fácil transferir o meu “estar aqui” a Deus como se minha presença obedecesse a um plano pré-estabelecido ao qual eu tenho que obedecer. Então o que acontece ao meu corpo acontece a um corpo que não é meu, mas de Deus e não posso ir mais além do que acolher o que me aconteceu e fazer a vontade de Deus que permitiu que acontecesse o que aconteceu. Muitas vezes a religião tira de mim a posse e a responsabilidade mesmo frágil sobre meu corpo porque o situa como corpo cuja propriedade é do Outro e de outros. E, a determinação e decisão sobre meu corpo não vem necessariamente de mim mesma.
Sou desapropriada de meu corpo e colonizada por vontades acima dele. Os em estão em cima dominam e os que estão em baixo não têm poder de julgar os corpos que estão em cima, de apontar seus equívocos e limites. Penso especialmente nos corpos das hierarquias religiosas que legislam sobre outros corpos e especialmente sobre os corpos femininos.
Pouco a pouco vocês percebem que nossa história circunstancial vai bordando coisas diferentes na tela de nossa vida. E vamos percebendo o pluralismo dos bordados e a dificuldade de desmanchá-los para bordar outros desenhos. Isto explica em parte o conflito entre os desenhos dos bordados. E mais explica que os princípios religiosos são bordados que tecidos na tela da vida como outros apesar de sua força e especificidade. Por isso não devemos temer pensar sobre eles, interrogá-los à luz dos desafios de nosso presente e de nossas vivências próprias.
5) O jogo de interesses nos processos de DECISÃO
São as decisões necessárias ao convívio humano que constroem a política e a moral. Tudo o que criamos está relacionado com tudo. Não criamos nada que não se conecte com o conjunto de nossa vida muito embora nem sempre percebamos isso. Muitas vezes imaginamos que alguma lei ou alguma decisão política vai favorecer apenas a um grupo. E pode ser verdade, mas ao favorecer um grupo na maioria das vezes desfavorece a outros. Esta é a dinâmica das leis, do direito e da moral sempre sujeitas às mesmas limitações humanas e à mesma mistura que nos constitui. Por isso precisamos tentar sair das considerações abstratas que muitas vezes escondem a complexidade do real de muitos problemas.
Nesse sentido decidir, por exemplo, pela legalização e descriminalização do aborto implica não só um conflito de “desenhos ou de bordados”, mas um conflito de interesses e de poderes.
É especialmente sobre o corpo das mulheres que estes conflitos e esses poderes estão atuando. A partir de um registro cristão, costumamos pensar que abortar um feto é tirar a vida ou a possibilidade de vida e que, portanto, é uma decisão pecaminosa independentemente, muitas vezes, de uma opção religiosa precisa e das circunstâncias de vida de cada mulher. Tentemos entender algo desse comportamento.
Simbolicamente a origem da vida de um novo ser localiza-se no útero de uma mulher. Ela é nesse momento uma mulher e ainda não necessariamente uma mãe. A maternidade é algo que se constrói depois e ao longo de sua vida. Há algo de extremamente poderoso que se dá nesse processo porque é a mulher aquela que sustenta a possibilidade de vida de outro ser humano. Por isso em algumas antigas civilizações a mulher parindo foi considerada uma das primeiras expressões da divindade, ou seja, da presença de forças extraordinárias no ordinário da vida humana. A sexualidade estrita das mulheres, sua gravidez, seus abortos e partos eram coisas de mulher e faziam parte dos poderes femininos. Esse era um terreno quase “desconhecido” dos homens muito embora nos últimos séculos eles tentem explorar e manipular os mistérios desse “continente desconhecido”.
A partir do século XIX, especialmente o corpo feminino e especialmente o útero passam a ser dominados e controlados pela ciência masculina e pela religião, ambas representantes do poder masculino. É mais ou menos a partir desse momento que podemos determinar um controle maior sobre a questão da natalidade e em conseqüência o controle sobre os corpos femininos. Se por um lado o corpo feminino sempre foi considerado como um corpo para o homem e para a procriação o mistério desse corpo era resguardado e nutrido pelo poder das mulheres sobre ele. Ao afirmar isso não estou dizendo que não havia problemas e muitas dificuldades. Mas, simbolicamente o terreno corpóreo feminino pertencia às mulheres. Elas eram as parteiras e elas se dedicavam a ajudar as outras mulheres em casos de doenças sexuais ou em casos de aborto provocado ou acidental. Conheciam ervas e remédios caseiros para aliviar muitos males. Elas eram suas próprias confidentes, cúmplices e conselheiras. Mesmo no período da caça às bruxas, período de um terror enorme contra as mulheres se podia verificar sua força e as ameaças que seu poder exercia sobre as mentes masculinas.
Algumas de vocês poderiam alegar a importância das teorias teológicas, por exemplo, de Santo Tomás de Aquino ou de outro ilustre pensador da Igreja sobre a alma humana ou a vida intra-uterina para refletir sobre o aborto e outras questões. Mas não podemos nos esquecer que as idéias da maioria dos pensadores não chegavam nem ao povo e menos ainda às mulheres, sobretudo, de forma imediata. Muitas correspondiam a elucubrações teóricas distantes da vida ordinária e, foram conhecidas muito tempo depois de sua gestação.
Por isso é bom lembrar que, se por um lado os tribunais da Inquisição e a força do poder da Igreja Católica foram grandes e poderosos, por outro, houve também a história dos poderes femininos que fizeram história e que não podem ser esquecidos.
A ciência e a religião a partir do século XIX passam a arrancar das mulheres esse poder de decisão sobre seu próprio corpo. E é esse poder na sua forma atual que está em jogo não só na questão do aborto, mas em muitas outras questões relativas à vivência de nossa sexualidade e à explicitação de nosso poder. Por essa razão a DECISÃO sobre seu corpo torna-se um DIREITO porque está sendo ameaçado por novos poderes usurpadores que manipulam os corpos e as idéias para manter o poder de dominação sobre os corpos femininos. Alguns em nome da ciência, outros em nome do principio absoluto da vida, outros em nome do Estado e outros em nome de Deus. Todos confundem a opinião pública e, ao mesmo tempo arrancam das mulheres o direito à intimidade com seu corpo e ao exercício de, mesmo se de forma precária, decidir sobre ele visto que meu corpo é minha vida.
Poderíamos abrir essas questões para os muitos casos e tipos diversos de violência sobre o corpo feminino especialmente nas funções políticas. Aqui também há coisas de uma racionalidade sexista e de um poder excludente da diferença. Mas, por enquant
o ficaremos por aqui para não alargar demasiadamente nossa reflexão.
5) Onde fica a religião, a teologia e a teologia feminista?
Retoma algumas idéias já explicitadas. Uma das funções da religião é a da sustentação do sentido da vida como disse anteriormente. Aí se incluem muitas vivências: ajudar a aliviar sofrimentos, exorcizar nossos muitos medos, nutrir esperanças, celebrar situações importantes…
Viver é difícil. O ser humano é capaz de criar uma porção de coisas para ajudá-lo a viver. A religião é uma delas. Ao criar a religião cria poderes sobre si mesmo, poderes que para ajudá-lo são imaginados como absolutamente superiores e diferentes dele mesmo. Então, ao mesmo tempo, que reverencia seus deuses e lhes presta culto, o ser humano os teme. Sabemos que muitas vezes os representantes desses deuses usufruem de vantagens culturais, políticas e econômicas e podem dominar os fiéis. A religião torna-se um mal necessário ou um bem cheio de contradições. E as pessoas passam a usar a religião como fonte de autoridade para resolver suas dificuldades e para sair das muitas cisões da vida cotidiana. A religião passa a servir em alguns processos de decisão e de pressão social.
Na realidade escolhemos precisar da religião para decidir, ou ainda, a cultura em que vivemos nos leva a integrar a religião em nossas pequenas e grandes decisões. E isso tanto a nível individual quanto a nível coletivo. Esta escolha é sem dúvida uma escolha condicionada à educação familiar que recebemos e às muitas circunstancias de nossa vida. Portanto, é uma escolha que guarda os limites de nossa condição humana.
Quanto ao nível político coletivo alguns pontos especiais precisam ser observados. Por exemplo, um Estado religioso não prescindirá para a aprovação de uma lei de seus textos sagrados interpretados pelo poder religioso em vigor. Mas, também um Estado laico pode ter administradores religiosos ou ter a pressão religiosa de grupos da população para decidir coletivamente sobre um ou outro assunto. Os limites entre o religioso e o político assim como o individual e o social na prática se entrelaçam muitas vezes. Por essa razão, é preciso discernir se os argumentos para recuperar os poderes que buscamos ou para ter novos poderes necessitam de argumentos religiosos ou simplesmente de argumentos antropológicos e políticos ou simplesmente do bom senso que nos leva a perceber as reais dores umas das outras. Não acho que mesmo acolhendo uma religião precisemos argumentar a partir dela em favor de nossos direitos. Por exemplo, não é necessariamente porque Jesus convida a partilhar o pão que os cristãos vão partilhá-lo. Há uma dimensão humana comum que nos leva a fazê-lo e que as religiões e as grandes sabedorias assumiram como sua prática. Em outros termos, temos que ajudar as pessoas a decidirem e a fazê-lo a partir de sua crença religiosa ou não. A crença religiosa não pode ser lei válida para todas as situações. Por exemplo, as testemunhas de Jeová não admitem transfusão de sangue, mas em situações especiais o crente pode decidir de não acolher esta norma. Com isso, estou querendo permitir a cada uma de nós o direito de decidir sem a intervenção de crenças promulgadas muitas vezes pela elite sacerdotal religiosa vigente ou crenças fruto de uma história passada que já não é mais significativa nos dias de hoje. A fé religiosa é sempre maior do que a crença imposta por uma elite que se afirma representante de Deus. Proclamar isso como uma prática possível no meio de nós é por um lado perceber a multiplicidade de interpretações e de ideologias religiosas que subsistem numa mesma instituição e por outro acolher o dissenso como fruto de nossa liberdade. Podemos viver nossas crenças de forma mais criativa e libertária, isto é, buscar nelas uma ajuda para enfrentar as dificuldades do momento e não como uma sobrecarga de sofrimento. Sem dúvida este foi um comportamento comum do Movimento de Jesus e de algumas mulheres na história da Igreja. É preciso reafirmá-lo como parte da originalidade de nossa história e de nossa herança cristã.
Onde entra a teologia?
A teologia é uma sistematização continuamente atualizada das crenças e da fé de uma religião. É a capacidade de pensar as nossas crenças e explicitá-las em um discurso coerente. No caso católico a teologia foi sempre o lugar da ausência de vozes femininas. Os homens sempre falaram em nosso nome e quiseram impor seu desenho ao nosso bordado. Até agora não temos o direito de sermos as nossas próprias representantes nas assembléias decisórias da instituição religiosa. E mais, sabemos bem o quanto os fundamentos apresentados no cristianismo legitimam o poder masculino e a representatividade do masculino até mesmo nas expressões mais sublimes da vida humana. Por exemplo, o amor total e a salvação são representados pela doação incondicional da vida de um único homem-Deus: Jesus de Nazaré.
A teologia feminista a partir do século XX começa justamente a desenvolver-se através da percepção dos direitos negados às mulheres na sociedade e no interior das religiões. Na realidade os poderes religiosos negados são em parte expressões dos poderes negados pela sociedade civil e política. Por essa razão, a luta por espaços de reconhecimento na religião corresponde igualmente aos espaços ocupados na sociedade civil e política. Da mesma forma a luta por sair de identidades femininas fixas corresponde a mesma luta de sair de uma compreensão hierárquica e sexista do ser humano presente, sobretudo, no mundo religioso.
No fundo, a teologia feminista é uma teologia política que retoma os textos da tradição e os reinterpreta de maneira a favorecer a vida das mulheres e incluí-las nas diferentes dimensões da religião.
Re-trabalhar conteúdos, introduzir novos conceitos, novas hermenêuticas bíblicas com a finalidade de ajudar a viver a vida se constitui em um dos objetivos das muitas teologias feministas. E, esses conteúdos são pertinentes apenas para aquelas que os abraçam, aquelas que se encontram brindadas pelos novos sentidos que o bordado feminista tenta fazer aparecer nas relações humanas.
Há muito ainda para pensar, para partilhar e discutir… Expus apenas algumas idéias para provocar seu pensamento. Agora vocês podem continuar o bordado, cada uma de seu jeito e com sua própria história e habilidades.
Brevíssima Bibliografia
CAVARERO, Adriana. Il feminile negato – La radice greca della violenza occidentale.Villa Verucchio: Pazzini Editore, 2007.
DUDEN, Barbara. Il corpo Della donna come luogo pubblico. Torino: Bollati Boringhieri. 1997.
. Gebara, Ivone. O que é teologia feminista. São Paulo: Brasiliense: 2008.
Ivone Gebara
[Para o Seminário das multiplicadoras – Católicas para o Direito a Decidir – São Paulo – Junho de 2010 e Outubro de 2010].
FONTE: ADITAL